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    Ilustração: Carvall

anais da desglobalização

O Brasil e a nova Guerra Fria

Se preservar Amazônia, Brasil ganha trunfo para manter relações com polos distintos de poder

Oliver Stuenkel | 29 mar 2022_07h56
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Mesmo no cenário mais otimista para a guerra da Ucrânia – um acordo de paz e a cessação das hostilidades nas próximas semanas –, o mundo dificilmente voltará a ser o mesmo. A invasão russa e a imposição de sanções duríssimas do Ocidente contra Moscou são apenas o mais novo capítulo de uma tendência visível há uma década. Depois de um ciclo de abertura comercial inédito nos anos 1990 e 2000 – o primeiro de uma globalização verdadeiramente global, envolvendo praticamente todos os cantos do mundo e a ausência de tensões entre grandes potências –, o período de 2016 para cá entrará para a história como de “desglobalização” e maior turbulência geopolítica.

Os países mais afetados pela desglobalização serão aqueles que abraçaram a globalização com mais entusiasmo e mais chegaram a depender dela. O melhor exemplo é a Alemanha, que por anos se orgulhou de ser Exportweltmeister (campeão mundial de exportações) enquanto terceirizava suas preocupações geopolíticas para os Estados Unidos. Outro exemplo é o Reino Unido, que até recentemente quis ser o melhor amigo da China no Ocidente e aceitou, até recentemente, a entrada de tanto dinheiro dos oligarcas russos a ponto de o apelido de sua capital ser Londongrad. Da mesma forma, países dependentes da importação de alimentos podem sofrer abalos econômicos e políticos significativos para se adaptar ao novo normal. Não seria surpresa se o primeiro presidente a cair em função da guerra não fosse nem Zelensky nem Putin, mas algum líder no Oriente Médio, como Egito ou Líbano, fortemente dependentes do trigo russo.

No Brasil, nem todos os analistas interpretarão a nova realidade como má notícia. Afinal, enquanto o Ocidente celebrava o fim da Guerra Fria no início dos anos 1990, acreditando que a governança global substituiria a geopolítica tradicional, diplomatas brasileiros reagiram ao colapso da União Soviética com cautela e algum desconforto sobre a liderança quase irrestrita dos Estados Unidos.

Essa preocupação explica a atitude do Itamaraty diante do poder hegemônico americano, que sempre buscou influenciar a política interna de países latino-americanos – nem sempre promovendo a democracia e o estado de direito. Iniciativas que poderiam ter dado aos Estados Unidos mais influência na América Latina, como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), lançada pelo presidente Bill Clinton em 1994, foram proteladas pelo Brasil, mesmo numa época em que os laços pessoais no nível presidencial eram excelentes. Projetos que poderiam ter gerado alguns benefícios para o país, como maior coordenação com o governo colombiano no combate às guerrilhas das Farc, viram-se bloqueados porque teriam legitimado implicitamente a presença militar dos Estados Unidos em solo sul-americano. Seguindo esse raciocínio, a ascensão de outras grandes potências, como a China, ajudará o Brasil a limitar o espaço de manobra dos Estados Unidos na América Latina.

 

O receio brasileiro com os possíveis riscos e ameaças do mundo unipolar explica, em parte, por que o país nunca abraçou por completo a narrativa liberal global liderada pelo Ocidente. Mesmo governos mais liberais – como de Collor e FHC – adotaram uma política externa que buscava preservar um grau de autonomia do Brasil em um mundo cada vez mais interdependente. A experiência brasileira com a globalização foi, portanto, bem menos profunda do que a de países como México, Argentina ou de vários países na América Central, que se abriram muito mais. O Brasil, uma das economias mais fechadas do G20, dirão alguns, poderá, portanto, lidar melhor com o choque de desglobalização atualmente em curso.

Do ponto de vista estratégico, o Brasil também parece estar melhor preparado para um mundo marcado por tensões entre grandes potências do que a maioria dos outros países. Para se blindar contra pressões de potências maiores, como Estados Unidos ou China, o Brasil desenvolveu, ao longo de décadas, uma postura internacional flexível e ambígua, evitando as amarras de alianças estratégicas ou uma proximidade excessiva com Washington, Pequim ou qualquer outro polo de poder. Isso lhe permitiu desempenhar um papel relevante dentro de grupos não ocidentais, como o Brics ou o G77 – composto por países em desenvolvimento; palcos das nações mais influentes do mundo, como o G20; bem como grupos liderados pelo Ocidente, como a OCDE, ao qual atualmente busca adesão. O Brasil também soube tirar proveito do fim do sistema unipolar liderado pelos Estados Unidos e utilizar suas relações políticas e comerciais com outras potências para gerenciar melhor sua relação com Washington. Em 2014, se manteve longe da briga entre a Rússia e o Ocidente quando Vladimir Putin invadiu a Crimeia. Dilma resistiu às pressões dos Estados Unidos para “desconvidar” Putin da cúpula dos Brics, em Fortaleza, em julho daquele ano. Apesar das divergências, o Brasil conseguiu preservar laços cordiais com os Estados Unidos e a Europa. 

A despeito de tudo isso, seria um engano acreditar que a adaptação ao mundo pós-invasão da Ucrânia será fácil. Afinal, há mais de cem anos diplomatas brasileiros consideram instituições internacionais, regras e normas como a melhor opção para defender os interesses e a soberania do Brasil. Isso gerou resultados concretos: as sete décadas e meia após a Segunda Guerra Mundial foram, em muitos aspectos, extraordinariamente bem-sucedidas para o Brasil, sugerindo que a ordem multilateral impactou positivamente sua capacidade de se transformar de uma economia rural pobre em uma das dez maiores economias do mundo – tudo isso sem ter que gastar muito em poder militar para defender sua soberania nem enfrentar uma ameaça a sua integridade territorial. Ao longo dos últimos trinta anos, o Brasil tornou-se especialista em se projetar nos fóruns diplomáticos internacionais. É um dos países que mais ocupam a cadeira de membro não permanente no Conselho de Segurança da ONU. Na Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasil venceu tantas disputas comerciais que o Cornell International Law Journal publicou, em 2008, artigo titulado  Como Explicar o Sucesso Rrasileiro [em disputas comerciais]?

O Brasil também acabou se beneficiando da dinâmica global a partir dos anos 1990, e o ambiente externo contribuiu para consolidar sua economia e democracia o suficiente para que o presidente Fernando Henrique Cardoso pudesse articular uma estratégia de liderança regional em relação à América do Sul. No ano 2000, Cardoso, pela primeira vez na história, convocou os chefes de Estado da região, a maioria dos quais eleita democraticamente. Os debates sobre a liderança regional do Brasil tiveram seu auge em 2004, quando o sucessor de Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, usou o conceito de “não indiferença” no contexto da liderança brasileira na missão de paz da ONU no Haiti. Foi o mais próximo que o Brasil chegou de desenvolver uma doutrina de política externa regional, cujas origens podem ser rastreadas até 1995, quando o presidente Cardoso superou com sucesso a hiperinflação e começou a discutir maneiras de aprofundar a integração e a cooperação regional nos termos do Brasil.

A crise do multilateralismo poderá diminuir, portanto, um espaço que tem sido crucial para o Brasil defender seus interesses estratégicos. Um mundo sem uma OMC, sem um encontro anual dos presidentes do G20 e com um Conselho de Segurança da ONU paralisado – como foi o caso durante a Guerra Fria – seria um mundo mais hostil a países como o Brasil. 

As tensões entre grandes potências mudaram de patamar durante o mês passado, e não está claro se a estratégia de se manter neutro em momentos de tensão entre os grandes ainda funciona. Em 2014, o Ocidente acabou cedendo e aceitou a presença contínua de Putin nas cúpulas do G20. Desde a invasão russa da Ucrânia, os países-membros dos Brics estão tentando seguir a mesma estratégia novamente. Como em 2014, os Brics (além da Rússia) – Brasil, Índia, China e África do Sul – sinalizaram que se opuseram a tentativas ocidentais de tirar a Rússia do G20. Com exceção do Brasil, foram além: os governos da China e da África do Sul culparam a Otan pelo conflito, e a Índia está se mobilizando para ajudar a Rússia a manter seus laços comerciais. Desta vez, a relação entre os Brics e o Ocidente dificilmente sairá ilesa. Enquanto Putin estiver no poder, a cúpula não deve voltar a reunir os líderes dos países-membros. Da mesma forma, as sanções ocidentais contra a Rússia mudaram de patamar e podem atingir empresas que continuam fazendo negócios com a Rússia – inclusive brasileiras. A participação contínua do Brasil na cúpula do Brics, grupo que se tornou fundamental para que o presidente russo possa evitar o isolamento diplomático, pode afetar a imagem do Brasil no Ocidente, hoje fortemente mobilizado contra a Rússia.

 

Foi durante a presidência de Jair Bolsonaro que o país começou a sentir os desafios da política externa no contexto de tensões geopolíticas crescentes entre grandes potências: durante a primeira viagem do presidente a Washington, em março de 2019, Trump enfatizou que limitar o papel da Huawei, empresa chinesa de telecomunicações, como fornecedor de componentes da rede 5G no Brasil, seria fundamental na construção de uma aliança entre os Estados Unidos e o Brasil. O presidente americano até convenceu o governo Bolsonaro a se unir à “Iniciativa Rede Limpa” – uma ação norte-americana para excluir a Huawei, a qual, até agora, reúne mais de cinquenta países. Numa reviravolta, porém, Bolsonaro abrandou sua retórica contra a empresa de telecomunicações chinesa e decidiu não limitar a Huawei no Brasil, o que foi visto como um esforço para evitar atrasos na entrega de vacinas contra a Covid fabricadas na China.

No fim das contas, o governo brasileiro articulou um compromisso desajeitado: o Brasil construiria uma rede governamental de 5G excluindo a Huawei, mas permitiria que a empresa chinesa fornecesse componentes para a rede no resto do país, proposta que acabou desagradando tanto a Pequim quanto a Washington. Com um governo dividido entre facções pró-Estados Unidos (liderada pela família presidencial) e grupos pró-China (liderados pelo agronegócio, que atualmente se esforça para proteger laços com a Rússia de forma a não perder acesso aos fertilizantes), o governo Bolsonaro conseguiu a façanha de ser visto com desconfiança pelos Estados Unidos e pela China, algo que dificilmente mudaria se Bolsonaro conseguir se reeleger em outubro. A postura brasileira perante a invasão russa da Ucrânia também gerou confusão: enquanto Bolsonaro se disse “solidário” a Putin em visita a Moscou poucos dias antes da guerra, o Brasil apoiou duas resoluções na Assembleia Geral, condenando a agressão russa. Ninguém entendeu direito o que o governo brasileiro pensa sobre a invasão à Ucrânia.

Em função dos seus profundos laços econômicos com todos os polos de poder, nenhum futuro governo brasileiro poderá fugir da necessidade de preservar relações tanto com Pequim e Moscou, parceiros econômicos indispensáveis para o Brasil, quanto com o Ocidente, que, mesmo depois do deslocamento de poder para a Ásia, continua sendo essencial para a economia brasileira. Enquanto a China é o maior parceiro comercial há mais de dez anos, os países da União Europeia, somados, ainda representam a maior quantidade de investimentos, seguidos pelos Estados Unidos. Diferentemente do governo atual, porém, visto como ator nada construtivo no âmbito internacional, um novo governo poderá tentar aumentar seu espaço de manobra estratégico ao voltar a ser um provedor de bens públicos globais. Para dar um exemplo concreto: quando o Brasil aceitou liderar a missão de paz da ONU no Haiti em 2004 – assim livrando, temporariamente, os Estados Unidos de um problema –, o presidente Lula aumentou seu poder de barganha na hora de negociar outras questões com Washington. Quanto mais um novo governo brasileiro puder se projetar como país que contribua de forma concreta para lidar com problemas globais, mais liberdade terá para resistir às pressões de escolher um lado entre as grandes potências.

Vista por Bolsonaro como uma vulnerabilidade estratégica, a Floresta Amazônica pode, nesse contexto, tornar-se um trunfo diplomático brasileiro: desde que o Brasil consiga se projetar como superpotência ambiental disposta a rapidamente reduzir o desmatamento e assumir um papel-chave no combate às mudanças climáticas – postura pela qual poderá receber bilhões de dólares de ajuda, diga-se de passagem – o país poderá tentar minimizar o custo político de manter laços com todos os grandes atores, tanto do lado ocidental quanto com a Rússia e a China. A melhor forma para alcançar isso é o Brasil se tornar um ator imprescindível no combate ao desmatamento e às mudanças climáticas. Se for mundialmente reconhecido como tal, terá bem mais margem de manobra para defender seus interesses nacionais em um mundo cada vez mais turbulento e marcado por instabilidade geopolítica.

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