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O caminho do mercúrio

    Mercúrio sendo despejado no rio para garimpo ilegal na terra indígena Yanomami Foto: Daniel Marenco

questões criminais

O caminho do mercúrio

Estudo mapeia as rotas que redes criminosas usam para contrabandear o metal usado no garimpo ilegal na Amazônia

Bernardo Esteves, do Rio de Janeiro | 30 out 2025_10h01
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Nas lojas de insumos para mineração espalhadas pelo bairro de Bourda, na cidade de Georgetown, capital da Guiana, quem quiser comprar mercúrio não terá grande dificuldade. O produto não fica abertamente exposto, mas os vendedores o entregam sem hesitação a quem o solicitar. O mercúrio – o único metal que existe em forma líquida na temperatura ambiente – é vendido em garrafas de 34,5 kg, que têm volume aproximado de 2,5 litros. Em 2023, cada uma delas custava o equivalente a cerca de 30 mil reais. Mas a substância é vendida também em garrafas PET menores, com volume de menos de 100 ml, e mais práticas de serem transportadas. Essas embalagens contêm de 453 gramas a 1 kg – o suficiente para uso durante algumas semanas numa área de garimpo ilegal, onde o quilo de mercúrio é negociado por valores que vão de 3,6 mil a 6 mil reais.

A Guiana é um dos signatários da Convenção de Minamata, que busca eliminar ou limitar a produção e o uso do mercúrio em várias atividades econômicas, de forma a evitar seus efeitos nocivos para a saúde humana e o meio ambiente. Ainda assim, esse é o único país da América do Sul que importa mercúrio por meios legais para uso na mineração. Parte do produto importado é desviado para o mercado ilegal e contrabandeado para o Brasil – a Guiana é a principal fonte do mercúrio que vai parar nos garimpos ilegais na Terra Indígena Yanomami e em outros territórios indígenas de Roraima.

De Georgetown, o mercúrio é levado até a cidade de Lethem, na fronteira com o Brasil, escondido em meio a outras mercadorias transportadas por vans de turismo. Os contrabandistas se valem da fragilidade da fiscalização na fronteira para chegar à cidade de Bonfim, já em Roraima. Do lado brasileiro, a garrafa de 34,5 quilos era negociada por até 35 mil reais em 2023. Em Boa Vista, capital do estado, transportada por taxistas e motoristas particulares, sua cotação podia passar de 41 mil reais. O comércio na cidade não é tão ostensivo quanto no país vizinho, mas não é difícil chegar aos negociantes. É dali que o mercúrio segue para as áreas de mineração ilegal de ouro na Terra Indígena Yanomami – onde, mesmo com a operação de desintrusão dos garimpeiros iniciada pelo governo federal em 2023, o fluxo de mercúrio continua significativo. No território Yanomami, o insumo é comercializado em troca de ouro, a um valor equivalente a 124 mil reais.  

O caminho que vai de Georgetown a Boa Vista é uma das principais vias de entrada ilegal de mercúrio no território brasileiro. Essa e outras rotas significativas foram mapeadas num relatório elaborado conjuntamente pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. O documento, ao qual a piauí teve acesso antecipado, foi publicado na quinta-feira (30) em Brasília e traz informações estratégicas para a formulação de políticas públicas de combate ao contrabando do produto.

Além da Guiana, a Bolívia também tem um fluxo significativo de entrada de mercúrio ilegal no território brasileiro. O metal é transportado principalmente por terra, por vários municípios fronteiriços nos estados de Rondônia e Mato Grosso. Um desses caminhos passa pela cidade de Guajará-Mirim (RO), e dali segue para a capital Porto Velho, de onde a substância é distribuída para áreas de garimpo em vários estados da Amazônia. Nas rotas por Mato Grosso, os pontos de entrada mais usados pelos criminosos passam pelas cidades de Cáceres e Vila Bela da Santíssima Trindade, nas imediações da Terra Indígena Sararé, onde é forte a demanda por mercúrio para o garimpo ilegal.

Ainda assim, Bolívia, Guiana e outros países sul-americanos por onde o mercúrio passa antes de chegar ao Brasil, como a Colômbia ou o Suriname, não têm produção significativa do metal. Eles são apenas a penúltima escala de um longo trajeto que esse insumo percorre. “O Tajiquistão é provavelmente o país que produz quase todo o mercúrio que chega ao Brasil”, disse à piauí Esaú Feitosa, diretor do Departamento de Inteligência Interna da Abin. Após deixar  a Ásia Central, o produto pode passar pela Índia, Rússia e Emirados Árabes Unidos, conforme mostrou o relatório. O levantamento se baseou tanto em dados de comércio legal do metal, de onde é desviado parte do mercúrio que vai para o garimpo, quanto em informações de inteligência coletadas pela agência.

 

o mercúrio é usado no garimpo porque ajuda a amalgamar as partículas de ouro, de forma a separá-las dos sedimentos em que estavam espalhadas. Depois disso, o amálgama de ouro e mercúrio é aquecido, de forma que o mercúrio evapore e reste apenas o metal precioso. No meio ambiente, o mercúrio pode passar por uma reação química que o transforma no metilmercúrio, substância altamente tóxica para humanos e outros animais. O metilmercúrio vai parar no leito dos rios, é incorporado ao organismo de peixes e dos organismos que se alimentarem deles, acumulando-se a cada passo da cadeia alimentar.

Uma estimativa feita em 2023 pela organização não governamental WWF concluiu que cerca de 150 toneladas de mercúrio são despejadas por ano pela mineração de ouro na Amazônia brasileira. Os povos indígenas da região – que têm nos peixes um elemento central da sua dieta – são particularmente vulneráveis aos efeitos nocivos do mercúrio. “As populações ribeirinhas indígenas, que estão mais expostas ao mercúrio, são ao mesmo tempo as mais vulneráveis a essa substância”, disse Feitosa.

O quadro foi agravado pelo salto vertiginoso do preço do ouro desde 2019 e pelos estímulos ao garimpo durante o mandato de Jair Bolsonaro, que se orgulhava do fato de seu pai ter atuado na mineração de ouro em Serra Pelada e fez um governo marcado por medidas contrárias ao meio ambiente e aos povos indígenas. 

Um estudo de 2021 que colheu amostras de cabelo de 197 mundurukus residentes na Terra Indígena Sawré Muybu, às margens do Rio Tapajós, mostrou que quase dois terços deles estavam com concentração média de mercúrio no organismo além do patamar crítico para a saúde estabelecido pela Organização Mundial da Saúde. 

Entre os mundurukus, já apareceram casos de indivíduos com sintomas da doença de Minamata, que incluem tremores, convulsões e dificuldade de locomoção e fala. Causada pela contaminação por mercúrio, essa síndrome neurológica grave foi descoberta no Japão, onde, a partir dos anos 1950, apareceram vítimas do despejo indiscriminado de mercúrio na baía de Minamata ao longo de décadas por uma indústria química. A repetição da tragédia socioambiental japonesa entre os indígenas brasileiros levou o cineasta Jorge Bodanzky a fazer o documentário Amazônia: nova Minamata?, lançado este ano.

Foi também por causa da tragédia do século XX que a cidade japonesa deu nome ao tratado internacional que pretende combater a contaminação por mercúrio, mais de meio século após a identificação dos primeiros casos da síndrome. Ratificada em 2017, a Convenção de Minamata foi assinada por 128 países e levou a uma redução drástica do comércio ilegal de mercúrio, mas não resolveu totalmente o problema. “A produção oficial de mercúrio vem diminuindo, enquanto a produção ilegal vem tendo um impulso”, disse à piauí o sociólogo David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Um caso emblemático é o do México, que figurava entre os três maiores produtores de mercúrio até 2020, e cuja produção oficial virtualmente zerou desde 2023. Depois disso, organizações criminosas como o Cartel de Jalisco Nova Geração tomaram a frente da produção clandestina do metal.

O Peru, que detém as maiores reservas naturais de ouro da América do Sul, era também um grande importador de mercúrio e se tornou uma importante porta de entrada do metal no território brasileiro. Mas o comércio da substância diminuiu muito depois que o país ratificou a Convenção de Minamata, em 2015. Os criminosos que comandavam a rede migraram suas operações para a Bolívia, que virou o segundo maior importador de mercúrio no mundo entre 2015 e 2021. Assim como a Guiana, a Bolívia também ratificou o acordo, mas se mostra pouco  rigorosa na fiscalização do seu cumprimento. “As redes criminosas se adaptaram muito rapidamente”, disse Feitosa, da Abin. “Não se adquire da noite para o dia a expertise da logística de um metal que é extremamente complexo e lastreado.” 

 

O contrabando de mercúrio aparece frequentemente misturado com outras modalidades de crime na Amazônia. A logística para cruzar a fronteira com mercadoria ilegal não muda muito para quem quer trazer drogas, cigarros ou mercúrio. “Os operadores que conhecem a logística daquela cadeia usam a sua expertise para transportar qualquer coisa que dê lucro”, disse Feitosa.

Os especialistas em segurança pública há muito notaram o entrelaçamento do garimpo ilegal com o narcotráfico naquela região. As duas modalidades de crime podem compartilhar a mesma infraestrutura: as aeronaves e pistas de pouso clandestinas são usadas para transportar os insumos para o garimpo, o ouro e a droga. Por isso, são frequentemente operadas de forma conjunta pelas facções criminosas. Investigações já apontaram a atuação do PCC em Roraima e do Comando Vermelho na Terra Indígena Sararé, em Mato Grosso. As facções atuam tanto na extração ilegal de ouro quanto em outras modalidades de crime, operando com uma lógica de maximização das ilegalidades, conforme a definição de David Marques.

Apesar do envolvimento com o garimpo ilegal na Amazônia, as grandes facções não parecem estar atuando com o contrabando de mercúrio. “Não há evidência até o momento do envolvimento direto do Comando Vermelho, do PCC ou de outros grupos criminosos com o contrabando de mercúrio”, disse o diretor da Abin.

O relatório da Abin e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que o contrabando do metal é um crime transnacional, que envolve redes capazes de atuar em mais de um país. Por isso, não é um problema que possa ser resolvido por uma única nação. “Abordagens individuais tendem a gerar uma nova migração e readaptação das redes criminosas”, disse Feitosa, que defende uma cooperação entre os países amazônicos para atacar o problema de forma conjunta. “Temos que continuar com as ações de fiscalização que vêm sendo realizadas, como a desintrusão de terras indígenas”, disse David Marques. “Mas sem um esforço de cooperação internacional, fica mais difícil fazer o controle desses fluxos.”

Para Marques, o envolvimento das grandes facções criminosas com o crime ambiental adicionou uma nova camada de complexidade à realidade da Amazônia. Elas foram atraídas à região pela proximidade com os países produtores de cocaína, estabelecendo os estados da região Norte como eixo importante para o transporte doméstico e internacional da droga. E incorporaram crimes ambientais à extensa ficha corrida de ilegalidades que cometiam. “Precisamos entender que segurança pública é uma das condições fundamentais para o desenvolvimento sustentável da região amazônica”, afirmou o sociólogo.

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