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questões cinematográficas

O canto do mar

A passagem de seis décadas não favoreceu O canto do mar, dirigido por Alberto Cavalcanti (1897-1982) em 1953, e exibido na mostra a ele dedicada no recente Festival do Rio.

Visto agora pela primeira vez, é fácil entender que tenha sido um dos alvos preferenciais de Glauber Rocha no comentário que escreveu na Revisão crítica do cinema brasileiro (Rio: Editora Civilização Brasileira, 1963. Reeditado pela Cosac & Naify, em 2003).

| 18 out 2012_11h15
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A passagem de seis décadas não favoreceu , dirigido por Alberto Cavalcanti (1897-1982) em 1953, e exibido na mostra a ele dedicada no recente Festival do Rio.

Visto agora pela primeira vez, é fácil entender que tenha sido um dos alvos preferenciais de Glauber Rocha no comentário que escreveu na Revisão crítica do cinema brasileiro (Rio: Editora Civilização Brasileira, 1963. Reeditado pela Cosac & Naify, em 2003).

Destruir quem elege como inimigo é a tática de Glauber para se impor. Por isso, apesar dos méritos que indica, decreta que “Cavalcanti é um cineasta do passado”. E ser do passado, naquela época, era por si só considerado falta grave.

A virulência da cruzada contra a Vera Cruz e seus sucedâneos, aí incluídos os filmes brasileiros de Cavalcanti (além de , Simão, o caolho e Mulher de verdade), deixou marca indelével na percepção das gerações seguintes sobre a fase do cinema brasileiro que antecede o Cinema novo. Mas é mais do que hora de reconsiderar esse sectarismo.

Com parâmetros diferentes de Glauber, Almeida Salles dera acolhida favorável a , em 1953 (Cinema e verdade, Francisco Luiz de Almeida Salles. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. pp.268-270), ano em que foi escolhido melhor filme pela Associação de Cronistas Cinematográficos e recebeu os prêmios Governador do Estado para melhor produção, montagem e música. No ano seguinte, o filme de Cavalcanti foi exibido, em competição, no Festival de Cannes e, em 1955, premiado no Festival de Karlovy-Vary.

Para Almeida Salles, “tem sentido sinfônico” e seu tema é “o da evasão”. No “preâmbulo antológico” […], “todo o fato das secas, como realidade geográfica, impacto físico, psicológico, social, familiar e mesmo emocional e estético, é fixado […].”

O drama individual que segue preserva, segundo Almeida Salles, “o tom e a composição sinfônica”.

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Confessando ter sido conquistado pelo filme, declara não ter conseguido se “furtar ao poder de sugestão dramático desse Brasil descarnado” que ele revela, “pobre e triste, ingênuo e patético, Brasil de beira de cais, de subúrbio humilde do Recife, com crianças morrendo, procissões festivas, danças exóticas, cantos nostálgicos, gente de pé no chão e fala musical, pregões nas ruas de sobrados.”

Em 1955, depois de ter visto o filme no Brasil, Catherine de la Roche publica na revista Sight & Sound artigo reconhecendo fundamento nas duras críticas feitas a , mas considera o filme “memorável por momentos separados de visão poética, por algumas sequências brilhantes de danças folclóricas e pela beleza das suas imagens.” Não deixa de dar conta, porém, da recepção negativa, cujos termos prenunciavam o conceito desfavorável que se firmaria –“distante em espírito da atualidade brasileira”, o pretendido realismo é considerado de tristeza e falta de sentido injustificadas, sendo recriminado “sobretudo por usar linguagem dos anos trinta”.

Glauber retoma em termos semelhantes essas críticas feitas a quando estreou. Escrevendo no início da década de 1960, embora reconheça como obras-primas alguns filmes dirigidos por Cavalcanti na década de 1940, em sua fase britânica, e assinale a vastidão da sua filmografia, iniciada em 1922, que na época, segundo ele, reuniria cerca de 100 títulos, considera “desequilibrado, claudicante”, mesmo sendo

“marcado por uma posição de Cavalcanti diante do Brasil. Retornou à sua terra natal evidentemente interessado num filme que exprimisse o complexo nacional daquela região. O plano inicial […], um pau-de-arara cortando o sertão ressequido, é sugestivo […]. O erro de Cavalcanti foi que, adaptando um argumento de 1927, manteve ideias sociais e estéticas dessa época. Um filme que […] sofreu a princípio uma encenação academizante – cuja estrutura e tratamento dramáticos nada tinham a ver, inclusive, com as mais evidentes características do romance nordestino, nossa mais forte expressão literária.”

Cavalcanti, segundo Glauber, “encantou-se pelo exótico” e a luta do personagem do rapaz que quer partir “romântica, abstrata e possuída, se bem dissecada, de um sentimento antinacionalista.” A fotografia de O Canto do mar, para ele, estiliza a paisagem, cometendo o grave erro de “estetização do social, do elogia das grandezas da miséria.”

“Os melhores momentos do filme”, nas palavras de Glauber, “são ainda falsos, embora narrados no melhor estilo documentário. Não se integram na concepção de um mundo que desejava fundir o regional e o psicológico num resultado universalizante. Um filme antigo, de fuga, anti-social […] um destes enganos que devem ser estudados a fim de que não se repitam.”

Em retrospecto o artificialismo de O Canto do mar, de fato, chama atenção. Fotografia, cenografia, figurinos e maquiagem; atores, penteados e interpretações – tudo postiço, o que não pode ter escapado à acuidade crítica de Almeida Salles. Daí talvez ter tentado contornar essas deficiências afirmando que o filme “não pode ser considerado uma obra realista. O seu sentido é poético, transfigurando em todos os momentos a realidade, e inserindo-a num contexto lírico que lhe dá unidade e significado.”

Vinte anos depois, Cavalcanti (foto ao lado) racionalizara a seu modo sua experiência brasileira, conforme declarou na entrevista publicada na revista Écran, em novembro de 1974 (reproduzida em Alberto Cavalcanti, Lorenzo Pellizari e Claudio M. Valentinetti, São Paulo: Instituto lina Bo e Pietro Maria Bardi, 1995. pp.300-304): “O Brasil, para ser franco, foi um desastre para mim.”

Cavalcanti considerava ter sido boicotado: “O que procurei criar no Brasil era uma espécie de consciência de nacionalidade nos filmes que não tivessem somente ‘cor local’. Mas uma autêntica cor nacional, social. Só que foi muito difícil. Quando filmei , em 1953, fui vaiado, as pessoas me insultavam dizendo: ‘Como você ousa mostrar essa miséria? Somos o país mais rico do mundo!’ Me impuseram dificuldades […]. Chamaram-me de comunista e de não-sei-mais-o-quê. Ainda lá, fiz uma loucura, fui embora. […] Creio que mesmo assim resta alguma coisa da minha passagem por lá. Por exemplo, desde que deixei o Brasil começaram a fazer filmes brasileiros como os que eu concebia. Engraçado, não é?”

Cavalcanti precursor do Cinema novo? Por essa Glauber não esperava.

O “preâmbulo antológico” de , assim chamado por Almeida Salles, parece um documentário da escola britânica. O mesmo mapa, a mesma narração. Planos fortes como a terra rachada pela seca, a sepultura improvisada, o sertanejo que abandona o casebre de taipa, o cachorro magro, acompanhados pela trilha orquestral de Guerra Peixe procuram dar grandiosidade ao pau-de-arara a caminho do litoral, onde os retirantes embarcarão nos itas rumo ao Sul.

Nessa preâmbulo, que poderia ser destacado do resto do filme, estão reunidas imagens emblemáticas que viriam a ser retomadas por filmes como Vidas secas e Deus e o diabo na terra do sol, entre tantos outros. Daí, talvez, a paternidade reivindicada por Cavalcanti. O que parece ter faltado a ele é a percepção da distância que separa seus filmes dos de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha.

Se os filmes precursores do Cinema novo da década de 1950, como os do próprio Nelson e Roberto Santos, ainda guardam certos elos com na precariedade da encenação de algumas sequências, na interpretação de alguns atores, no estilo da fotografia etc. com Vidas secas há uma primeira ruptura, seguida de outra com Deus e o diabo na terra do sol.

Nelson transpôs Graciliano Ramos com fidelidade visual ao despojamento do estilo literário – sem pomposidade e artifícios, em tom menor. E sem música. Começava um novo tempo.

Glauber, no extremo oposto, apoiado na grandiloquência das Bachianas e na estilização do cangaço, conseguiu a proeza de ser retórico e criar algo nunca antes visto no cinema brasileiro. Sem deixar, porém, de transfigurar a realidade, como Cavalcanti, segundo o comentário de Almeida Salles.

Vidas Secas e Deus e o Diabo são a negação dialética de . Mas para poderem negar foi preciso que o filme de Cavalcanti tivesse existido.