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    Idelzuíta Paixão, moradora da Comunidade Quilombola Mimbó, no Piauí: Censo tira localidades do apagão demográfico Foto: Vitória Pilar

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O Censo dos quilombolas

Brasil tem 1,3 milhão de habitantes em áreas remanescentes de quilombos; êxodo juvenil é desafio dos próximos anos nas comunidades

Vitória Pilar | 27 jul 2023_10h00
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Na beira da estrada que corta a Serra do Araras, a 18 km de Amarante, Centro-Norte do Piauí, um trio de mulheres negras vende hortaliças e chama a atenção com seus turbantes e roupas coloridas. A poucos metros das vendedoras, do outro lado da pista, uma grande placa indica o lugar: a Comunidade Quilombola Mimbó. Três quilômetros pela estreita estrada de pedra e se chega ao Mimbó, com suas casas, quadra de esportes, campo de futebol, uma escola para crianças e um posto de saúde. A comunidade foi fundada há 203 anos por dois casais negros escravizados, que vieram a pé, fugindo de maus-tratos nas fazendas de algodão de Pernambuco. “Chegaram aqui com os dedos dos pés atrofiados, de tanto correr e andar descalços pelas matas e estradas”, conta Idelzuíta Paixão, neta dos fundadores, cujo sobrenome batiza mais de 90% da comunidade. “Eles se esconderam em uma caverna por muitos anos, até pararem de ser perseguidos pelos brancos, montaram suas casinhas e começaram a povoar o lugar.” Reconhecida como a primeira comunidade quilombola do Piauí e registrada pela Fundação Palmares desde 2006, o Mimbó abriga hoje 177 pessoas. 

Mas só este ano foi possível saber com exatidão a população do Mimbó e de outras comunidades remanescentes de quilombos: o Censo 2022, o 12º realizado no país, foi o primeiro a identificar e contabilizar moradores dessas áreas. Os números oficiais divulgados pelo IBGE nesta quinta-feira (27) revelam que a população quilombola chega a 1,3 milhão de pessoas no Brasil – 0,65% do total do país. A maior parte da população de quilombolas, 70%, se concentra no Nordeste, e um terço está na Amazônia Legal. Os estados da Bahia e do Maranhão abrigam, juntos, metade da população quilombola. Dos 5.569 municípios brasileiros, 1.696 registraram presença de pessoas autoidentificadas como quilombolas, mas somente 326 cidades têm territórios delimitados. 

Recensear os descendentes de quilombos só foi possível graças a um acordo firmado entre o IBGE e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que reúne representantes de mais de 23 estados da Federação, com exceção do Acre. Antes, essas localidades e territórios padeciam num longo apagão demográfico, sem dados exatos sobre população e condições de vida. Uma pergunta específica sobre a identidade quilombola foi incluída no questionário do Censo. Primeiro o entrevistado respondia sobre cor ou raça (branca, preta, parda, amarela e indígena); na sequência, vinha outra questão: “Você se considera quilombola?” Se a pessoa respondia sim, o recenseador indagava a qual comunidade pertencia. Segundo o IBGE, as perguntas não interferem uma na outra, pois, de acordo com o Decreto 4.887, há presunção de ancestralidade negra e não de que existe cor ou raça pré-definida para a população quilombola.

O Censo identificou 494 territórios quilombolas oficialmente delimitados, onde residem 167,2 mil pessoas, cerca de 12,6% da população quilombola. Entre os territórios delimitados, o de maior população é o de Alcântara, no Maranhão, com 9.344 habitantes, seguido por Alto Itacuruçá, Baixo Itacuruçá e Bom Remédio, no Pará, que somam 5.638 pessoas, e Lagoas, no Piauí, com 5.042 habitantes. Dos territórios delimitados, só são oficialmente tituladas 147 comunidades, onde vivem 62.859 pessoas – o que significa que menos de 5% dos quilombolas possuem a documentação de suas terras.

 

No Mimbó, a paisagem é tomada por gigantescas torres. Por conta delas, há mais de um ano, o lugar se tornou a primeira comunidade quilombola a receber internet banda larga do país. A tecnologia de fibra óptica, instalada pela parceria público-privada Piauí Conectado, garante também outros 66 pontos individuais nas casas onde há estudantes. Antes disso, os moradores recorriam ao instável sinal de telefonia da área. As recargas telefônicas, além de custosas para os orçamentos familiares, não eram velozes o suficiente para garantir navegabilidade para os usuários. “Tinha que ir pra Amarante, de carro ou de ônibus, pra ter um bom sinal de internet”, relembra Idelzuíta.

Na pandemia de Covid, quando as aulas precisaram ser transmitidas online, e ainda não havia internet banda larga na comunidade, uma parcela considerável de estudantes do nível médio e fundamental do Mimbó abandonou a escola. A da comunidade só vai até a quinta série, e quem quiser seguir nos estudos precisa ir para a sede do município. Tudo isso impacta a progressão escolar das crianças da comunidade, que agora tentam recuperar os anos perdidos. Com a chegada da internet, o acesso à educação e cursos de capacitação profissional se ampliou. 

A internet mudou, por exemplo, a vida de Teresinha Barreto. Quando o sinal de internet ficou disponível e gratuito na comunidade, ela aprendeu, em videoaulas, a cortar vidro, fazer bordado, crochê, reciclar plástico e artesanato com cordas de sisal – uma fibra vegetal comum na região, bastante usada para amarrar objetos em obras e na agricultura. Depois de produzir, também aprendeu a vender. O WhatsApp e o Instagram se transformaram em uma vitrine virtual para comercializar as peças sem sair de casa. Antes da internet, as poucas artesãs da cidade tinham que ir até Amarante vender as peças na feirinha. E o negócio tem dado certo: a renda gerada com as suas peças tem sido suficiente para pagar as despesas da casa em que mora com o companheiro e as três filhas. “Meu marido tem uma borracharia, mas aqui quase não tem carro e moto, então o serviço é pouco”, explica. “Depois que a internet chegou, a gente conseguiu um jeito de conquistar o pão de cada dia dentro da comunidade”, conta à piauí. 

Teresinha Barreto, artesã do Mimbó: com internet banda larga, ela e outras mulheres da comunidade vendem nas redes sociais artesanato local – Foto: Vitória Pilar

 

O Mimbó também vive um dilema comum a muitas comunidades quilombolas: o êxodo juvenil. Ao longo dos seus 70 anos, Idelzuíta Paixão viu muitos de seus vizinhos saírem para trabalhar fora. Os rapazes iam para a construção civil, e as moças, para trabalhos domésticos em casa de família nas cidades próximas. Ela se preocupa com o futuro, porque, antes, “a pessoa envelhecia e, sem oportunidade, voltava pro quilombo”. “Os jovens merecem mais oportunidades, mas também não é justo que, depois de duzentos anos de luta, a gente veja no próximo Censo a população diminuindo por falta de oportunidades”, lamenta. O medo do esvaziamento populacional aumenta após o resultado do Censo. No Mimbó, a população oficial ficou bem abaixo das 600 pessoas estimadas pelas lideranças e pelo governo estadual.

 

Os números do Censo devem nortear União, estados e municípios em ações mais específicas para a população quilombola, ainda que respeitando a realidade cultural de cada comunidade. O líder do território quilombola Lagoas, Cláudio Teófilo, diz que os resultados são ainda mais fundamentais para as comunidades que ainda estão lutando pela regularização e titulação de terras. “Esperamos, no mínimo, algum tipo de visibilidade com esses números”, disse à piauí. “Vivíamos, e ainda vivemos, de forma apagada neste país. Quando chega algo para nós, chega atrasado. Não somos prioridade. O que a gente espera, com a contagem do Censo, é que não haja mais desculpas de que não sabem que existimos e onde existimos.”

A defensora pública Karla Andrade, coordenadora do projeto Vozes do Quilombo, responsável por agilizar processos que envolvem povos quilombolas no Piauí, diz que a falta de assistência às comunidades não ocorre por falta de informação ou de suporte legal. Tanto a Constituição Federal como o Decreto nº 4.887/2003, além de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, garantem o processo de identificação, reconhecimento e demarcação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. O que existe, no entanto, é um vácuo entre o que já está previsto em atos normativos e os direitos realizados. “É preciso que sejamos transparentes para assumir que o abismo de desigualdades que os povos quilombolas sofrem hoje também passa pelo racismo institucional”, destaca a defensora. 

Por enquanto, é difícil saber se os dados do Censo irão trazer mudanças concretas para as comunidades quilombolas. Entre a esperança e o temor do êxodo juvenil, o Mimbó tem visto sua primeira geração chegando à universidade e espera algo inédito para 2024: seu primeiro graduado por uma instituição de ensino superior pública. Ramon Paixão, de 29 anos, deve concluir a graduação de educação do campo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Para terminar os estudos, ele vive em Teresina e volta ao Mimbó nos fins de semana e feriados. “Quando era mais novo, tive que trabalhar na cidade para fazer de tudo: pintura, vendas e entregas. Agora sei que as coisas vão mudar: quero ser cientista e produzir conhecimento. Sei que sou capaz de voltar para minha comunidade e devolver o que eu aprendi.”

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