Ilustração: Carvall
O combo do crime
Mapeamento mostra que, na região metropolitana do Rio, cresceu aliança entre grupos de tráfico e milícia, rivais do Comando Vermelho
Carteiro em Bangu, Zona Oeste do Rio, Fabrício não consegue trabalhar livremente no bairro. Para cada endereço em que precise entregar correspondências e encomendas, tem de pedir permissão para o respectivo “governante”, que nunca é o poder público. Na Vila Kennedy, por exemplo, é preciso o aval do Comando Vermelho (CV); na Vila Aliança, do Terceiro Comando Puro (TCP) e nas imediações da Rua Catiri, da milícia; próximo de Padre Miguel, da Amigos dos Amigos (ADA).
De todos os bairros do Rio, Bangu é um dos poucos que concentra todos os grupos criminosos da cena carioca. “Temos um ‘combo’ do crime aqui. É um barril de pólvora que, de repente, explode”, disse o carteiro por telefone à reportagem. Ao fundo, durante a conversa, era possível distinguir o barulho de um helicóptero da Polícia Civil que sobrevoava a região naquela tarde de quarta-feira, 31 de agosto (no dia seguinte, uma operação policial prendeu três traficantes do TCP).
A disputa territorial se reflete diretamente na violência. Somente neste ano o bairro já registrou quarenta trocas de tiros, segundo o Instituto Fogo Cruzado. Nos sete primeiros meses deste ano, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), Bangu teve duas vezes mais homicídios (13,1 por 100 mil habitantes) do que a média do Rio (6,1). Também teve mais óbitos provocados por intervenção policial (6,99 contra 3,13) e mais roubos (659 contra 469). Nos últimos quatro anos, o estudante Renan, 21 anos, foi assaltado duas vezes: na primeira, levaram o seu carro; na segunda, o celular. Recentemente, ele e os vizinhos começaram a pagar 30 reais por mês para uma empresa de vigilância que faz rondas nas imediações. “Não resolve, mas pelo menos tira um pouco do medo de sair na rua”, afirma.
A divisão de um mesmo bairro por mais de um grupo criminoso é consequência do avanço dessas organizações pela região metropolitana do Rio de Janeiro, conforme aponta estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV). Baseada em 1,4 milhão de relatos do Disque-Denúncia entre 2008 e 2019, além de dados do Ministério Público estadual e do ISP, a pesquisa mapeou a presença de todas as facções criminosas e milícias no Grande Rio. É o estudo mais preciso já feito sobre esses grupos no estado, uma vez que considera apenas os pontos (denominados clusters) onde é relatada a presença dessas organizações criminosas, agrupados em um raio de até 300 metros. Outros estudos semelhantes abarcam o bairro todo como sendo dominado por aquela milícia ou facção, embora, na prática, esses grupos dominem apenas parte daquele território. “Temos aí um diagnóstico preciso do controle territorial exercido por esses grupos na região metropolitana”, afirma Joana Monteiro, coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança da FGV e uma das autoras do estudo.
O estudo constatou que, no período de dez anos analisado, as milícias e o TCP, que normalmente atuam como aliados contra o Comando Vermelho, tiveram crescimento expressivo na década passada: respectivamente, 20,9% e 17,1%. No entanto, prevalece um amplo domínio territorial do Comando Vermelho. Ainda que o CV tenha perdido 7% de áreas, ainda controlava, em 2019, 226 pontos, ou 39% da região metropolitana, principalmente na Baixada Fluminense. Uma das hipóteses dos pesquisadores é a de que a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio, no início da última década, fez com que o CV se espraiasse pela Baixada.
Para Monteiro, o fortalecimento do TCP e da milícia pode fazer com que os dois grupos se tornem um contraponto maior ao CV, mas, por outro lado, o fato de ambos estarem mais conectados com a polícia pode torná-los tão fortes que fica mais difícil contestá-los. “O equilíbrio entre grupos criminosos é muito instável”, afirma a pesquisadora.
De todo modo, a expansão da milícia e do aliado TCP gerou um embaralhamento dos grupos criminosos pelos bairros do Grande Rio: em 2019, ao menos catorze bairros da região metropolitana, dez deles na capital, tinham mais de uma facção ou milícia convivendo lado a lado (os pesquisadores não divulgaram dados de 2009 para comparação).
O único grupo que encolheu substancialmente foi a ADA (redução de 70,6%), especialmente após a prisão de Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, em 2011, e a perda do controle da favela da Rocinha para o CV, em 2018.
A principal característica do crime organizado no Rio é o domínio armado do território, com obstrução das vias públicas e vigilância dos moradores e forasteiros, como forma de monopolizar o mercado naquela área, com a consequente exploração irregular de atividades ilegais, como o tráfico de drogas e a cobrança de “taxas de segurança”, e legais, como serviços (internet, gás, luz e água) e construção civil. Entre 2009 e 2019, houve mudanças nos serviços prestados por esses grupos, com destaque para a diminuição da exploração do transporte alternativo, tanto pela milícia quanto pelas facções (para os pesquisadores, a implantação do sistema BRT pode ter contribuído para essa redução) e o aumento da exploração de água e eletricidade pela milícia. “É preciso entender que a exploração dessas atividades, legais ou ilícitas, não é lavagem de dinheiro, é receita, assim como o narcotráfico. Dizer que o problema se limita à venda de drogas é ignorar a questão central, que é o domínio do território”, afirma Monteiro.
Para a pesquisadora, a expansão dos grupos criminosos pela região metropolitana comprova a inoperância da atual política de segurança pública fluminense, baseada no confronto direto com as facções e milícias. Essa estratégia, diz Monteiro, leva a mais violência, ruptura social e erosão da confiança no poder público. As exceções, segundo ela, foram as UPPs, entre 2009 e 2013, e a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), em 2008, que romperam com esse padrão de “repressão policial militarizada”.
Para os autores do estudo da FGV, não basta apenas retomar territórios e incorporá-los ao estado. É preciso combater a capilaridade das milícias e facções por meio do controle da atividade policial, para conter os desvios de conduta (o assassinato do pedreiro Amarildo de Souza na Rocinha por policiais militares em 2013 contribuiu para erodir o projeto das UPPs); aumentar a efetividade da investigação policial e da instrução processual no Judiciário com o objetivo de dissuadir essas empresas criminais, com foco na resolução de casos de homicídio e tráfico de armas; e, por fim, aumentar a oferta de produtos nas áreas dominadas por facções e milícias, quebrando os monopólios desses grupos. Um bom exemplo é o BRT, que reduziu o investimento em transporte alternativo por parte dos paramilitares.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí