FOTO: DIVULGAÇÃO/CASA BRANCA
O dilema do impeachment
Especialistas divergem sobre possibilidade legal de Trump ser condenado após terminar o mandato; no fim, decisão deve ser política
O deprimente espetáculo de encerramento da Presidência de Donald Trump, que permanecerá no cargo até o meio-dia desta quarta-feira (20) – horário dos Estados Unidos –, talvez sirva ao menos para desvendar alguns enigmas do Direito Constitucional norte-americano. Pode um presidente da República ser acusado, condenado e afastado por aquilo que diz? E, em caso afirmativo, pode ele ser julgado e condenado mesmo após ter deixado o cargo? Vale a pena tentar responder às perguntas porque elas também são úteis para nós, brasileiros, na medida em que revelam alguns aspectos importantes do impeachment presidencial.
A primeira dúvida diz respeito ao tipo de abuso de poder que está previsto na ferramenta do impeachment: não há dúvida de que presidentes podem ser processados por aquilo que fazem, isto é, pelo uso formal de seus poderes legais contra as instituições democráticas. É menos claro, porém, se esse abuso pode decorrer apenas daquilo que dizem (incitar, instigar, mentir etc.) A segunda dúvida diz respeito ao próprio conceito do impeachment: ele serve para punir uma autoridade que violou gravemente seus deveres constitucionais, ou apenas para proteger a integridade da Presidência da República, por meio do afastamento do cargo e da inabilitação para voltar a ocupá-lo no futuro? No primeiro caso, faria todo o sentido a punição de quem já não ocupa mais o cargo; no segundo, menos.
No direito norte-americano, a resposta a essas perguntas passa pela interpretação da Constituição de 1787, pelos precedentes de outros impeachments e pelos trabalhos acadêmicos que, há muitas décadas, se dedicam ao assunto. O texto constitucional dá pistas, mas não uma resposta definitiva. Ele diz que autoridades condenadas por impeachments serão “removidas do cargo”, o que sinaliza que esse processo tem o objetivo de proteger a função pública, e não de punir a autoridade. Mas a lei também determina que as condenações poderão resultar tanto em afastamento quanto em “inabilitação para ocupar ou desfrutar de qualquer cargo, confiança ou remuneração” dada pelo governo federal. Não há nada que exclua, de maneira clara, a possibilidade de que essa punição seja imposta a alguém que já esteja fora do cargo – seja por renúncia, seja pelo término de seu mandato.
O precedente mais relevante para analisar essa questão data de 1876. Naquele ano, o então secretário da Guerra dos Estados Unidos, William Belknap, foi acusado pela Câmara dos Deputados de ter recebido propina no exercício da função. Ao presidente Ulysses Grant, que comandara Belknap no exército da União contra os confederados sulistas, na Guerra Civil, o secretário confessou ter desviado valores de contratos superfaturados. Belknap renunciou ao cargo em 2 de março de 1876.
Quando a notícia da renúncia chegou à Câmara, a Casa não havia sequer votado os quesitos de acusação (articles of impeachment) contra Belknap. No mesmo dia, os deputados aprovaram cinco quesitos contra o ex-secretário, enviados em seguida ao Senado, para julgamento. A decisão foi precedida de intensos debates, justamente para saber se uma autoridade que já não ocupava mais o cargo poderia sofrer impeachment. “A autoridade não pode escapar [da inabilitação] por uma renúncia apressada, que é virtualmente uma fuga da justiça”, protestou William Robbins, representante da Carolina do Norte. Por maioria simples, como são todas as votações de impeachment na Câmara, os deputados concordaram com Robbins e decidiram que Belknap poderia ser acusado e condenado mesmo estando fora do exercício da função.
O debate se repetiu no Senado. A pedido da defesa de Belknap, os senadores fizeram uma votação preliminar para decidir se o processo havia ou não perdido a razão de ser, devido à renúncia do ex-secretário da Guerra. Por maioria simples, decidiu-se que a ação deveria continuar. Porém, no julgamento final dos quesitos, a maioria de dois terços exigida para a condenação não foi alcançada. Belknap foi absolvido. Segundo os registros do julgamento, dos 25 senadores que votaram pela absolvição do réu confesso, 22 fundamentaram seu voto no entendimento de que o Senado não poderia julgar e condenar uma autoridade que já não estivesse mais à frente do cargo público.
O caso de William Belknap foi rememorado quase cem anos depois, em agosto de 1974, quando o presidente Richard Nixon renunciou ao cargo. Flagrado em uma série de abusos de poder contra seus adversários políticos, o que o levou a um conflito aberto contra o Congresso que tentava investigá-lo, Nixon, como Belknap, abriu mão da Presidência antes da votação dos quesitos de impeachment preparados pela Câmara.
Quando a notícia da renúncia chegou ao Congresso, a mesma cizânia se instalou entre os deputados. Enquanto os republicanos, correligionários de Nixon, insistiam que a renúncia impedia a continuidade do processo, os democratas defendiam que a acusação fosse votada. O deputado Ralph Metcalfe, de Illinois, insistia que Nixon fosse julgado porque, caso contrário, sua renúncia resultaria em impunidade: “Não temos outra saída a não ser prosseguir se quisermos assegurar que todos os futuros presidentes responderão por seus atos, quer renunciem ao cargo, quer não.”
Além do precedente de Belknap, os democratas invocaram o caso de Warren Hastings, que havia sido denunciado e processado pelo Parlamento da Inglaterra mesmo após ter renunciado ao cargo de governador-geral das Índias, em 1787. O caso de Hastings, que aconteceu no mesmo ano da convenção constitucional da Filadélfia, foi uma importante referência para os founding fathers quando o impeachment foi incluído na Constituição americana.
O argumento apresentado pelo deputado Metcalfe era contundente, sobretudo porque o vice de Nixon, Gerald Ford, havia usado o poder de perdão presidencial para poupar seu aliado de toda e qualquer acusação. O perdão protegeu Nixon contra indiciamentos e processos pelos crimes cometidos no cargo, de modo que o impeachment era a única possibilidade que restava para punir o ex-presidente.
No entanto, a despeito do esforço de alguns democratas, o processo contra Nixon morreu na Comissão Especial da Câmara. Os quesitos acusatórios aprovados pela Casa jamais foram submetidos à votação dos deputados em plenário. Prevaleceu, no fim das contas, um juízo de prudência política, que recomendava esfriar os ânimos após uma extenuante batalha entre os dois partidos. Insistir no processo contra Nixon poderia parecer uma humilhação pública a uma autoridade que já havia sido escorraçada do cargo. O momento exigia que as feridas fossem tratadas e as pontes, reconstruídas.
Entre estudiosos do impeachment, não há consenso a respeito do assunto. Opiniões de peso se inclinam para ambos os lados. Michael Gerhardt, professor da Universidade da Carolina do Norte e autor de um dos mais importantes livros sobre o tema nos Estados Unidos, publicou recentemente um artigo defendendo que o processo contra Trump deve prosseguir mesmo após ele deixar o cargo.
Além do precedente de Belknap, Gerhardt recorre a dois argumentos de princípio constitucional para embasar sua opinião. Primeiro, alega que o impeachment é fundamentado na regra de que ninguém, nem mesmo o presidente da República, é isento de responsabilidade por seus crimes. De fato, essa era uma importante diferença que os founding fathers viam entre seu “Magistrado Chefe” e os reis ingleses. Em segundo lugar, aponta Gerhardt, o impeachment serve para proteger as instituições. Para isso, nada melhor do que banir da vida pública – talvez para sempre – um político que não se compromete com a democracia e a Constituição.
Do outro lado dessa discussão está John Labovitz, advogado que integrou o memorável comitê de estudos sobre o impeachment instituído pela Câmara dos Deputados para investigar as acusações contra Nixon. Em seu livro Presidential Impeachment, Labovitz argumenta que não faz sentido levar adiante um processo de impeachment contra uma autoridade que já não ocupa o cargo – isso porque, segundo ele, essa ferramenta legal não tem o objetivo de punir pessoas, e sim de proteger instituições. “O impeachment é um remédio prospectivo em benefício do povo, não uma sanção contra uma autoridade que cometeu uma ofensa.”
A diferença entre as posições de Gerhardt e Labovitz está, portanto, no papel que cada um atribui ao impeachment. Enquanto o primeiro não nega a dimensão punitiva desse tipo de processo, o segundo enxerga nele apenas uma função de defesa das instituições. Sob uma análise rigorosa da Constituição, a opinião de Labovitz leva vantagem por duas razões. A primeira é o fato de que a renúncia não exclui a possibilidade de punição por crimes cometidos no exercício do mandato, e muito menos por aqueles que nada têm a ver com as funções da Presidência – como é o caso de Trump. A segunda é o texto da Constituição: ele prevê que o impeachment não se aplica a quem não é “funcionário civil” (civil officer) no sentido estrito do termo, e ex-presidentes estão seguramente excluídos dessa categoria.
Oprecedente jurídico do caso Belknap é o primeiro que vem à mente quando se analisa a situação de Trump, mas o processo contra Nixon talvez seja o mais instrutivo sobre o que pode estar por vir. Cálculos de estratégia e prudência política podem levar o presidente eleito, Joe Biden, a estender a mão à ala moderada do Partido Republicano e se posicionar, ainda que sutilmente, de forma contrária ao processo de impeachment – como fez a maior parte dos deputados em 1974, para não alimentar ainda mais o quadro de polarização e crise política que se instalara no país.
Paradoxalmente, a insistência na continuidade do impeachment pode ajudar Trump mais do que prejudicá-lo. Nessa contenda jurídica, os Republicanos do Senado teriam um argumento honroso e consistente para absolvê-lo, exatamente como aconteceu com Belknap em 1876. Além disso, Trump poderia alimentar a retórica de que é vítima de uma “caça às bruxas”. Nesse caso, não haveria impeachment, a dúvida a respeito da Constituição permaneceria em aberto e o trumpismo, que hoje está com o rabo entre as pernas após a vexaminosa invasão ao Capitólio, teria a gasolina necessária para inflamar sua fogueira de insanidades antidemocráticas.
Diante desse dilema, a melhor opção talvez seja enxergar o copo meio cheio e desfrutar dos ganhos que este segundo impeachment, mesmo inconcluso, já acarretou. A Câmara dos Deputados aprovou, de maneira inédita, a acusação contra um presidente por abuso de poder retórico. Trump foi formalmente acusado de “incitar uma insurreição” por meio de condutas como “emitir afirmações falsas”, “encorajar desrespeito à lei” e “exortar autoridades” a subverter processos legais. A Câmara concluiu que as palavras do presidente, por ele ocupar o cargo que ocupa, implicaram riscos graves à “segurança nacional, à democracia e à Constituição”.
Em outras palavras, a acusação contra Trump, que teve apoio de dez deputados republicanos, sugere que um presidente da República pode sofrer impeachment por aquilo que diz, desde que suas palavras representem risco concreto às instituições de um país. Não deixa de ser uma importante lição para uma época em que populistas autoritários, tanto lá como aqui, contaminam os cidadãos com mentiras e incitações contra juízes, parlamentares e até mesmo vacinas.
No Brasil, a lei de impeachment prevê um crime de responsabilidade feito sob medida para situações como a de Trump: “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.” Em 1992, esse foi um dos crimes que derrubaram Fernando Collor de Mello, após ele ter mentido sobre sua relação com PC Farias – tesoureiro de sua campanha e personagem central no escândalo de corrupção que terminou com o impeachment do então presidente. Diante do que vivemos hoje sob Jair Bolsonaro, os delitos de Collor parecem, definitivamente, um mal menor.
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