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O direito ao cinema

Reflexões de Antonio Candido sobre literatura podem ser adaptadas ao cinema, uma aventura equivalente

Eduardo Escorel | 14 ago 2019_10h42
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Tomo a liberdade de me apropriar de um texto de Antonio Candido – O Direito à Literatura, de 1988 –, incluído em Vários Escritos a partir da 4ª edição, publicada em 2004. Não satisfeito, explicito ainda que, além da fruição de filmes, o ato de realizá-los é um direito inalienável, incluído entre as modalidades da arte e da literatura que têm essa prerrogativa, conforme exposto em O Direito à Literatura.

A era digital tem sido considerada uma ameaça à sobrevivência do cinema – apocalípticos de sempre proclamam o fim do que parece não passar de um processo de mudança dos meios de produção audiovisuais simultâneo ao surgimento de múltiplas alternativas de telas nas quais se pode assistir a filmes. É verdade, porém, que cerceamentos governamentais podem pôr em risco a existência de toda produção cinematográfica nacional que dependa de isenções fiscais, receitas obrigatórias ou tributos.

Paladinos da liquidação dos mecanismos de fomento e regulação estatais menosprezam o direito ao cinema, um bem “incompressível” – noção do sociólogo, e padre dominicano, Louis-Joseph Lebret citada por Antonio Candido, que esclarece o sentido do termo:

[…] são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo à justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura.

Para Antonio Candido, “a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos”. O cinema não chega a tanto. Mas, considerado a arte por excelência do século XX, continua sendo uma forma de entretenimento de massa em escala planetária, além de se manter como objeto ocasional de fruição estética e meio de expressão pessoal de forte apelo.

A fabulação é necessidade vital, suprida no Brasil, em grande medida, pela dramaturgia televisiva. Mas a ficção cinematográfica produzida de forma independente mantém espaço próprio, ainda que restrito, sendo menos condicionada por contingências comerciais. Esse cinema é uma espécie a ser preservada pois, nas palavras adaptadas de Antonio Candido escritas pensando na literatura, ele

confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto [o cinema sancionado] quanto [o cinema proscrito]; [o] que os poderes sugerem e [o] que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante.

Há um cinema “sancionado” e é preciso haver, em toda sociedade democrática, um cinema “proscrito”. Ambos devem compor a diversidade da produção audiovisual a ser mantida a todo custo.

A peculiaridade da indústria cinematográfica ser uma “economia da singularidade”, como o produtor e escritor René Bonnell definiu em La Vingt-cinquième Image – Une Économie de L’audiovisuel, de 1989, (sem edição em português), torna a produção de filmes uma atividade de alto risco, não sendo possível assegurar de antemão o êxito, ou o fracasso, de cada novo projeto. Para Bonnell, um fenômeno inerente à atividade cinematográfica é o investimento financeiro ser “do âmbito de uma loteria para apostadores cegos”. É exatamente daí, porém, que resulta um dos grandes atrativos da linguagem do cinema – a experiência vertiginosa de fazer filmes.

“Convém lembrar”, adverte Antonio Candido,

que ela [a literatura] não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade. Por isso, nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco. Daí a ambivalência da sociedade em face dele, suscitando por vezes condenações violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever. No âmbito da instrução escolar o livro chega a gerar conflitos, porque o seu efeito transcende as normas estabelecidas.

A aventura do cinema é equivalente à da literatura. Nos termos adaptados de Antonio Candido, “[o cinema] não corrompe nem edifica […], mas, trazendo livremente em si o que chamamos de bem e o que chamamos de mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”, sendo esse seu grande valor. Humanização, no caso, é entendido por ele como

o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.

É possível pensar em um cinema que tenha parâmetros semelhantes a esses como referência? Quero crer que sim. Trata-se pelo menos de uma utopia por cuja realização vale se empenhar, por que, da mesma forma que a literatura, o cinema

corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos.

Antonio Candido assinala a gravidade da sociedade brasileira manter

com a maior dureza a estratificação das possibilidades, tratando como compressíveis muitos bens materiais e espirituais que são incompressíveis. Em nossa sociedade há fruição segundo as classes na medida em que um homem do povo está praticamente privado da possibilidade de conhecer e aproveitar a leitura de Machado de Assis ou Mário de Andrade. Para ele ficam a literatura de massa, o folclore, a sabedoria espontânea, a canção popular, o provérbio. Estas modalidades são importantes e nobres, mas é grave considerá-las como suficientes para a grande maioria que, devido à pobreza e à ignorância, é impedida de chegar às obras eruditas.

O cinema a que temos direito, pautado pela busca permanente da excelência artística, deve ter assegurado o direito de coexistir com o conjunto da produção audiovisual feita para consumo de massa.

 Isso não quer dizer que só serve a obra perfeita. A obra de menor qualidade também atua, e em geral um movimento literário é construído por textos de qualidade alta e textos de qualidade modesta, formando no conjunto uma massa de significados que influi em nosso conhecimento e nos nossos sentimentos.

Quem detém poder para influir no rumo da atividade cinematográfica deve considerar seu valor equivalente ao da literatura e do livro, e ter como objetivo organizar a sociedade

de maneira a garantir uma distribuição equitativa dos bens. Em princípio, só numa sociedade igualitária os produtos literários [e cinematográficos] poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil, onde a maioria da população […] vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura [e à frequência aos cinemas].

Nas linhas finais de seu texto, Antonio Candido escreve:

A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis de fruidores.


Nota: Os trechos em itálico, como espero ter ficado claro, são citações de O Direito à Literatura, de Antonio Candido, apresentado originalmente em forma de palestra no curso organizado em 1988 pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, publicada com o título Direitos Humanos e Literatura em Direitos Humanos e …, organizado por Antonio Carlos Ribeiro Fester, São Paulo: Brasiliense, 1989, e incluída posteriormente no conjunto de ensaios Vários Escritos.

Certamente abusei das citações, admito. O exagero decorre da precisão e abrangência do texto de Antonio Candido. Creio que ele não me censuraria por ter usado suas ideias desse modo.

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