Juventus e Inter de Milão jogam em estádio vazio - Foto - Vincenzo Pinto/AFP
O esporte sem multidões
Com estádios fechados, jogos adiados e prejuízos ainda não contabilizados, o futebol vive as incertezas da era do coronavírus
No mesmo instante em que a Itália anunciava o primeiro caso de coronavírus no país, em 21 de fevereiro de 2020, Daniele Rugani, 25 anos, zagueiro da Juventus, cabelo loiro bem cortado, barba cerrada, camisa branca, terno e gravata, descia de um ônibus em Ferrara depois de passar quatro horas viajando com os colegas de clube. Vinham todos de Turim para enfrentar a Spal no estádio Paolo Mazza. A 25ª rodada da Série A corria normalmente, enquanto as autoridades públicas apostavam em discursos confiantes no combate ao vírus, dizendo que o país não pararia. No jogo, Rugani cometeu um pênalti, saiu de campo criticado, mas ao menos a Juventus ganhou por 2 x 1. Discreto como sempre, não postou nada nas redes sociais, voltou para Turim e para o banco de reservas.
O zagueiro da Juventus, campeã italiana em todos os anos desde 2012, só voltaria a ser assunto em 11 de março, quando se tornou o primeiro atleta de elite do esporte mundial a testar positivo para o coronavírus. E um dos mais de 12 mil italianos contaminados desde aquele primeiro anúncio. Até aquela tarde fria de fevereiro com o estádio de Ferrara lotado, a Série A italiana, um dos campeonatos mais tradicionais do planeta, vivia sua melhor temporada da década. Nesses dezenove dias entre o paciente um e o paciente Rugani, a Juventus protagonizou o momento mais melancólico até agora da nova realidade do futebol na era do coronavírus: distante das multidões, com jogos suspensos ou realizados em estádios fechados durante a quarentena global para a qual o mundo vai sendo empurrado.
Nem o virologista mais pessimista poderia acreditar que Juventus x Inter, a partida mais esperada do ano, programada para 1º de março, não seria jogada na data marcada por causa da epidemia de coronavírus no país. Nem que, por esse motivo, acabaria adiada para sete dias depois e realizada sem a presença de torcedores. Em 8 de março, os dois clubes jogaram em um estádio praticamente vazio. Além dos jogadores e da comissão técnica, só cinquenta jornalistas puderam testemunhar pessoalmente o derby d’Italia.
Um dos profissionais autorizados foi a brasileira Clara Albuquerque, correspondente do Esporte Interativo. O coronavírus ainda não amedrontava, relata a repórter: “Medo nenhum. Só jornalista, tranquilo, na tribuna, com seu lanchinho, rindo dos jogadores no banco da Juve se comportando como torcedores. Dava até para ouvir o celular de algum integrante da comissão técnica tocando”. A Juventus já havia vendido 41 mil ingressos antes de o governo proibir a presença do público no estádio. Foi o último dia em que Clara saiu de casa — desde então, está fechada em seu apartamento em San Salvario, a 25 minutos do estádio.
Em 9 de março, o governo italiano suspendeu por decreto todos os eventos na península e nas duas ilhas ao menos até 3 de abril. Um jogo continuava agendado na Itália, diante das dificuldades políticas e econômicas em lidar com um vírus que se espalha com tamanha velocidade: Juventus x Lyon, em 17 de março, pela Liga dos Campeões. Com o caso de Rugani confirmado, um dos dez times de futebol mais caros do mundo foi colocado em quarentena por duas semanas e parou de treinar. Nesta quinta, a Uefa anunciou o adiamento do jogo. A nova data não foi definida.
Em 11 de março, a federação inglesa adiou Manchester City x Arsenal apenas sete horas antes do início da partida. Alguns atletas do Arsenal tiveram contato com o presidente do Olympiacos, da Grécia, que testou positivo para Covid-19. Foi o impacto inaugural do novo coronavírus na Premier League. O campeonato nacional de futebol mais rico do mundo terá de decidir se os jogos deste fim de semana serão com ou sem torcida.
O exemplo do futebol pode ser usado para qualquer situação que envolva aglomeração de pessoas — reservas perdidas para teatros, shows, restaurantes, cruzeiros — e alto risco de contágio. “Este vírus só se combate com o comportamento irrepreensível de cada cidadão”, prega o virologista Roberto Burioni, professor da Universidade San Raffaele, em Milão. Desde o início do surto na Itália, o médico ganhou mais de 250 mil seguidores nas redes sociais, tornou-se figura conhecida em programas de TV e lançou um livro (com dois capítulos sobre o novo coronavírus) em que trata do papel da ciência no combate ao vírus. “Reunir dezenas de milhares de pessoas em um estádio, na presença de um risco de infecção como o atual, seria pura loucura. Sou absolutamente contrário”, afirmou, na mesma manhã em que o governo chinês anunciava que um time de cinco médicos especialistas viajaria à Itália para ajudar a conter o avanço da pandemia na Europa. Burioni disse esperar que os adiamentos no mundo do futebol e que a experiência de assistir às partidas do time de coração na TV “com um silêncio fantasmagórico” façam o público entender que tem pela frente a maior emergência sanitária do século XXI.
Desde o início do surto do novo coronavírus, a Áustria, a Eslováquia e a Suíça suspenderam as partidas de suas ligas nacionais de futebol. Jogar sem a presença de público virou norma em vários países: Alemanha, Bósnia, Bulgária, Chéquia, Croácia, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Polônia, Portugal e Romênia. O coronavírus também assombra a União das Associações Europeias de Futebol (Uefa), que organiza a Liga dos Campeões, o torneio de clubes mais prestigioso do planeta, e a Liga Europa, uma espécie de “Série B” do futebol do continente.
Os regulamentos das competições, de 108 e 104 páginas, respectivamente, não preveem emergências desse tipo. Em casos não previstos, cabe ao Painel de Emergência da Uefa tomar decisões para as quais não cabe recurso. Este grupo, formado por cinco dirigentes de alto escalão da entidade, tem passado os últimos dias reunido – por videoconferência – para decidir sobre adiamentos, suspensões ou manutenções. Para a volta das oitavas de final da Liga dos Campeões, o painel determinou que cinco dos oito jogos fossem disputados de portões fechados — inclusive Barcelona x Napoli, em 18 de março, deixando de fora mais de 90 mil torcedores que já haviam comprado ingresso.
A Liga Europa previa mais dois confrontos entre italianos e espanhóis, ambos em 12 de março. Acabaram adiados. Os outros seis jogos da rodada foram mantidos, três sem a presença de torcedores. A venda de ingressos corresponde, em média, a 15% do faturamento dos clubes de futebol da Europa. A maior fatia do bolo (37%) cabe à venda de direitos de transmissão para a TV. Em tempos de pandemia, patrocinadores terão de aceitar a queda de exposição. Em todo o mundo, o futebol é visto na TV por mais de 3 bilhões de pessoas, movimentando ao menos US$ 50 bilhões todos os anos. Na Itália, é o principal contribuinte tributário e previdenciário, e recolhe aos cofres estatais quase € 1,2 bilhão por ano.
Os valores dos direitos de TV são uma combinação de vários fatores. O coronavírus chegou justamente no momento em que o Campeonato Italiano está vendendo seu pacote para 2021-2024, um contrato de aproximadamente € 4 bilhões. Nos contratos das ligas e das federações com as TVs, costumam ser inseridas cláusulas que definem em que termos os valores acertados podem ser reduzidos, explica Marco Rota, consultor do mercado esportivo que trabalha há 25 anos com aquisições de direitos e desenvolvimento de negócios. “Existem razões diferentes para suspensões e essas podem levar a cláusulas diferentes para a redução ou não”, explica. De qualquer forma, o modo como a liga atuou na emergência atual — ao adiar jogos com menos de uma hora de antecedência e divulgar decisões contraditórias no mesmo dia — pode gerar problemas no processo de renovação. “A gestão caótica da situação atual poderá representar um elemento de fraqueza”, diz Rota.
Para o advogado especialista em direito esportivo internacional Andrea Bozza, sócio do escritório Osborne Clarke em Milão, será cedo para fazer avaliações sobre possíveis multas e quebras de contrato até que se decida se os eventos esportivos não disputados serão considerados “suspensos, adiados ou anulados”. O que, legalmente, faz toda a diferença tanto para o torcedor que quer de volta os € 10 que pagou em um ingresso quanto para a TV que desembolsou mais de € 1 bilhão para transmitir um campeonato. “Passamos do bloqueio das escolas em Milão ao bloqueio de toda a Itália em apenas dez dias”, compara Bozza. “O coronavírus coloca na mesa uma série de casos de força maior que fazem com que jogos ou campeonatos não sejam disputados.”
Teoricamente, quando uma das partes não cumpre os termos de um contrato, pode pedir ressarcimento. Porém, diante dos casos dos últimos dias, clubes e federações podem alegar que as autoridades públicas impediram a disputa. No latim juridiquês, o factum principis: se o serviço só não foi entregue porque uma vontade superior não permitiu fazê-lo, não é preciso pagar quem se sentir lesado. “É uma emergência sanitária, econômica e política. O órgão regulador esportivo está sempre um passo atrás da decisão dos governos, não pode estar um passo à frente”, avalia Bozza.
Diante de qualquer questionamento sobre a possibilidade de mudar as datas, as sedes ou o tempo de preparação para a Eurocopa, programada para começar em 12 de junho, a Uefa responde que “continua monitorando atentamente a situação a respeito do Covid-19” e que “vai colaborar com as autoridades relevantes”. A 9 mil quilômetros de distância, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) enviou em 10 de março um protocolo sobre o tratamento do novo coronavírus para todos os clubes das três primeiras divisões nacionais, cujas partidas estão marcadas para começar em maio, enquanto aguarda audiência com o Ministério da Saúde para decidir como agir.
As eliminatórias da Copa do Mundo são de competência da Fifa, e a seleção de Tite tem jogo marcado com a Bolívia para 27 de março, no Recife. Alex Sandro e Danilo moram em Turim, na Itália, país mais afetado pela epidemia. Casemiro, Éder Militão, Felipe e Renan Lodi vivem em Madri, na Espanha, cidade que registrou mais de mil casos. A Fifa adiou todos os jogos das eliminatórias na Ásia previstos para março e abril, e nesta quinta (13) anunciou a mesma decisão para as eliminatórias sul-americanas.
Na Itália, o futebol fantasma é aperitivo diante do isolamento draconiano a que a população está submetida. O país está em quarentena desde 9 de março. Três dias depois, o governo mandou fechar tudo o que não é considerado essencial. Sobraram supermercados, farmácias e bancas de jornal. A emergência gera situações angustiantes, de pessoas presas em casa por mais de 24 horas com os corpos de parentes que acabaram de morrer. O protocolo de combate ao vírus manda que o resultado do exame seja aguardado antes da remoção do cadáver.
Qualquer deslocamento entre cidades precisa ser autorizado — o morador precisa preencher uma autocertificação de que está se deslocando por motivos de trabalho, saúde ou família, e cabe ao agente de segurança autorizar ou não. Quem mentir na autocertificação é multado e pode ser preso e processado: seis anos de prisão. Se estiver com sintomas do novo coronavírus e tentar sair de casa sem motivo, arrisca uma investigação por tentativa de homicídio culposo: 21 anos de reclusão. Foi o primeiro país a impor esse tipo de restrição em todo o território, como uma forma de diminuir o ritmo de contágio. Até 3 de abril, ao menos, a Itália viverá seu maior controle social desde os anos de guerra.
Nos últimos dias, o país acostumou-se a esperar pronunciamentos do primeiro-ministro Giuseppe Conte e a acompanhar em tempo real a Gazzetta Ufficiale, o Diário Oficial italiano. Um dos decretos sobre a quarentena foi anunciado em uma entrevista coletiva iniciada às 2h30 de um domingo, algo inédito na república italiana, fundada no fim da Segunda Guerra Mundial.
Quando o país voltar à vida normal, terá de lidar com inúmeros problemas econômicos, políticos e sociais. E ainda precisará decidir o que fazer com o campeonato, interrompido sem que 124 das 380 partidas previstas fossem realizadas. O regulamento da liga italiana não prevê tal situação, e não há jurisprudência. Até hoje, a Série A só havia interrompido sua atividade duas vezes: em 1915 e em 1943, sempre por causa de guerras mundiais. Discutir se deve haver um campeão na temporada 2019-2020 seria um ótimo debate para os bares — se eles não tivessem sido fechados.
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