O poeta Carlito Azevedo voltou a escrever depois de quase uma década. FOTO__Divulgação
O FIM DA SECA
Incapaz de compor um verso durante anos, o poeta Carlito Azevedo, um dos mais prestigiados do país, usou a psicanálise para reanimar fantasmas e voltar a escrever
Numa tarde de novembro, Carlito Azevedo respirava com dificuldade enquanto atravessava o apartamento onde mora, na Gávea. Pelo corredor estreito, entre pilhas de livros e um pôster da cantora PJ Harvey, o poeta se apressava para sair do espaço em reforma. “Fico com uma alergia danada à poeira e ao cheiro das resinas”, reclama. Há algumas semanas, teve que abrir mão dos hábitos caseiros. Sem poder ler na poltrona ou ouvir entrevistas de seus autores favoritos durante os afazeres domésticos, agora vaga pela cidade com os cabelos grisalhos despenteados e uma mochila escolar sobre um dos ombros. Quase como um flâneur carioca — ainda que a contragosto. “Acabo tendo que dormir fora porque não consigo ficar aqui.”
Aos 63 anos, considerado um dos poetas mais importantes do país, laureado com os prêmios APCA, Biblioteca Nacional e Jabuti, Carlito se acostumou a viver em um isolamento confortável, distante dos holofotes. Parte disso se deve à sua intransigência como artista: desde o primeiro livro, de 1991, não dá atenção às demandas do público-leitor, tendências estilísticas ou imposições do mercado editorial; a outra razão, mais recente, diz respeito ao fato de que enfrentou, nos últimos oito anos, um bloqueio criativo. No período, por mais de uma vez, Carlito desistiu de escrever. “É como se não tivesse mais nada a dizer, nada a pensar”, relembra, pouco depois de entrar em uma de suas livrarias favoritas, a Argumento, no Leblon. “Tive que parar para ver o que era desejo e o que era só pressão externa. Às vezes eu pensava que forças me faziam querer lançar um livro e por que me culpava tanto por não conseguir. Fiquei anos assim, com zero poemas.”
A seca se consolidou após Livro das postagens (2016). De construção engenhosa, composta por dois poemas longos, com colagens de notícias, trechos de romances e mensagens de redes sociais, o livro pareceu esgotar os procedimentos do escritor. Nos meses seguintes, a inércia se agravou: o autor passou a renegar a própria obra. Nem mesmo o interesse de acadêmicos, que garantiram ao menos três artigos elogiosos sobre o livro, o fez mudar de ideia. Queria esquecer os versos que escreveu. E para isso, como havia ocorrido durante toda sua trajetória, deveria substituí-los por poemas novos, mais frescos. O empecilho foi que sua mão havia atravancado como nunca antes. Precisava trocar de voz. “Se você pegar entrevistas de escritores do século XX, vai ver que a ambição era encontrar a própria voz. Até hoje tem gente que oferece curso assim: ‘encontre a voz própria’”, diz. “Essa ideia explodiu para mim. Você encontrou a voz própria, e agora? Vai ficar com ela para sempre? Para mim o mais interessante de cada livro é perder a própria voz. Então eu procurava por essa voz diferente, mas não achava.”
Os alunos de Carlito acompanharam a aflição de perto, mas com desconfiança. Professor de três turmas de uma oficina virtual de poesia, com cerca de quinze membros cada, ele se queixava com frequência de não conseguir, como os aprendizes, pensar em um poema próprio. Para muitos aspirantes, soava como blefe. Na parte final das aulas, quando todos deveriam ler seus poemas, riam do lamento do professor como se presenciassem uma humildade simulada. A poeta baiana Clarisse Lyra, aluna da oficina desde 2020, recorda que muitas vezes os colegas pediam que Carlito lesse um poema novo. A resposta era categórica: não tinha como. “É curioso porque na oficina a gente participa um pouco do processo do Carlito: os poemas que ele leva sempre têm a ver com uma questão que o está movendo”, diz Lyra, que publicou em 2023 Tanto tempo para aprender a escrever um poema com hortênsias, uma reunião de poemas testados durante a oficina. Lyra destaca que, mesmo em crise, Carlito nunca perdeu a devoção à poesia. Talvez por isso ela e outros alunos não tivessem dimensão do mal-estar do professor. “Por causa do repertório incrível, ele mostrava como nossos textos podiam dialogar com outras obras.”
À procura de vozes e de imaginações poéticas novas, Carlito cavava cada vez mais fundo. Buscava, para as aulas, poetas desconhecidos, de biografias incomuns e regiões distantes, a fim de inspirar não só os alunos, mas também a si mesmo no encalço por novos versos. Em uma apostila semanal, de cerca de cinquenta páginas, podia colocar autores singulares como Maria Petrovykh (Rússia), Yolanda Pantin (Venezuela), Vesna Parun (Croácia), Saleh Diab (Síria) e Hsia Yü (Taiwan), alguns traduzidos por ele. Ainda assim, nenhum deles serviu para tirá-lo da seca particular. Resultou, no máximo, em um espasmo poético entre 2020 e 2021, depois de dois convites para participar de publicações literárias. Desgostoso com as vozes provisórias, logo as rejeitou.
Com a pandemia, a inquietação com a escassez deu lugar ao desespero. Recém-divorciado e apreensivo com a contagem diária de mortos, Carlito se mudou para o apartamento desocupado de uma amiga, o mesmo que hoje está em reforma, e resolveu buscar ajuda. O primeiro passo foi se desvencilhar da desconfiança em relação à psicanálise. “Lembro de ver no YouTube uma palestra daquela intelectual búlgara, Julia Kristeva, e ela disse que tem escritores que fogem da psicanálise com medo de que sequem se descobrirem muito sobre si”, pondera. “Por outro lado, tem outros, como o [Samuel] Beckett, que agradecia ao psicanalista, o [Wilfried] Bion, por ter liberado coisas para ele. Eu, por via das dúvidas, não arriscava. Mas não fazia sentido: por que ter medo de travar uma coisa que já estava travada?”
Um dia, mais cético do que esperançoso, Carlito se viu de máscara em frente a uma psicanalista. Sentou-se na poltrona e disse: “Vim aqui porque estou há seis anos sem escrever e queria resolver isso.” A psicanalista riu, com deboche. Aos poucos, conforme as conversas evoluíam e as regras do confinamento se afrouxavam, o poeta passou a mostrar o rosto e, por sugestão da analista, a refazer o próprio passado. Reencontrou-se com sua infância na Ilha do Governador ao lado de seis irmãos. E tratou da sombra de um sétimo, falecido antes de Carlito nascer. Apareceram em seus sonhos também a casa antiga, os pais mortos, a vizinhança, as primeiras leituras e os primeiros espantos. Depois, no início da fase adulta, o curso de letras na UFRJ. “Tinha movimento estudantil, linha maoísta, trotskista, stalinista, o professor lendo Elliot, aí fui descobrindo o mundo.”
Na época estudantil, pôde escolher um nome novo: Carlito. Não queria ser chamado de Carlos, menos ainda de Cacá ou Carlinhos, apelidos anteriores. Foi também quando começou a compor os primeiros poemas, “engajados e pavorosos”, segundo o próprio. Depois, estimulado por Galáxias, de Haroldo de Campos, e Paradiso, de José Lezama Lima, passou a escrever experimentos poéticos que o agradavam. Ele mostrou a nova produção para um amigo da faculdade e foi bem-recebido. Os dois juntaram um dinheiro, inventaram uma editora e lançaram um livro independente com o nome Collapsus Linguae. O que aconteceu a seguir foi quase um roteiro de filme: o livro caiu nas mãos do crítico e poeta Nelson Ascher, à época na Folha de S.Paulo, e de Mario Pontes, editor do Jornal do Brasil, e recebeu resenhas elogiosas. Meses depois, ganhou o Jabuti de 1991. Com o dinheiro do prêmio, Carlito comprou um micro-ondas e uma máquina de lavar para a mãe. “Quando ela soube do prêmio, me perguntou se tinham lido mesmo meu livro. Não parecia levar a sério”, conta, em tom de piada. “Mas aí, quando eu saía de casa, para pegar um ônibus ou coisa assim, um vizinho me dava parabéns e falava que minha mãe tinha mostrado o jornal. Então, pelas minhas costas, ela batia na porta do vizinho e se orgulhava.”
Antes das sessões de análise, Carlito sentava em um café próximo ao consultório, na Zona Sul do Rio, e anotava os assuntos que gostaria de abordar. A psicanalista, ciente de que o poeta gostava de interpretar fatos e sonhos, sempre o jogava para um caminho inesperado. Um sonho com a recepção do border collie da ex-namorada poderia não ser sobre o cachorro com saudade dele, como o poeta queria que fosse, mas sobre as lambidas da ex. A imprevisibilidade se aplicava também às outras memórias, as infantis e as adultas, das mundanas às traumáticas. Ao fim de cada conversa, Carlito sentia nutrir um “material magmático”, perfeito para novos poemas. Mas, ao contrário do esperado, não escreveu nada durante o período em análise. Foram doze meses de consultas semanais, entre 2021 e 2022, até o dinheiro acabar. Longe da analista, continuou anotando suas questões como se ainda estivesse de frente a ela. Dessas conversas imaginárias, sabia, viriam os primeiros poemas. Só não sabia como.
A descoberta surgiu de uma brincadeira seis meses depois da interrupção da análise. Numa manhã, jogou versos em japonês no Google Tradutor e percebeu que, se trocasse um ideograma de lugar, a frase mudava completamente de sentido. Passou então a pegar versos de poetas célebres para vertê-los ao japonês e, em seguida, embaralhar os ideogramas. Os resultados faziam rir, mas também rendiam frases que, para Carlito, tinham carga extremamente poética. Um exemplo: a passagem “nas ruas da cidade caminha o meu amor”, de René Char, se transformava, com o embaralhamento de ideogramas, na frase “em algum lugar uma vaca canta sua solidão quadrimensional”. Carlito percebeu que poderia usar o jogo para encontrar o primeiro verso dos poemas. “Quando achava uma expressão que me trazia alguma sensação poderosa, eu dizia: ‘isso basta.’ Era a própria língua que escrevia aqueles versos. E de repente eu tinha um monte de disparadores. Algo que só foi possível depois de esgotar todas as noções pré-concebidas do que era poesia.”
O primeiro poema com o novo método foi sobre a mudança de apartamento três anos antes. O verso inicial continha uma memória real — o dia em que se viu parado pela última vez na porta do lar. Em segunda pessoa, o autor escreveu: “Para além/ da teoria/ da genitalidade/você mantém/ a mão direita/ na maçaneta/ sem girar.” A partir da imagem, costurou referências dos seus quinze anos: o bairro feio e arborizado na Ilha do Governador, o erotismo das fitas alugadas nos anos 1970, um pôster de Jim Morrison e a época Disco. Nos versos finais, o poeta volta à maçaneta do presente, com uma aspirina na mão, e se dá conta da presença do carro que o levaria para um novo lugar: “a mala/ no chão,/ o uber lá fora/ buzinando,/ oprimido/ opressor.”
Foi o fim do represamento. Dali em diante, Carlito iniciou uma produção caudalosa, escrevendo à mão todos os dias no mesmo lugar em que falava com piauí: numa cadeira de canto, apartada do resto do café da livraria Argumento. Nos poemas seguintes, o apartamento novo se tornou um dos ambientes principais evocados nos versos. De lá saíram passagens como um morcego invadindo a sala; um vizinho atormentado que grita contra os pobres; e a retirada de todos os objetos da mala, com exceção de um baralho de cartas. De acordo com o autor, situações reais, ainda que tecidas de forma poética.
As memórias revistas na psicanálise também vieram à tona. A casa antiga, por exemplo, rendeu os versos: “Sonho que postado em frente à casa de minha infância/ estou vendendo, na calçada, todos os livros de minha biblioteca,/ e que eles lançam uma sombra imensa sobre a casa vazia.” Já para o irmão falecido antes do nascimento, o poeta escreveu: “Meu irmão, sim, você não nasceu./ Conseguiu desviar o caminho/ que leva até o grão ajoelhado.” Também entraram uma composição para o sepultamento do pai e um poema comovente para a irmã mais velha adoecida, que morreu durante a escrita do livro: “é que não quero nunca pensar/ em quando não estejas mais,/e assim penetro,/descalço,/ o teu mundo.”
Em um ano, Carlito terminou mais de sessenta poemas. Depois de leituras de alunos, amigos e edições pontuais, decidiu quais integrariam o livro Vida: Efeito-V, lançado em outubro pela editora 7Letras. “Depois que começamos a trabalhar na edição do texto final houve algumas mudanças pontuais de arranjo, mas o processo foi até rápido”, diz o editor Jorge Viveiros de Castro.
Clarisse Lyra foi uma das leitoras de confiança selecionadas para opinar sobre os versos. “É um livro particular dentro do cenário da poesia contemporânea, do que tem sido feito.” Viveiros de Castro compartilha o impacto. “Ele consegue misturar um caldeirão de influências de todo tipo e extrair dali o sumo, a essência da vida e da arte, deixando várias camadas de leitura para serem desfrutadas.” Outra leitora fundamental foi a crítica literária Flora Süssekind. Autora de livros ensaísticos como Tal Brasil, qual romance?, ela opinou desde os primeiros poemas que Carlito lhe enviou com insegurança. Ao ler a versão final, enxergou na última parte do livro a exposição de “um percurso em fuga, um ritmo em aceleração, um sujeito que foge desesperada e ininterruptamente de alguém — semelhante, contrário, aparição, duplo?”. Também viu semelhanças com o “anjo benjaminiano da história”, em alusão ao livro do ensaísta alemão Walter Benjamin sobre a ruína do progresso em meados do século XX. Carlito gostou tanto da análise que pediu para o texto ser incorporado na orelha do livro.
Para Tarso de Melo, editor do selo Círculo de Poemas, da editora Fósforo, a obra, embora tenha demorado para sair, foi vista por ele como complemento às provocações que Carlito publicou nas redes sociais durante os últimos anos. Como se ele já viesse preparando e compondo o livro a cada postagem — tudo confluindo para o poema, ainda que o poema não viesse nunca. “Mesmo com os sumiços, quando ele publica sobre as oficinas sempre há uma provocação muito parecida com as do poema dele, toda essa movimentação em torno ou fora dos livros é da mesma natureza”, diz Melo. “Não é um livro que surge no silêncio. Para ele pode ser sofrido, ele pode ver o hiato como quebra, mas o leitor não vê necessariamente assim.” O poeta e editor afirma ainda que a capacidade de Carlito de “colocar pulgas atrás da orelha de novos e velhos poetas é inesgotável”. “O jeito como ele olha, lê, propõe e interage com as coisas é desviante.”
A finalização da obra coincidiu com a necessidade do poeta de se mudar de casa outra vez, cuja localização é indefinida. A amiga proprietária do apartamento na Gávea comunicou, dias depois da entrega da versão final de seu livro, que em breve voltaria do doutorado nos Estados Unidos. Após concluir a reforma que iniciou como forma de retribuição à ela, Carlito estará novamente com a mão na maçaneta. “É o fim de um ciclo. Estou em um estado de emergência, o que é ótimo. Você não sabe o que vai emergir e ao mesmo tempo fica feliz e espantado.” Depois de encontrar um novo lar, Carlito tem planos de relançar a revista de poesia Inimigo Rumor, que revelou, a partir de 1997, poetas como Angélica Freitas, Marília Garcia, Ricardo Domeneck e Marcos Siscar. Para Tarso de Melo, a Inimigo Rumor foi “o grande fato da poesia brasileira das últimas décadas”. “Teve uma coisa ali que foi fundamental: a ideia de que o conceito de geração, que se via nos livros de história e teoria literária, com recortes seguros, muito profundos e estáveis, não fazia sentido”, diz Melo. “Ver poetas de 20 anos junto de Ferreira Gullar, Chico Alvim ou Augusto de Campos, e imaginar o Drummond como alguém que escreve de 1920 até 1980 e é contemporâneo de toda a corrente de autores desse espaço de tempo, representou, para quem escreve, uma mudança significativa de perspectiva.” O objetivo de Carlito com a nova edição depois de dezessete anos é apostar em mais poetas novos. Mas isso, claro, sem pressa. “Quando vai ser? Quando tiver tesão.”
Na noite anterior ao encontro com a piauí, Carlito havia lido seus novos poemas em público pela primeira vez, em um evento organizado pelos poetas do grupo CEP 20.000, no Espaço Cultural Sérgio Porto, no Humaitá. Embora tenha sido bastante aplaudido e gostado da experiência, afirmou que é difícil ler poemas densos e introspectivos em um ambiente dado a ações e reações mais impetuosas. Vê uma lição nisso. “Não se deve tomar o aplauso como medida de que isso deu certo, isso deu errado. Nem crítica pode-se levar muito a sério, senão você escreve só com base nisso. O problema de anos de neoliberalismo é que livro bom é o que vende, música boa é a que faz sucesso, e aquela noção de escrever em atrito com o público, como era na Semana de Arte Moderna e na Tropicália, desapareceu.”
O poeta se diz pouco preocupado com a recepção de seu novo livro. A exceção é em relação à psicanalista. “Achei que seria a primeira pessoa a quem mandaria, mas só tomei coragem de deixar na portaria dela anteontem”, conta, após uma risada encabulada. Em mensagem, avisou a ela que era uma tentativa de continuar uma conversa infinita.
Nos minutos finais da conversa com a piauí, Carlito ouviu que talvez fosse o único capaz de viver exclusivamente de poesia. Pensativo, não disse nada. Dias depois, respondeu pelo WhatsApp: “Acho que para me dedicar somente a ela, foi preciso fazer escolhas radicais”, escreveu. “Principalmente a de uma vida concentrada: dois ou três amigos, uma livraria do coração, um café, vinte passos da porta de entrada até a cama, não me sentir preso a nada.” O poeta, enfim, havia transbordado.
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