CARLA CAFFÉ_2024
O fim da única livraria num raio de 1 km na Amazônia
Fundada em 2019, a Xingu ficava na cidade paraense de Altamira
Numa tarde abafada de outubro, Moisés da Costa Ribeiro encaixotava centenas de livros enquanto se lembrava mais uma vez da dívida com editoras que o assombra há pelo menos três anos. Desde 2019, ele tocava sozinho a Xingu, única livraria de Altamira e num raio de 1 mil km em torno da cidade paraense. Agora, a loja fechou. “Estou triste demais…”, lamenta o comerciante na edição deste mês da piauí. Seu desejo quixotesco de “vender livros progressistas” à beira da Floresta Amazônica sofreu um baque difícil de reverter.
A Xingu ficava na região central de Altamira. Ocupava um pequeno box dentro do Camelódromo José Góes, espaço implantado pela prefeitura onde se negocia de tudo: roupas, calçados, bijuterias, adornos, flores artificiais, games, licores e garrafadas com produtos medicinais. “Sempre soube que o público de lá não curte muito literatura. Mesmo assim, insisti na coisa”, disse Ribeiro ao repórter Jamil Chade. O comerciante acreditava que os eventuais leitores iriam preferir comprar livros in loco em vez de online. “Encomendas pela internet geralmente levam um tempão para chegar até o interior da Amazônia.”
Natural de Bragança, outro município paraense, o livreiro de 52 anos não completou o ensino médio. Nem por isso deixou de adquirir o hábito da leitura. O fascínio pelas ideias de esquerda lhe despertou o gosto por autores “de viés combativo”. Foi em setembro de 2009 que Ribeiro se mudou para Altamira. Ele engrossava o Movimento dos Atingidos por Barragens, que lutava contra a construção da Hidrelétrica Belo Monte na cidade e em seus arredores. Já durante a década de 1970, o projeto da usina gerava reclamações de ativistas preocupados com o impacto do empreendimento – que, de fato, levou toneladas de peixes à morte na bacia do Rio Xingu, inundou vastas áreas da floresta e afetou o cotidiano de diversas comunidades tradicionais, como as indígenas e ribeirinhas.
Em julho de 2012, quando as obras de Belo Monte completavam treze meses, Ribeiro se afastou do movimento e arrumou um trabalho de motorista no Ministério da Saúde. Sete anos depois, por estar desempregado, resolveu apostar na livraria. Com a Xingu, que reunia cerca de novecentos títulos, o comerciante buscava “conscientizar as pessoas em relação à complexidade do mundo”. No começo, só oferecia livros ensaísticos, notadamente sobre racismo, feminismo, ambientalismo e sociologia. Mais tarde, cedeu à poesia e à ficção, mas sem perder o foco ideológico.
Embora pagasse apenas 57 reais pelo aluguel mensal do box no camelódromo, Ribeiro nunca teve lucro, o que lhe exigiu sacrifícios consideráveis. Ele raramente tirava férias, não viajava nem sequer nos fins de semana e nunca conseguiu comprar a almejada casa própria. Por falta de tempo, adiou duas cirurgias que precisa fazer no quadril. A mulher do livreiro – ex-funcionária da prefeitura que se tornou vendedora de lingerie – arcava com os principais gastos domésticos. O pouco dinheiro que entrava na loja permanecia ali mesmo.
Há um ano e meio, o comerciante se separou. O término do casamento inviabilizou de vez a livraria, que acumula débitos de aproximadamente 25 mil reais. “Agora tenho de sustentar uma casa sem ajuda de ninguém. Não posso mais perder grana.”
Em 12 de setembro, o livreiro usou o Facebook e o Instagram para anunciar o fim do negócio. No post, definiu a Xingu como “uma experiência maravilhosa, gratificante e desafiadora”. Também escreveu que fechar as portas da loja está lhe causando “uma dor imensa no coração”. “Parte de mim se vai com o encerramento das atividades”, lastimou, antes de prometer saldar as dívidas: “Faço questão disso.”
Assinantes da revista podem ler reportagem neste link.
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