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O funk como gênero humorístico

No rap a miséria exige, com séria dignidade, horizontes de mudança. No funk, a miséria quer simplesmente gozar.

Paulo da Costa e Silva | 05 fev 2016_12h33
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Quanto penso no funk carioca naturalmente sou levado a pensar também no rap paulistano. Os dois vieram da pobreza, da ralé urbana, mais ou menos no mesmo momento da história recente do Brasil. Criaram seu próprio jeito, sua própria linguagem, seus próprios modos de existência. Extravasaram os limites da comunidade e se impuseram na indústria cultural, determinando uma parte considerável de suas tendências. Criaram seus próprios circuitos, articulando autores, obras e público sem depender da benção do mainstream. Depois, claro, foram abençoados. Por afirmação ou negação, com ou sem resistência, tornaram-se parte incontornável de nossa história musical – da ideia confusa, gasta e dilacerada, mas ainda existente, de música brasileira. Funk e rap parecem nutrir um parentesco subterrâneo. Os dois foram trazidos de fora, e há neles a presença de um elemento “estrangeiro” que parece ter sido necessário para mover uma vida social que de outro modo permaneceria excessivamente inerte, excessivamente presa aos seus velhos jeitos e paixões. O funk e o rap oferecem respostas diametralmente opostas para problemas semelhantes: a miséria, a exclusão, a tentação do crime, etc. E é justamente nessa oposição que um ajuda a revelar melhor o outro, como numa espécie de espelho invertido.

Como ouvinte, sinto-me mais próximo do rap paulistano. Chego a crer (com grande possibilidade de equívoco), que o rap atingiu níveis de realização artística que o funk não atingiu. Ainda assim, o funk me parece, no fim, um acontecimento mais enigmático, talvez mais original do que o rap. Um acontecimento que toca mais fundo em questões cruciais da vida brasileira. Questões que guardam a marca desconcertante da ambiguidade, da indefinição. Que não podem ser resolvidas com um único golpe de raciocínio, mas permanecem em estado de suspensão.

Perto do funk, o rap me parece meio óbvio. Seus valores, diretrizes, códigos de conduta, são todos muito aparentes. E todos igualmente compartilhados. É como se ele fosse um acampamento de guerra. Seriedade, disciplina, sentido de ordem. Qualquer questionamento de sua “vontade edificante” deve soar frívolo diante da urgência e do massacre do real. Aqui a música ganha uma função que vai muito, muito além do entretenimento: ela deve salvar vidas. E para quem está nesse embate, o contrário da ordem é o caos e a morte. Por isso, tudo respira coerência. Até a poética do rap me parece perfeitamente clássica em sua limpeza e ordenação. O gênio de Mano Brown traz a voz e os trejeitos da periferia, mas o faz com tamanho virtuosismo que torna possível, e nada forçada, uma comparação de suas letras com aquelas de Chico Buarque ou de Aldir Blanc. Estamos no mesmo território.

Pode ser que o rap não seja a “negação da canção brasileira”, como foi colocado por Chico, mas que seja justamente sua continuação. Uma continuação politicamente mais definida, com maior consciência social, protagonizada por sujeitos que falam de dentro do horror de sua precária condição – com uma presença concreta na vida e um sentido de utilidade que a MPB há muito perdeu.

Tudo isso fez o rap ser acolhido com entusiasmo por boa parte do pensamento de esquerda. O tom de guerrilha acena diretamente aos antigos sonhos revolucionários – ao elo perdido entre arte e revolução. O aspecto “clássico” de sua linguagem, e a presença monumental da figura de Brown, abriram caminho para o reconhecimento de seu valor estético. Com o entusiasmo, suas contradições foram minimizadas. Pouco se toca nos aspectos espinhentos do rap. Por exemplo: sua hostilidade (direta ou velada) ao universo feminino. Outro exemplo: o curto alcance da visão que vê o mundo dividido entre “nós” e “eles”, sem acenar para nada além disso. Ou ainda: a tendência à rigidez, ao ar sisudo, à desconfiança e ao ressentimento, sua relação ambígua com o capitalismo, sem afirmá-lo mas também sem negá-lo completamente…

O caso do funk me parece inteiramente diverso. As reações ao funk oscilam entre a apologia complacente (devemos saudar a música da ralé, seja qual for) e a recusa tacanha (isso é um lixo, um mero sintoma de nossa miséria social). Nenhuma me interessa muito. Pra mim, o funk habita o espaço da perplexidade e da dúvida. Talvez seja o limite da minha escuta, mas o funk quase sempre me deixa desconcertado. Se o rap opera no registro da afirmação, o funk, em sua aparente frivolidade, nos joga no terreno da indefinição. Tudo nele é ambigüidade.

Por exemplo: o corpo. No funk, o corpo parece o índice de uma energia vital, exuberante, livre de séculos de repressão cristã, livre do doutrinamento do “respeitável”, corpo que vibra na alegria de simplesmente existir, signo de uma potência que quer se realizar… mas parece também o índice perverso de um corpo espremido, coisificado, transformado em engrenagem descartável e sem espírito, o restolho de carne do antigo moinho escravocrata estendendo-se no capitalismo contemporâneo. Um vídeo mostra cenas de uma “batalha do passinho” encenadas sobre um estande da Coca-Cola. Crianças e adolescentes, todos descalços, dançam lindamente, cercados pela cor vermelha e pelas logos da empresa. No intervalo, latas e mais latas são lançadas para a multidão que assiste, o que me leva a pensar que, dos canaviais aos biscoitos recheados e refrigerantes, não superamos ainda o império do açúcar.

Com seu andamento regular, sua cadência vocal, o rap evoca a horizontalidade monótona das periferias de SP. Os arroubos do funk, por sua vez, remetem às formas ondulantes dos morros cariocas. Remetem também às formas redondas das bundas que habitam fundo seu imaginário. É possível imaginar uma funkeira intelectual – como aconteceu no caso da Valeska Popozuda -, mas é quase impossível imaginar uma funkeira sem bunda. Longe de segregar o universo feminino, o funk parece feito da mesma substância glútea que define, no seu ponto de vista, o próprio feminino. Podemos mesmo nos perguntar se boa parte do funk não foi erigido sob um princípio de sacralização da bunda – a bunda como instrumento de poder (literalmente, nas famosas “surras de bunda”), e como símbolo do prazer. De uns tempos pra cá o canto do funk se tornou mais assertivo. MC Carol canta como se estivesse sempre dando um esporro em alguém. Mas se você sondar o que está na base dessa bronca, quase sempre vai descobrir uma demanda por prazer. Porque se no rap a miséria exige, com séria dignidade, horizontes de mudança, no funk a miséria quer simplesmente gozar. E o que dizer sobre o escracho sexual, a vulgaridade crescente do funk? Índice de liberdade e independência da caretice? Ou será que o funk apenas reflete, ou até antecipa, com traços mais grosseiros e menor dissimulação, tendências mais amplas de espetacularização sórdida da vida íntima, de invasão pornográfica de todas as esferas da vida?

Tanto no rap quanto no funk, a vida parece estar sempre por um triz. Mas enquanto o rap transforma isso em vontade de articulação política (pagando o preço do ar sisudo, da rigidez e do moralismo), o funk seguiu a trilha de uma adesão cada vez mais sensualista ao presente. Não espanta, portanto, que uma de suas metamorfoses mais recentes tenha sido aquela que levou do “proibidão” ao “funk ostentação” – apologia do crime e apologia do consumo sendo duas faces da mesma moeda.

Nos últimos tempos o funk tem se tornado, ao meu ver, um gênero humorístico. Pesadamente humorístico, eu diria. Com isso, ganhou um novo sentido corrosivo, bem diferente dos clássicos melódicos de seu início, como “Eu só quero é ser feliz”. As chacotas de Catra com a bossa nova e a MPB são o exemplo mais canhestro e desconcertante. Mas existe também o humor negro de MC Carol, em versos como “a maconha te engorda, use crack que é mais light”, as vinhetas-chiclete de MC Bin Laden, etc. Há nisso tudo a marca da criação, da inventividade, do talento. Mas essa criação aparece quase sempre como ato isolado – não ganha espessura, é não cumulativa, não cria sentido de continuidade. Ou seja, não cria tradição. Basta ouvir o velho Monarco cantando “antigamente era Paulo da Portela, agora é Paulinho da Viola”, para sentir o acúmulo de forças de uma tradição. O funk parece trancado num eterno presente. E segue zombeteiro, rindo e fazendo rir.

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