O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), na chegada ao Congresso Gabriela Biló/Folhapress
O golpe final de Arthur Lira: cambalacho, sigilo e deboche
A derradeira manobra do presidente da Câmara captura as emendas das comissões, privilegia Alagoas mais uma vez, descumpre lei e zomba das decisões do STF
Poucas vezes, talvez apenas no regime de exceção, uma autoridade nacional fez tão pouco caso de decisões do Supremo Tribunal Federal – e tripudiou sobre determinações legais. Como golpe final de seu quadriênio como presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL) acaba de comandar uma operação ilegal que anula os poderes das comissões permanentes e promove desvio do destino previamente determinado para as emendas, redirecionando os recursos para o estado que o elegeu, e inaugura uma nova fase do orçamento secreto. Dessa forma, acaba de ser criado um novo mecanismo: as “emendas dos líderes”, cujo objetivo é o de sempre: esconder quem é quem nas planilhas de bilhões de reais.
O cambalacho é liderado por Lira, mas tem como cúmplices dezessete líderes partidários da Câmara, incluindo seu probabilíssimo sucessor, Hugo Motta (Republicanos-PB), e o líder do governo Lula, José Guimarães (PT-CE).
O esquema começou a ser gestado na tramitação da Lei Complementar nº 210, sancionada em 25 de novembro deste ano, quando os legisladores estabeleceram que as emendas de comissão poderiam ser indicadas pelos líderes partidários. Até aí, embora a medida não favorecesse muito a transparência, não havia irregularidades. A lei deixava claro que as trinta comissões permanentes da Câmara deveriam analisar as indicações recebidas de seus integrantes, aprovar as que coubessem e então fazer esses valores “constar de atas, que serão publicadas e encaminhadas aos órgãos executores” – ou seja, os ministérios.
O golpe, porém, veio na quinta-feira, 12, em dois atos. Primeiro, Lira suspendeu, de uma hora para outra, o funcionamento das comissões permanentes e proibiu a reunião de seus integrantes entre 12 e 20 de dezembro. Tornou, assim, impossível que deliberassem sobre as emendas.
Em seguida, os dezessete líderes partidários encaminharam um ofício sigiloso ao governo, com uma lista de 5 449 indicações de emendas de comissão, cujos valores somam 4,2 bilhões de reais, sob o pretexto de “ratificar” as indicações previamente apresentadas pelos integrantes das comissões. Nessa lista, porém, a piauí identificou uma série de “novas indicações”, que somam 180 milhões de reais, além de outras alterações que chegam a 98 milhões de reais. A maior parte desses valores foi para Alagoas, o estado que Lira representa no Congresso. E pelo qual planeja se candidatar ao Senado em 2026.
O ofício tem como destinatários o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e o ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e circulou entre integrantes do governo. O documento obtido pela piauí foi registrado no site da Câmara sob restrição de acesso com o número 14335458/2024, tendo como procedência “SGM.UT” — a Secretaria-Geral da Mesa, que responde a Arthur Lira.
Toda a operação – suspensão das comissões, proibição das reuniões, remanejando das emendas – é irregular, mas não apenas isso: transforma em pó todo o esforço que o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Flávio Dino, vem dedicando para que as emendas sejam utilizadas respeitando a Constituição e os princípios da administração pública, com um mínimo de transparência.
Segue abaixo uma radiografia das ilegalidades da operação:
A PRIMEIRA ILEGALIDADE. O ofício sigiloso dos dezessete líderes, obtido pela piauí, descumpre o artigo 5º da própria Lei Complementar 201, pois foi enviado sem análise e aprovação das comissões, já que Lira suspendeu todas elas. Diz o artigo: “aprovadas as indicações pelas comissões, seus presidentes as farão constar de atas, que serão publicadas e encaminhadas aos órgãos executores em até 5 (cinco) dias.” Portanto, em vez de cumprir com as regras do Judiciário e do Executivo, o que ocorreu na prática é a usurpação das emendas das comissões pelos líderes.
Em sua decisão de 2 de dezembro, referendada pelo plenário com unanimidade, o ministro Flávio Dino descartou expressamente a possibilidade de existir a figura da “emenda de líder partidário” e estabeleceu: “Para o devido controle social, é imprescindível que qualquer modificação relacionada à execução das ‘emendas de comissão’ – por exemplo, com vistas à destinação a uma ação específica – seja aprovada pelas comissões e devidamente registrada em ‘ata’”. Dino reforçou que a execução das emendas de comissão “exige a apresentação de ofícios e atas com todas as informações mencionadas, inclusive o destino específico do recurso, sob pena da caracterização de impedimento de ordem técnica, na forma do art. 10, XXIII, da LC nº. 210/2024, tal como já mencionado em relação às ‘emendas de bancada’”. Ou seja, se estiver fora das regras, o governo pode barrar a destinação dos recursos.
A SEGUNDA ILEGALIDADE. Os dezessete líderes escreveram no ofício sigiloso destinado ao governo: “por meio deste, ratificamos as indicações que foram previamente encaminhadas aos Ministérios pelas Comissões desta Casa.” Trata-se de uma informação falsa. Não houve apenas ratificação. Houve exclusões, inclusões de indicações (de 96 milhões de reais) e “novas indicações” (de 180 milhões de reais). Estas novas indicações, aliás, são abertamente ilegais, pois não poderiam ter sido feitas sem a aprovação das comissões, cujas atividades estavam suspensas por ordem de Lira.
Nesse golpe, as digitais do presidente da Câmara aparecem não apenas na suspensão das comissões, como também no destino dos recursos. Dos 4,2 bilhões de reais em emendas de comissão, mais de 11% – 479,7 milhões – são endereçados para Alagoas, o estado mais beneficiado. E nas novas indicações, que nunca passaram pelas comissões, o estado também é o líder. De um total de 180,6 milhões de reais, 73,8 milhões irão para Alagoas, à frente do Rio de Janeiro, com 21,6 milhões, em uma demonstração de que, mesmo nas “emendas de líderes”, quem manda é o presidente da Câmara.
Além de tudo, o ofício sigiloso descumpre as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e a Portaria Conjunta nº 115, publicada pelo governo federal, que exigem transparência para liberação dos recursos das emendas de comissão, mecanismo que mantém vivo o orçamento secreto.
A TERCEIRA ILEGALIDADE. No ofício, os líderes, coletivamente, assumem todas as indicações de emendas de comissão como se fossem, eles próprios, os solicitantes. É uma afronta às múltiplas decisões do STF, que exigem a identificação dos reais autores de cada indicação. O esquema do orçamento secreto tem este nome justamente porque é mantido em segredo o deputado ou senador atendido com cada emenda. Para cumprir com a lei e as decisões do STF, cada líder deveria ter encaminhado uma lista com as indicações dos deputados que compõem a bancada partidária. O encaminhamento do ofício misturando todos os líderes partidários, como se fosse um consórcio, faz com que não seja possível identificar sequer qual volume de recursos foi para cada bancada partidária.
A QUARTA ILEGALIDADE. Ou, nesse caso, inconstitucionalidade: a ausência da identificação de cada deputado.
Além das decisões do STF, foi violada a Portaria Conjunta editada pelo governo federal para a retomada dos pagamentos das emendas. Os descumprimentos mais evidentes dizem respeito à necessidade de individualização das emendas de comissão. A finalidade dessa determinação, feita pelo Supremo Tribunal Federal, é permitir que a sociedade saiba qual parlamentar indicou o repasse de verbas para cada beneficiário, município ou associação.
Além de desobedecer ao STF, a situação mascara uma tentativa de aparentar cumprimento de uma norma que está sendo violada. Esse é um passo que adiciona gravidade à desobediência às decisões da corte. O ministro Flávio Dino, relator das ações sobre o orçamento secreto no STF, tem reiterado que não pode continuar a haver a destinação de verbas sem a identificação de quem as indicou, mas a Câmara, com essa decisão, deu um “passa-moleque” no magistrado.
Um último aspecto nada republicano do golpe final de Lira é que a lista de indicações apresentadas pelos líderes ao governo também exclui obras que já tinham até o empenho de verbas, uma prática revelada pela piauí na reportagem O Sequestrador, em novembro, que agora foi ampliada. Por exemplo, o presidente da Comissão de Integração e Desenvolvimento Regional, o deputado José Rocha, que bateu de frente com Arthur Lira, foi alvo da vingança mais uma vez: os líderes, a mando de Lira, retiraram da lista de emendas outras obras do município de Coribe, o berço do clã Rocha. A exclusão de emendas empenhadas deveria depender de razões técnicas, e não políticas, como é o caso, e contraria todos os princípios orçamentários e da administração pública.
Segundo o consultor legislativo do Senado Fernando Moutinho, especialista em orçamento, a operação liderada por Lira fere diretamente a Lei Complementar 210/2024 e a LDO/2024. “A portaria 115, ao afirmar que ‘quanto às programações classificadas como RP8, considera-se como solicitante qualquer parlamentar que assim se identifique’, não afasta as exigências legais. A LDO/2024 já determinava que as indicações devem ser feitas pelos autores, ou seja, os próprios integrantes das comissões. Com a Lei Complementar 210, isso ficou ainda mais claro, exigindo reunião, ata e encaminhamento formal pelo presidente da comissão. Esse rito foi ainda reiterado pelo Supremo Tribunal Federal em decisão de 3 de dezembro.”
Em uma nota técnica que elaborou, Moutinho já havia alertado que as decisões do STF não foram contempladas no projeto da Lei Complementar 210. Agora, ouvido pela piauí, acrescentou que a responsabilidade pelo cumprimento da Lei Complementar e das decisões judiciais recairá também sobre os ordenadores de despesa, ou seja, sobre o Executivo.
Procurada pela piauí sobre o tema, a Secretaria de Relações Institucionais do governo mandou a seguinte nota:
Todas as comunicações oficiais que chegam à SRI sobre execução orçamentária de emendas são remetidas, em caráter informativo, aos respectivos ministérios executores. Cabe destacar que a execução tem ocorrido em absoluto respeito à decisão do Supremo Tribunal Federal, conforme estabelecido em portaria interministerial (Relações Institucionais, Fazenda, Planejamento e Gestão) e em parecer da Advocacia Geral da União, ambos emitidos na semana passada.
Por força da legislação vigente, cabe a cada órgão executor das emendas prestar contas das exigências quanto à transparência de cada projeto, bem como proceder com a análise técnica para a respectiva de liberação de recursos.
Abaixo, a lista dos dezessete líderes que assinaram o ofício e o instante em que o fizeram:
Doutor Luizinho (Progressistas-RJ) – 12/12/2024, às 16:46
Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ) 12/12/2024, às 17:06
Jose Guimarães (PT-CE) – 12/12/2024, às 17:12
Altineu Cortes (PL-RJ) – 12/12/2024, às 17:16
Odair Cunha (PT-MG) – 12/12/2024, às 17:29
Afonso Motta (PDT-MG) – 12/12/2024, às 17:30
Hugo Motta (Republicanos-PB) – 12/12/2024, às 17:31
Fred Costa (PRD-MG) – 12/12/2024, às 17:36
Luciano Amaral (PV-AL) – 12/12/2024, às 17:40
Adolfo Viana (PSDB-BA) – 12/12/2024, às 17:44
Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL) – 12/12/2024, às 17:46
Elmar Nascimento (União-BA) – 12/12/2024, às 18:03
Luis Tibé (Avante-MG) – 12/12/2024, às 18:11
Romero Rodrigues (Podemos-PB) – 12/12/2024, às 18:13
Alex Manente (Cidadania-SP) – 12/12/2024, às 18:16
Gervásio Maia (PSB-PB) – 12/12/2024, às 18:22
Antonio Brito (PSD-BA) – 12/12/2024, às 18:32
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