8/1 – A Democracia Resiste está disponível no Globoplay (Foto: Divulgação)
O golpe fracassado
Para ser um “filme documentário”, o relevante 8/1 – A Democracia Resiste precisaria, em primeiro lugar, ter um viés pessoal
Em horário mais adequado para casais noctívagos (23h30), 8/1 – A Democracia Resiste, com roteiro e direção de Julia Duailibi e Rafael Norton, estreou na GloboNews no domingo 7 de janeiro, véspera de o vandalismo golpista, em Brasília, completar um ano. No dia seguinte, foi reapresentado, e agora está disponível na Globoplay.
O título deixa claro que se trata de uma reportagem focada na reação, em 8 de janeiro de 2023, à turba invasora que depredou setores do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal (STF) e dependências do Congresso Nacional. Evento de extrema violência cujas implicações políticas merecem, sem dúvida, ser esquadrinhadas.
No caso específico de 8/1 – A Democracia Resiste, porém, mesmo reconhecida sua relevância, merece reparo o equívoco conceitual de apresentar uma reportagem televisiva como sendo um “filme documentário”. Indicar esse erro não pretende aventar uma firula semântica, pois há diferença notória entre, de um lado, o que pertence ao âmbito do jornalismo e, de outro, uma forma específica de cinema. Confundir uma espécie de audiovisual com outra, em busca talvez de obter maior prestígio, pode induzir o telespectador arguto a ter expectativa de assistir a algo que não lhe será oferecido e daí se sentir frustrado.
Para ser um “filme documentário”, 8/1 – A Democracia Resiste precisaria, em primeiro lugar, ter um viés pessoal de Duailibi e Norton a respeito dos fatos narrados, indo além da mera tentativa de reconstituir os acontecimentos. Seria necessário, ademais, que a dupla de diretores não se mantivesse quase sempre oculta, em posição de neutralidade adequada para repórteres e, pelo contrário, interagisse com os entrevistados, no lugar das aparições, em geral fugazes e silenciosas, com a expressão desconsolada, de Duailibi.
Em um “filme documentário” seria questionável recorrer a imagens do acervo de uma emissora de televisão, gravadas para serem acompanhadas de locução em programas jornalísticos, como se fossem representação da realidade factual. É o que ocorre em 8/1 – A Democracia Resiste, por mais que alguns registros sejam ratificados por entrevistas em voz off. Tampouco deveria ser acolhido, quase sempre como verdadeiro, o que dizem participantes dos eventos – em especial por serem na maioria integrantes do governo federal, membros do Legislativo, do Judiciário e do funcionalismo público, todos interessados em defender sua atuação no 8 de janeiro. É isso, no entanto, que a reportagem de Duailibi e Norton faz ao reduzir na edição relatos pessoais a trechos brevíssimos e adotar a costura dos fragmentos resultantes como voz condutora da narrativa.
Uma exceção, salvo engano a única ao longo de 8/1 – A Democracia Resiste, acentua a falta de questionamentos feitos pela entrevistadora. Duailibi intervém, com cautela, quando o ministro da Defesa, José Múcio, fala sobre o acordo feito com o general Dutra, então comandante Militar do Planalto, para que as prisões no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, fossem feitas só na manhã do dia seguinte aos atos de violência (9 de janeiro): “Mas parece, assim, por um lado, que a última palavra foi do Exército”, Duailibi diz. Múcio nega com um simples “não”, ao qual ela retruca: “Sim, ‘aqui não entra‘”, citando o que o general Dutra teria dito a Ricardo Cappelli, interventor federal do Distrito Federal, nomeado horas antes, que pretendia entrar no acampamento e efetuar as prisões naquela mesma noite. Múcio, conciliador por excelência, insiste: “Mas não foi. Depois, a própria Polícia Federal, o próprio Cappelli, as próprias pessoas que não eram do comando, chegaram à conclusão de que seria imprudente o enfrentamento. Nós tínhamos outros problemas para serem enfrentados.”
Um dos inegáveis méritos de 8/1 – A Democracia Resiste é reproduzir informes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que avisavam, desde 6 de janeiro, haver “risco de ações violentas contra edifícios públicos e autoridades”. Subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, a Abin enviou alertas de inteligência ao chefe do GSI na época, general Gonçalves Dias (conhecido como G Dias), mas o presidente da República não foi avisado, conforme se pode depreender de depoimentos incluídos na própria reportagem. Em 8 de janeiro, às 13h40, outro alerta informava haver o “sentimento entre os manifestantes de que as forças de segurança do DF e do EB [Exército brasileiro] não irão confrontá-los. Em todo o acampamento, circulam conversas e mensagens de aplicativo afirmando que a PM e Forças Armadas estariam apoiando”.
Os fatos confirmaram os alertas de inteligência. Diante do Congresso Nacional, os ocupantes estenderam uma faixa com a palavra “intervenção” pintada em letras maiúsculas pretas; em outra, bem menor, embora mais explícita, pedia-se intervenção militar. “Vários réus”, afirma o ministro do STF Alexandre de Moraes, disseram que “tiveram palestras… nos quartéis… para que invadissem os prédios públicos… e ficassem até que fosse decretada uma GLO [Garantia da Lei e da Ordem] para convencer os militares quando chegassem a aderirem ao golpe.” Detidas no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército, “1927 pessoas”, segundo legenda no final da reportagem de Duailibi e Norton, “foram levadas para a Superintendência da Polícia Federal”. No caminho, um dos detidos mostra pela janela de um dos ônibus uma folha de papel onde está impresso “S.O.S Forças Armadas”.
Lamentável, pois, é o que a longa relação de legendas, no final da reportagem, informa – alguns dos principais personagens do 8 de janeiro de 2023, em Brasília, apesar de procurados, não aceitaram gravar entrevista, inclusive os generais Arruda, Dutra e G Dias, além de, entre outros, o governador do DF, Ibaneis Rocha, que ficou 66 dias afastado do cargo.
Em dezembro de 2023, quando 8/1 – A Democracia Resiste foi concluído, segundo as legendas finais da reportagem, Jorge Naime, ex-chefe do Departamento de Operações da PM do DF, e Fabio Augusto, ex-comandante da PM do DF, estavam presos; Anderson Torres, ex-secretário de Segurança do DF, estava em liberdade provisória com medidas restritivas; após investigações da Polícia Federal e denúncia da Procuradoria-Geral da República, 1353 homens e mulheres se tornaram réus; a Operação Lesa Pátria passou a investigar executores, financiadores e mentores dos atos de 8 de janeiro; trinta réus haviam sido condenados com penas de até dezessete anos de prisão.
Quase no final de 8/1 – A Democracia Resiste, o presidente Lula diz: “Não pode parar a investigação enquanto a gente não descobrir quem foi que financiou. Tem muita gente que está na mira e pode ficar certo de que vai ser encontrado. É apenas uma questão de tempo.”
Aguardemos, pois.
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Estreia na próxima semana (25/1) um filme excepcional – Anatomia de uma Queda, dirigido por Justine Triet, a partir do roteiro que ela e Arthur Harari escreveram. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, no ano passado, Anatomia de uma Queda foi exibido, em outubro de 2023, na abertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. A maravilhosa atriz Sandra Hüller faz o papel principal – a escritora de sucesso Sandra Voyter, mãe de Daniel (Milo Machado-Graner), um pré-adolescente com deficiência visual. Casada com Samuel Maleski (Samuel Theis), um escritor frustrado, Voyter se torna a principal suspeita quando o marido é encontrado morto, seu corpo ensanguentado caído sobre a neve, no jardim da casa nos Alpes.
“O espectador fica se perguntando onde está a verdade – assim como o filho do casal, que, tendo perdido o pai, percebe que tem o destino da mãe nas mãos”, resumiu Rebecca Mead no perfil de Sandra Hüller publicado na revista The New Yorker (27/11/2023).
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