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O guarda da esquina e sua hora

Reflexões em torno de um slogan de Jair Bolsonaro

Fernando de Barros e Silva | 06 out 2018_20h13
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“É melhor Jair se acostumando.” Há slogans de campanha que carregam uma espécie de significado latente, como se fossem cifras ou imagens condensadas daquilo que o candidato será depois de eleito. É como se anunciassem pelo avesso, no seu esforço concentrado de difundir uma ilusão, a verdade escondida de um determinado político assim que ele alcança o poder. Tome-se, por exemplo, o “Caçador de Marajás”, pelo qual Fernando Collor fez sua fama em 1989. Com um pouco de imaginação é possível dizer que naquela promessa de combate aos privilégios encastelados na burocracia estatal já estava embutido o desmantelamento do Estado patrocinado a seguir pelo governante. O ímpeto aventureiro do candidato-caçador se traduziu em golpes cegos contra a inflação, para logo se converter numa espécie de ridículo bonapartista e descambar em bravatas contra os setores organizados da sociedade e avacalhação das instituições da República.   

Da mesma forma, o “Lulinha Paz e Amor” de 2002 se ilumina se for pensado como uma antecipação da conciliação de classes promovida pelo PT em sua primeira encarnação no poder. Mas não só. O uso do diminutivo do apelido acompanhado pelo “paz e amor”, algo tão carinhoso, acolhedor e aconchegante, apontava também para a acomodação de Lula e do PT ao jogo da política como ela é, ou seja, para a adesão dos companheiros à fisiologia e à roubança público-privada que desde sempre pautou o modus operandi do Estado brasileiro. Sem medo de ser feliz também era isso (e não só a promessa de inclusão social).

No caso de Bolsonaro as coisas são mais rudimentares e explícitas. Não há ambiguidades, não há nenhum enigma a ser decifrado. “É melhor Jair se acostumando” é um slogan intimidador, ponto. Ele não se dirige aos adeptos e simpatizantes do candidato. Ele tampouco tenta conquistar novos adeptos. Ele apenas manda um recado aos que ainda não entenderam que chegou a vez do mito, porra. Numa leitura mais inocente, podemos especular que o bordão equivaleria ao “vocês vão ter que me engolir” de Zagallo. Seria apenas um desabafo ressentido diante de uma legião de críticos que se esgotaria no plano retórico. Numa leitura mais realista, o slogan evoca algo como as palavras de ordem da PM paulista ao invadir o pavilhão 9 do Carandiru e fuzilar 111 presos: “A morte chegou!” – era isso que os policiais gritavam em coro antes de disparar contra as celas, indiscriminadamente. “É melhor Jair se acostumando.”

 

Não terá sido por falta de aviso, disso sabemos. Eu estava na redação da piauí no domingo de 17 de abril de 2016, quando a Câmara aprovou o impeachment de Dilma Rousseff. Conforme se sucediam, os discursos verde-amarelo – provincianos, patéticos, involuntariamente cômicos – iam compondo um mosaico revelador e melancólico do parlamento brasileiro. Até que chegou a vez de Bolsonaro. A coisa então mudou de patamar. Reproduzo na íntegra suas palavras:

“Nesse dia de glória para o povo brasileiro, tem um nome que entrará para a história pela forma como conduziu os trabalhos da Casa. Parabéns, presidente Eduardo Cunha. Perderam em 64. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo. Pela nossa liberdade. Contra o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas. Por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim!”  

Recapitulemos: primeiro Bolsonaro adula o delinquente que é seu par, depois homenageia o torturador que tem como maior ídolo. Entre uma coisa e outra, expressa sentimento de vingança (perderam em 64, estão perdendo agora) e transpira paranoia (a ameaça comunista no Brasil atual é um delírio, assim como a pedagogia da permissividade nas escolas). Conclui, enfim, exaltando as Forças Armadas e glorificando a Deus, lançando mão de um bordão que não largaria mais ao longo da campanha. Em retrospecto, vê-se que sua fala estava pronta e foi calculada. Só agora, ao ouvi-la novamente, me dei conta de todos esses elementos reunidos em poucos segundos. Espírito de corpo, perversão, paranoia, nacionalismo autoritário e fervor cristão alimentam a retórica fascista de Bolsonaro. O que me chocou na ocasião foi a homenagem à figura de Brilhante Ustra. Hoje, além dela, o que embrulha o estômago é o complemento sádico da citação – o pavor de Dilma Rousseff. Bolsonaro não se limita a homenagear o algoz de Dilma; ele de certa forma revive o próprio ato da tortura enquanto fala.

A apologia da tortura encontra eco no gesto dos dois garotões, ambos candidatos ao Legislativo pelo PSL, o partido de Bolsonaro, que esta semana se fizeram fotografar sorridentes com a placa de rua em homenagem à memória da vereadora Marielle Franco partida ao meio. Um deles, mergulhado em sua afetação narcísica, exibia o bíceps bombadinho para a câmera, como se estivesse a nos contar o que de agora em diante importa na política. Não direi seus nomes porque a menção a tipos assim já os dignifica – e não é o caso. Não basta assassinar Marielle Franco; é preciso despedaçá-la depois de morta, esculachar sua imagem, banir sua memória do espaço público. Assim como não bastava homenagear o torturador de Dilma Rousseff; era preciso atualizar, quase cinquenta anos depois, o pavor do ato da tortura. “É melhor Jair se acostumando.”

 

Naquela mesma noite do impeachment eu escrevi um pequeno texto para o site da piauí. O cientista político André Singer havia me alertado dias antes que uma pesquisa do Datafolha recém-publicada mostrava Bolsonaro liderando a corrida presidencial entre os mais ricos. Ele aparecia com 23% das intenções de voto de quem tinha renda familiar mensal superior a dez salários mínimos (o que corresponde a apenas 5% da população). A preferência da elite pelo capitão tinha passado despercebida, até porque no conjunto do eleitorado, àquela altura, Bolsonaro era apenas o quarto colocado, com 8% dos votos. Já era uma proeza, algo sem dúvida perturbador, mas quase ninguém sério acreditava que ele pudesse ir muito além. De qualquer forma, havia elementos de sobra para deduzir que a participação da extrema direita no processo político não seria mais residual.

Um ano depois do impeachment, no início de abril de 2017, Jair Bolsonaro fez sua famigerada palestra no clube Hebraica do Rio de Janeiro. Foi quando falou que deu uma “fraquejada” e gerou, depois de quatro homens, uma mulher, coitada. Foi quando disse também que ia armar a população e acabar com as reservas indígenas do país. Cito:

“Se eu chegar lá não vai ter dinheiro pra ONG. Esses inúteis vão ter que trabalhar. Se eu chegar lá, no que depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola. Com parcerias nós vamos resgatar esse Brasil (ouvem-se gritos de ‘mito, mito’ da plateia). Comecem a já ir se acostumando.”

A seguir, comparou os quilombolas a animais:

“Eu fui num quilombola (sic) em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas (a plateia ri). Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de 1 bilhão de reais por ano gastado com eles.(…) Não querem nada com nada.”

Tudo isso é conhecido. E esse é, em boa medida, o nosso problema. O artista e escritor Nuno Ramos disse outro dia que o país está vivendo uma espécie de “desinibição do pior”. Eu não encontraria definição melhor do momento atual. O professor Marcos Nobre publicou esta semana, neste mesmo espaço, uma excelente reflexão sobre as razões que fazem desta “a eleição da vingança”, título do seu texto (espia que vale a pena). A psicanalista Maria Rita Kehl lançou há pouco uma compilação de ensaios a que deu nome de Bovarismo Brasileiro (editora Boitempo). Não é uma obra que se ocupa do presente imediato, mas poderia ser. Logo na introdução, ela afirma que “a questão dos restos mal elaborados da escravidão na sociedade brasileira perpassa quase todo o livro”. Os restos mal elaborados são justamente os sintomas de um trauma que não foi superado, ou nem sequer compreendido enquanto tal. Pode ser o trauma da escravidão, pode ser o trauma da ditadura – a figura de Bolsonaro e a popularidade que ele alcançou são restos mal elaborados de ambos os traumas, entrelaçados.

 

Atribui-se a Pedro Aleixo, vice-presidente do marechal Costa e Silva, uma frase famosa, que ele teria dito na reunião que decretou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, quando se inaugura o período mais feroz da ditadura militar. “O problema deste ato”, teria dito Aleixo, “não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, mas o guarda da esquina.”

Embora a declaração seja figurinha fácil na internet, citada em diversas matérias (sobretudo entre os blogs de esquerda), sua origem é duvidosa. Na gravação em áudio da reunião do AI-5, na qual Aleixo fala longamente e se coloca contra a adoção da medida, não há registro da frase. Não a encontrei também no capítulo dedicado ao assunto no livro de Zuenir Ventura (1968 – O Ano Que Não Terminou) nem em A Ditadura Escancarada, o segundo volume da obra clássica de Elio Gaspari. É possível que Aleixo tenha pronunciado a frase em outro contexto, é possível até que ela seja uma fake news pré-histórica. De qualquer forma, fictício ou verdadeiro, o temor de Pedro Aleixo voltou sinistramente à ordem do dia. O país está muito perto de eleger presidente da República o guarda da esquina do AI-5.

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