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    Gabriel Barros, sobrevivente do incêndio, em frente ao local onde funcionava a boate Foto: Fernanda Canofre

anais do descalabro

O lugar da memória

Dez anos depois do incêndio na boate Kiss, famílias dos mortos ainda lutam para que o país não se esqueça da tragédia

Fernanda Canofre | 28 jan 2023_10h56
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Em dezembro de 2014, pais e mães que perderam filhos no incêndio da boate Kiss improvisaram uma vigília diante do imóvel onde a casa noturna havia funcionado, em Santa Maria (RS). Eles temiam que a fachada da edificação fosse modificada. Quase dois anos antes, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, a tragédia provocara a morte de 242 pessoas. Para os familiares das vítimas, qualquer alteração nos restos da boate não apenas iria adulterar a cena de um crime ainda sem julgamento como macularia a memória de tudo o que se passou ali. Daí a mobilização em frente ao imóvel, que continuava exibindo letreiros com o nome da casa noturna.

Tendas brancas estavam armadas diante da fachada. Faziam parte da operação de limpeza e descontaminação da área. A Justiça autorizara o trabalho, que seria realizado por uma empresa contratada pela Eccon Empreendimentos de Turismo e Hotelaria, então proprietária do imóvel. Foi Flávio da Silva quem convocou a vigília às pressas. Ele é pai de Andrielle Righi da Silva – morta no incêndio enquanto festejava o aniversário de 22 anos – e ex-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), que se formou logo depois do episódio. Um dos encarregados da limpeza o alertou sobre os planos de alteração da fachada. “Liguei para uma amiga, e a gente organizou tudo”, relembra Silva. “Ela trouxe cadeiras, comida e água. Chamamos outras pessoas e passamos a noite ali. Éramos uns oito. Às 4h45, chegaram duas caminhonetes. Os caras se assustaram quando viram a gente. Eles queriam descaracterizar tudo. Ficamos lá por uma semana. Eu ia para casa tomar banho e logo voltava. Só saímos quando desmancharam as tendas.”

Durante a limpeza, mais de trezentos sapatos foram retirados da boate, entre outros pertences dos clientes, como chaves e documentos. Os objetos estão guardados em tonéis lacrados, sob responsabilidade da Polícia Civil. Semanas antes, membros da AVTSM já haviam recolhido lembranças deixadas na frente da casa noturna para homenagear os mortos – camisetas, bilhetes e flores, que secaram com o tempo.

Silva conta que parte da fachada foi pintada de branco após a limpeza e ganhou um aspecto mais arrumado. Ele e outros parentes das vítimas não gostaram da maquiagem. Por isso, arranjaram baldes de tinta preta e se dirigiram novamente à área. “Um policial militar perguntou o que íamos fazer. Respondi: vamos pintar a fachada de preto. O único jeito de impedir a gente é nos prendendo.”

Hoje, dez anos depois do incêndio, o imóvel de 640 permanece de pé. Foi desapropriado em julho de 2017 pela prefeitura e está sob a tutela da AVTSM. O decreto de desapropriação reconhece o local como “espaço de interesse público e comunitário” para que “a tragédia nunca seja esquecida e nunca mais volte a acontecer, em lugar algum”. A fachada continua pintada de preto, em referência ao luto das famílias, mas ganhou uma série de intervenções com o passar dos anos – grafites, cartazes, pichações e faixas que pedem justiça e recordam o número de mortos. Os recados mais recentes aludem à decisão que anulou o julgamento do caso: “Até quando a injustiça vai servir à impunidade?” e “Jamais nos curvaremos para a tirania de toga.”

Em dezembro de 2021, um júri popular condenou quatro réus pela tragédia: os sócios da boate (Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann) e dois componentes da banda Gurizada Fandangueira, apontados como responsáveis pelo artefato pirotécnico que iniciou o incêndio (o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o ajudante Luciano Bonilha Leão). As penas variavam de 18 a 22 anos e meio de reclusão. Há quase seis meses, porém, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou que o julgamento não cumpriu determinados ritos obrigatórios e anulou o júri por dois votos a um. Os presos foram soltos, e agora o tribunal analisa os recursos das partes envolvidas no processo.

Em Santa Maria, é comum ouvir questionamentos sobre a ausência de representantes da prefeitura e de outros órgãos públicos entre os réus. Numa nota recente, o Ministério Público gaúcho informou que, além dos quatro denunciados por homicídio, 47 pessoas sofreram ações cíveis ou criminais na Justiça comum e na militar. Em 2017, os parentes das vítimas apresentaram uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos denunciando a omissão do Estado no caso.

 

A antiga boate fica no Centro de Santa Maria, a alguns metros da Catedral Metropolitana. O servidor municipal James Pizarro, que prestou assistência social às famílias dos mortos, mora perto dali, mas evitava andar pela calçada da Kiss.“Criei coragem somente no fim do ano passado. Aquilo é um monumento à impunidade. Enquanto não houver uma solução do caso, acho que tem de continuar lá.” A aposentada Natália Weiss também demorou para transitar normalmente pelo local. Na madrugada da tragédia, recebeu um telefonema da sobrinha, que havia escapado do incêndio. “Corri até a Kiss e a encontrei chorando, com os joelhos arranhados. Por muito tempo, quando me aproximava da boate, tinha a impressão de que a fumaça voltava às minhas narinas.”

O taxista Valmir Martins de Oliveira, que fez três viagens para hospitais naquela madrugada de janeiro, ainda passa diariamente pela Rua dos Andradas, onde a casa noturna funcionava. “Sempre olho e me pergunto como tanta gente morreu lá dentro. Parecia tão fácil quebrar tudo e sair.” Em frente à catedral, outro taxista diz que o imóvel da boate “virou ponto turístico” para os forasteiros. “Mas agora a cidade quer dar um basta e esquecer a tragédia”, emenda um colega dele, com ar de irritação. Muitos em Santa Maria pensam o mesmo. Defendem que é preciso “deixar os mortos descansarem”.

“Há pouco, um senhor passou por aqui e falou: ‘Morreu, está morto! Acabou!’’’, conta Ligiane Righi da Silva, mãe de Andrielle. Ela se encontra numa tenda que exibe os nomes e as fotos das 242 vítimas. Sua camiseta estampa o rosto da filha e os versos de um rock interpretado pela banda gaúcha Reação em Cadeia: “O tempo vai mudar as coisas de lugar/ O tempo vai curar a dor.”   

Localizada a uns 300 metros da Kiss, a tenda surgiu em abril de 2013. A ideia era realizar 242 vigílias pelos mortos dentro da estrutura e depois desmontá-la. As homenagens ocorreram, mas a tenda se manteve ali, mesmo sob as críticas de quem julga que o luto já deveria ter ficado para trás. “Em janeiro de 2013, logo após o incêndio, entre 20 e 30 mil pessoas fizeram uma marcha com velas até a boate. Onde essas pessoas estão agora? O que mudou desde então? Para nós, não mudou nada. Continuamos sem os nossos filhos. As pessoas se solidarizaram na hora do susto, mas depois…”, lamenta Ligiane.

Em 2017, quando desapropriou o imóvel da Kiss, a prefeitura anunciou um acordo com a AVTSM e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) para a construção de um memorial na área. Cogitava-se derrubar a edificação original até o quinto aniversário da tragédia, em janeiro de 2018. Os parentes das vítimas, no entanto, pediram o adiamento da demolição. À época, o advogado Pedro Barcellos Jr., representante da AVTSM, argumentou que a preservação do imóvel poderia ser útil num futuro julgamento do caso. Por um tempo, se pensou em levar os jurados até o local para que entendessem melhor o espaço da boate, mas a ideia acabou descartada. O projeto do memorial já foi escolhido e tem orçamento de 4 milhões de reais, segundo o prefeito Jorge Pozzobom (PSDB). Ainda não há previsão de quando as obras irão começar.



A piauí visitou o imóvel da casa noturna uma semana antes de a tragédia completar dez anos. A edificação, construída em 1963, já abrigou um depósito de bebidas e um cursinho pré-vestibular. Sem nenhuma janela, lembra uma grande caixa retangular. A única fonte de claridade é a porta. O forro do teto está danificado e algumas tábuas do piso parecem prestes a ceder. Uma das mesas ainda tem o nome de quem provavelmente a reservou: Thais. As divisórias de madeira que demarcavam a área do bar seguem quase intactas. Numa das paredes, é possível ver o desenho de uma boca enorme e vermelha, que remete à palavra kiss (beijo, em inglês). As chamas, portanto, não transformaram a boate propriamente em ruínas – o que reforça a constatação de que a maioria das vítimas morreu por inalar fumaça tóxica ou no tumulto gerado pelo pânico.

A vice-presidente da AVTSM, Marilene dos Santos Soares, percorreu a edificação um tempo depois do incêndio. Ela perdeu a filha Nathiéle, de 21 anos, na tragédia. A máquina fotográfica da jovem, recuperada no local, guardou registros de uma noite que parecia feliz. Antes de o fogo começar, Nathalie posou sorridente para selfies e fotos com o namorado, o cunhado e amigos. “Foi normal entrar ali. É apenas uma casa escura…”, diz Soares. “A gente só deseja que tamanha barbaridade não se repita. Os clientes foram à boate para se divertir, não para sair dentro de um caixão.”

“Prezar pela manutenção daquele espaço físico é não ceder ao apagamento da tragédia. Quem se beneficiaria com a ausência do espaço?”, indaga Gabriel Rovadoschi Barros, de 28 anos, primeiro sobrevivente a presidir a AVTSM. O jovem, que só começou a falar publicamente sobre o incêndio em 2020, hoje mora quase ao lado da antiga boate. “Quando me mudei para cá, imaginei que acordaria de manhã com o barulho das obras do memorial. A construção dele é necessária até como um ato de denúncia, caso o julgamento não dê em nada. Será o memorial da impunidade.”

O psicanalista Volnei Dassoler – que trabalha no programa Santa Maria Acolhe, criado para atender os atingidos pela tragédia – diz que a memória coletiva também precisa ser material. “É importante criar marcos concretos, que dialoguem com toda a cidade. Santa Maria não pode abrir mão de um memorial porque tem a obrigação política e cultural de estabelecer uma continuidade entre o passado, o presente e o futuro.”


Em dezembro de 2004, Buenos Aires presenciou uma tragédia semelhante à do município gaúcho. Um incêndio na discoteca República Cromañón matou 194 pessoas. Em respeito às vítimas, seus parentes conseguiram transformar a rua da boate numa via onde passam somente pedestres. As famílias argentinas, que mantêm contato com as brasileiras da Kiss, também pretendem construir um memorial ali.

A jornalista Luciane Treulieb viveu em Buenos Aires entre 2009 e 2012. Ela acompanhou de perto o impacto que o incêndio da discoteca teve no país. Quando saía à noite, se deparava com regras rígidas de lotação em lugares públicos. No dia 26 de janeiro de 2013, um sábado, Treulieb estava morando novamente com os pais em Santa Maria, onde nasceu. Foi a um bar e voltou cedo para casa. Adormeceu antes da madrugada do dia 27. No domingo de manhã, despertou com a notícia do incêndio na Kiss. O irmão dela – João Aloisio Treulieb, que comemoraria 30 anos dali a dois dias – trabalhava na boate, como gerente do bar. “Tivemos de velar o mano num CTG [Centro de Tradições Gaúchas]. Faltava espaço na cidade para os velórios. Um dos melhores amigos de meu pai não compareceu à cerimônia. A gente estranhou e pensou: ‘Será que perdeu alguém?’ Ele havia perdido um sobrinho.”

Como parte de um mestrado, a jornalista dirigiu e narrou o documentário Depois Daquele Dia, lançado em 2018. O filme de 51 minutos discorre sobre a tragédia e Santa Maria. Treulieb cita uma frase do dramaturgo grego Ésquilo para explicar por que resolveu fazer o documentário: “Falar-te disso é doloroso, mas calar-me também me causa muitas dores.” A diretora pretendia, ainda, deixar um testemunho para a sobrinha Joana, filha de João, que nasceu em 15 março de 2013. A mãe da menina, Patrícia Carvalho, atravessava o sétimo mês de gravidez quando acordou com um vizinho ao telefone avisando que a Kiss estava pegando fogo. Ela e João tinham se casado havia menos de um ano, depois de namorarem por uma década. Em pouco tempo, amigos apareceram para ampará-la enquanto buscavam notícias de seu marido. “Só compreendi a gravidade da coisa quando o número de mortos chegou a cinquenta. Na minha cabeça, o João estava ajudando as pessoas na boate. Demorei para entender que ele poderia ser uma das vítimas.”

Carvalho costuma frequentar as manifestações em memória dos mortos por se sentir acolhida ali. Joana, que faz terapia desde os dois anos, sempre a acompanhou. Quando pôde escolher sozinha, a menina decidiu continuar indo aos atos porque queria representar o pai. “Independentemente do desfecho na Justiça, minha filha passará o resto da vida sem conhecer o João. Nosso sentimento de perda não vai mudar.” 

Quando Joana nasceu, Carvalho começou a escrever um diário para ela sobre o pai. “Encerrei minha participação alguns dias atrás”, contou numa mensagem à piauí, enviada nesta semana. “Entreguei o caderno para Joana fazer como achar melhor. Ela diz que vai seguir escrevendo.”

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