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O medo e o mito

A relação entre Bolsonaro e um hit do axé

Suellen Guariento | 12 ago 2018_06h00
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Neste ano, participei de um debate sobre violência numa escola pública em São Gonçalo, município da Grande Rio de Janeiro. Fui com minha camiseta da campanha Jovem Negro Vivo. Promovida pela Anistia Internacional, a ação pretende mobilizar a sociedade contra a matança recorrente de pretos entre 15 e 29 anos no Brasil. Na escola, falei sobre isso e outros temas afins. Um aluno me interpelou, reclamando que tudo o que eu acabara de dizer “só aumentava a bandidagem”, e encerrou o aparte com uma invocação: Bolsonaro 2018! Com expressões curiosas, os demais estudantes aguardavam minha reação. Chamei o garoto para um papo reto ali mesmo, em público. Perguntei como eram as coisas no lugar onde ele morava: a saúde, o lixo, a escola e a segurança. O menino das pontas crespas descoloridas respondeu o que eu já sabia. Perguntei se ele de fato achava o tal candidato uma alternativa para melhorar a nossa vida, e o garoto respondeu categoricamente: sim! Ele disse esperar que alguém “com disposição” assumisse a Presidência da República. Quando terminou, foi aplaudido por vários colegas.

Não me surpreendo com essas reações. Há pouco tempo, Julio Cocielo, um dos youtubers mais bem pagos do país e muito conhecido entre adolescentes, fez declarações racistas na internet sobre Kylian Mbappé, jogador da seleção francesa de futebol. Uma parte da rede social caiu em cima do ofensor e outra, muito maior, deu milhares de likes para seu pedido de desculpas. Alguns fãs chamaram o digital influencer de mito. O Canal Canalha, do youtuber, tem mais de 17 milhões de inscritos e vídeos divertidos, despretensiosos, feitos em casa, que mostram quão “comum” é Julio Cocielo – um ídolo com cara de gente que erra e se desculpa.  

Da minha ida à escola até o caso Cocielo, sinto que Jair Bolsonaro só cresceu como “mito”, principalmente entre o eleitorado jovem, aterrorizando inúmeros defensores de nossa democracia com a real possibilidade de virar presidente. O medo dessa galera corre em paralelo ao de uma multidão para a qual a ameaça à democracia não é uma questão quando a prioridade é sobreviver. A instabilidade dos últimos anos tornou a vida ainda mais difícil. Não à toa, os mais velhos temem perder o trabalho ou os filhos para as drogas, já que, sem escola de qualidade e emprego, a moçada estaria muito sujeita a “fazer coisa errada”. Uma porção de gente pensa assim. Os mais jovens, por sua vez, temem o futuro. Ambos os grupos compartilham a mesma falta de confiança nas instituições e nos políticos. Alimentar mitos pode lhes parecer um bom caminho para lidar com a incerteza.

Agora que a bonança dos anos Lula se foi, somente alguém “novo” seria capaz de virar o jogo. Um homem comum, divertido, que às vezes perde a cabeça ou fala demais e que defende tanto a religião quanto a família e o trabalho. Os jovens que conheço, eleitores convictos do “mito”, esperam por alguém que faça, sobretudo em termos de educação e geração de empregos. Não importa o partido dele, não importa a Lava Jato, não importam suas declarações racistas. Afinal, ser negro no Brasil também significa conviver com um mito, o da democracia racial, que Bolsonaro insiste em alimentar para caracterizar o “brasileiro universal”, sem cor, sem classe social e sem gênero – ou, como o próprio candidato diz, “sem distinção”.

 

Recentemente, a hashtag #mulherescombolsonaro ficou por algumas horas entre os assuntos mais comentados nas redes sociais. Ao celebrar os papéis de mãe, cuidadora e guia da família, o ex-capitão almeja seduzir parte do eleitorado feminino que ainda não sabe em quem votar. A reivindicação pela igualdade salarial entre os gêneros, rechaçada por Bolsonaro, não toca diretamente as trabalhadoras pobres e negras, uma vez que elas sempre exerceram funções pouco valorizadas em nossa democracia estruturalmente racista: lavar, passar, limpar, cozinhar…

Outro dia, eu relembrava a música Xibom Bombom, hit do extinto grupo de axé As Meninas. Um trecho da letra dizia: “Mas eu só quero educar meus filhos/Tornar um cidadão com muita dignidade/Eu quero viver bem/Quero me alimentar/Com a grana que eu ganho/Não dá nem pra melar/E o motivo todo mundo já conhece/É que o de cima sobe e o de baixo desce.” À sua maneira, Bolsonaro fala a mesma coisa. Ele sabe muito bem fazer show com tais desejos, exaltando o protagonismo do povão na luta por transformações, inclusive quando propõe o porte de armas como forma de lidar com o sentimento de insegurança. Algumas pessoas do meu círculo estão curtindo a “novidade”, rindo dos memes e engrossando a plateia ávida pelo show. Elas têm a esperança de que a vida “melhore pelo menos um pouco”, já que o Brasil é assim mesmo: o de cima sempre sobe e o de baixo sempre desce. Todos os dias, sinto muito medo dessa esperança num novo tão velho.

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