INTERVENÇÃO DE ISABELA DA SILVEIRA EM FOTO DE MARLENE BERGAMO/FOLHAPRESS
O ministro que fala demais e sabe de menos
Uma análise da trajetória de Ricardo Salles, do apoio de ruralistas à condenação em caso que favoreceu mineradora
Em julho de 2016, quando foi nomeado secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo pelo então governador Geraldo Alckmin, o advogado Ricardo de Aquino Salles já tinha uma reputação que o precedia. Pouco mais de três anos antes, em março de 2013, ao ser escolhido pelo chefe do Executivo paulista para ser seu secretário particular e, em seguida, ter sua trajetória vasculhada pela imprensa e também pelos políticos, ele se tornou famoso por fatos de seu passado. Ele se celebrizou não só por sua atuação em 2011 como um dos fundadores da agremiação política Movimento Endireita Brasil, mas também por ter pregado contra o casamento gay, chamado o MST de grupo “criminoso” e afirmado que o PT havia conduzido “terroristas” ao poder. Não demorou muito tempo para integrantes do próprio PSDB pedirem a Alckmin para demiti-lo.
Salles continuou como secretário particular do governador tucano até 2014. Sua recondução ao governo paulista em 2016 se deu pelas mãos do presidente do Diretório Estadual do PP, o deputado federal Guilherme Mussi, que naquela época o apresentou em vídeo de propaganda política na televisão como exemplo do “novo PP”. Na ocasião, o fator determinante da escolha foi interpretado pela imprensa como uma negociação para o apoio do PP à candidatura de João Doria – apoiada por Alckmin – à Prefeitura de São Paulo. Mas outros aspectos estavam em jogo. Salles havia sido diretor jurídico da Sociedade Rural Brasileira, que representava interesses permanentemente ligados à agenda da Secretaria do Meio Ambiente do estado, a SMA. Além disso, Mussi, cujo nome completo é Guilherme Mussi Ferreira, é filho de Carlos Henrique da Silva Ferreira, diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, e acionista majoritário da Indústria Brasileira de Artigos Refratários S/A, que possui mineração em Brumado, na Bahia, e fábricas em Poá e Suzano, na Grande São Paulo, na região do Alto Tietê.
Em menos de um mês na SMA, Salles tomou uma decisão que levou à suspensão da execução de muitos convênios e parcerias com entidades do terceiro setor. No dia 10 de agosto de 2016 ele baixou uma resolução estabelecendo que seu gabinete procederia à análise preliminar de todas as despesas, tanto de custeio como de investimento, de valores superiores a 5 mil Ufesps (unidades fiscais do estado de São Paulo), ou seja, acima de 117,7 mil reais. Foi o suficiente para frear contratações já aprovadas de serviços de importância estratégica, como, por exemplo, a elaboração de planos de manejo de unidades de parques estaduais, estações ecológicas e outras unidades de conservação. A centralização se aplicou também para recursos de compensação ambiental, aqueles que são arrecadados de empreendedores de obras e atividades de grande impacto ambiental, com base em 0,5% do valor total do empreendimento a ser licenciado, e previstos na lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
Apesar dessa e de outras atitudes de Salles terem desagradado a técnicos da SMA, ambientalistas, pesquisadores e promotores de Justiça, elas não tiveram grande repercussão na imprensa. Nem mesmo com sua decisão de manter em sigilo os dados de proprietários rurais no Cadastro Ambiental Rural, o CAR – um tema que mobilizou discussões em âmbito federal, mas que em São Paulo mal rendeu um acanhado protesto de ONGs ambientalistas. Para justificar o sigilo, a SMA afirmou, em nota, que “se é obrigação do poder público disponibilizar informação de interesse da sociedade (…) também é verdade que as informações privadas dos cidadãos são constitucionalmente protegidas, só podendo ser reveladas mediante decisão do poder judiciário”.
A situação de Salles na SMA desgastou-se efetivamente no início de 2017, quando ele passou a ser investigado pelo Ministério Público estadual em inquéritos civis de improbidade administrativa. A investigação teve início por causa da realização de um chamamento público, sem autorização legislativa, para a concessão ou venda de 34 áreas do Instituto Florestal. Na ocasião, Salles afirmou que a ideia era “o setor privado informar em que condições e se tem interesse em novas áreas” para, depois, levar adiante o rito legislativo. A investigação resultou em uma ação civil pública contra o chamamento, que por sua vez não teve continuidade, com a saída de Salles da SMA.
No início de agosto de 2017, o MP abriu inquérito por Salles ter dado andamento a uma proposta de negociação do imóvel da sede do Instituto Geológico, na capital, apesar de um parecer de sua própria consultoria jurídica que considerou a iniciativa “de risco inaceitável” para o estado. Sem abordar os aspectos legais, Salles afirmou que o objetivo da negociação do prédio era obter recursos a serem aplicados para a fusão do Geológico com os outros dois institutos de pesquisa da SMA, o de Botânica e o Florestal, ideia rejeitada pelos três órgãos. A tentativa de negociação não teve prosseguimento, por causa de um parecer contrário da Procuradoria Geral do Estado.
Mas foi com outro inquérito, iniciado em fevereiro, que sua situação se complicou. Com ele o então secretário se tornou réu em uma ação de improbidade ajuizada pelo MP, que o acusou de ter alterado ilegalmente o zoneamento da proposta de plano de manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do rio Tietê, sob a suspeita de ter beneficiado indústrias da região e de ter atendido a demandas da Fiesp. “Todas as seis alterações no mapa têm toda fundamentação e respaldo”, afirmou Salles um mês depois, em entrevista coletiva, referindo-se a seis mapas alterados por sua ordem. Não esclareceu, porém, as dezenas de mudanças na minuta do decreto de zoneamento.
Para completar com fatores político-partidários o figurino desse desgaste de Salles em sua curta gestão na SMA, a Fundação Florestal contratou, para chefiar unidades de conservação, integrantes do PP sem experiência, inclusive um condenado por crime ambiental. Questionada pelo Estadão sobre a justificativa para algumas das indicações, a SMA respondeu que as mudanças “foram pontuais e obedeceram a critérios técnicos”. Em junho de 2017, tornaram-se crescentes os rumores na Assembleia Legislativa de São Paulo de que Alckmin havia pedido a Mussi para indicar outro nome para a SMA. E Salles já não aparecia mais nos vídeos do PP.
Foi nesse mesmo junho de 2017, com Salles sob fritura, que ONGs tardiamente se posicionaram contra sua gestão. No dia 23 daquele mês, a Rede de ONGs da Mata Atlântica, que congrega 285 entidades, encaminhou a Alckmin uma moção de repúdio à sua política de meio ambiente, alegando uso político-partidário da estrutura da SMA e o desmonte de setores da pasta, além de atrasos na implantação de planos de manejo de unidades de conservação, cuja elaboração havia sido severamente prejudicada pela centralização adotada a partir da análise preliminar por seu gabinete.
Salles foi o último ministro escolhido por Bolsonaro, que durante a campanha afirmara que fundiria o Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. Dias depois de ter seu nome anunciado, em 19 de dezembro, amargou a decisão judicial na ação de improbidade sobre a APA da Várzea do rio Tietê. O juiz Fausto José Martins Seabra o condenou à perda dos direitos políticos por três anos, o que ensejou ações populares para ele não ser nomeado por Bolsonaro para o MMA. O presidente manteve sua nomeação.
A condenação não inibiu o então futuro ministro, que demonstrou entender que a melhor defesa é o ataque. E, com isso, deu início a uma série de pronunciamentos públicos desacreditando programas e projetos do governo e do próprio MMA, e demostrando desconhecimento sobre os assuntos relativos à sua área.
No dia seguinte à indicação por Bolsonaro, Salles declarou à CBN São Paulo que não existem dados suficientes para que se possa falar sobre desmatamento no Brasil. “Os dados são muito genéricos, a gente não sabe se o desmatamento está acontecendo dentro de unidades de conservação, dentro de terras indígenas, em áreas privadas, em percentual maior ou menor que o excedente da reserva legal.” E acrescentou que o monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, “só fornece o percentual geral do desmatamento, mas não tem a qualificação deste desmatamento”, e não mostra se uma determinada área desmatada na Amazônia está ou não nos 20% permitidos pela lei florestal.
Diferentemente do que o então futuro ministro afirmou, o Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia Legal, o Prodes, realizado pelo Inpe desde 1989, mapeia as áreas de corte raso na floresta com precisão suficiente para saber se elas estão em área de reserva legal, e é capaz também de detalhar o tipo de fisionomia da vegetação.
Praticamente alheio às críticas à sua demonstração de ignorância sobre o Inpe, Salles, já no cargo de ministro, voltou a propalar sua incompreensão acerca do órgão federal de pesquisas espaciais. No dia 17 de janeiro, em entrevista ao blog da jornalista Andréia Sadi, ele afirmou que estava estudando a contratação de um satélite para monitorar em tempo real situações de queimadas, secas, desmatamento pelo país. A ideia é, segundo ele, que o fiscal do Ibama “vá para onde o sistema manda ir, não para onde quer”.
No mesmo dia o Inpe divulgou nota, afirmando que desde 2004 executa o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real, um programa de apoio à fiscalização e controle do desmatamento e degradação na Amazônia, que produz diariamente alertas de alteração na cobertura florestal. “Esses alertas são enviados automaticamente ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sendo insumo para o planejamento das ações de fiscalização. As informações ficam ainda disponíveis na internet para as Secretarias Estaduais de Meio Ambiente, bem como para toda a sociedade”, afirmou o instituto.
Já nomeado ministro, Salles demonstrou desconhecimento sobre o MMA e seus órgãos em outras oportunidades. Um exemplo da incompreensão aconteceu no dia 6, um domingo em que ele examinava as publicações da pasta no Diário Oficial da União. Sem ter buscado esclarecimentos previamente no âmbito do MMA, ele publicou em seu perfil oficial do Twitter a imagem capturada de um extrato de contrato, acompanhada de um comentário que insinuava irregularidade: “Quase 30 milhões de reais em aluguel de carros, só para o Ibama…” Em seguida, menos prudente ainda do que seu ministro, Bolsonaro retuitou a mensagem, acrescentando que seu governo estava “em ritmo acelerado, desmontando rapidamente montanhas de irregularidades e situações anormais que estão sendo e serão COMPROVADAS e EXPOSTAS”. Em resposta a uma observação do site O Antagonista, Salles afirmou: “Não levantei suspeita sobre o contrato, apenas destaquei seu valor elevado, conforme meus esclarecimentos na própria postagem.” Bolsonaro apagou seu tuíte.
Os pingos nos “is” ficaram por conta da presidente ainda em exercício do Ibama, Suely Araújo, no Instagram. Ela afirmou, em 6 de janeiro que o contrato no valor de 28,7 milhões de reais atingido pela insinuação de Salles prevê a locação de “393 caminhonetes adaptadas para atividades de fiscalização, combate a incêndios florestais, emergências ambientais, ações de inteligência, vistorias técnicas etc., nos 27 estados brasileiros, e inclui combustível, manutenção e seguro, com substituição a cada dois anos”. Para Araújo, a acusação evidencia “desconhecimento da magnitude do Ibama e das suas funções”: “O valor estimado inicialmente para esse contrato era bastante superior ao obtido no fim do processo licitatório, que observou com rigor todas as exigências legais e foi aprovado pelo TCU”, acrescentou a ex-diretora do Ibama, que pediu demissão no dia seguinte, e afirmou que Salles escolheu o advogado da União Eduardo Fortunato Bim para sucedê-la.
A mais recente polêmica na trajetória de Salles são as idas e vindas na suspensão dos convênios do governo federal com entidades do terceiro setor, uma decisão que preocupa ambientalistas, como a piauí contou nesta reportagem.
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