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    ILUSTRAÇÃO: CARVALL

questões de segurança pública

O perigo da independência

Projetos de lei que tiram poder dos governadores sobre as polícias alimentam temor de que o braço armado dos estados possa apoiar um golpe de Bolsonaro

Renato Sérgio de Lima e Luís Flávio Sapori | 13 jan 2021_17h53
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Ainda sob os ecos da invasão do Capitólio por milícias de ultradireita em Washington, reportagem do Estadão acerca de dois projetos de lei que restringem o poder dos governadores sobre as polícias civis e militares no Brasil motivou intensas reações. Membros do Executivo, candidatos à presidência da Câmara dos Deputados e integrantes das Forças Armadas, assim como a imprensa, se mobilizaram. A sociedade percebeu que setores policiais tentam fazer avançar propostas com forte caráter corporativista e que, no fim das contas, pouco falam de segurança pública. O principal foco dessas propostas reside na blindagem institucional e na autonomia excessiva das corporações frente ao controle civil e às autoridades eleitas.

Os projetos, sobretudo o referente às polícias militares, têm vários equívocos. Antes de apontá-los, porém, é importante reconhecer a urgência de regulamentação da segurança pública. Organizações como Adepol (Associação de Delegados de Polícia do Brasil), Cobrapol (Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis) e Feneme (Federação Nacional de Entidades Militares Estaduais) lutam há anos para que a arquitetura institucional das polícias seja alterada. Afinal, boa parte das normas e organogramas ainda remonta à época da ditadura militar e, no limite, está em desacordo com a Constituição de 1988.

Uma correta preocupação por parte dessas organizações é que a estrutura atual permite que governadores e outras lideranças usem as polícias com intenções políticas. Não há critérios objetivos para definir prioridades e evitar que membros do Executivo ou parlamentares indiquem policiais de sua confiança a cargos técnicos (por exemplo: um deputado pode indicar o titular da delegacia de sua base eleitoral). Em momentos de crise, como não existem mecanismos de supervisão robustos, todo o ônus das ações interesseiras costuma recair sobre as polícias. É a velha história do político: “O que é bom a gente fatura e divulga. O que é ruim a gente joga no colo do adversário ou dos subordinados.”

Em vez de combater frontalmente esses males e apresentar soluções que dialoguem com a Constituição, os dois projetos de lei partem da ideia de autossuficiência das polícias. No parágrafo sétimo do artigo 144, a Carta Magna determina que as leis precisam garantir a eficiência da atividade policial. As propostas, no entanto, pecam ao não focar na questão da “eficiência”.

O projeto relativo às polícias civis institui novidades na conformação das carreiras. Em contrapartida, mal fala de gestão, de inteligência ou de um plano institucional como o da Polícia Federal, que se reinventou na década de 1990 a partir da premissa de que iria priorizar o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. O aspecto positivo do projeto é que há espaço para aperfeiçoamento e ajustes.

Já a proposta voltada às polícias militares é bem mais complicada, por afirmar que as PMs são organizações de Estado dotadas de autonomia administrativa e financeira. Pior: o projeto reivindica que os comandantes gerais das corporações sejam nomeados por ato do governador, mas a partir de uma lista tríplice elaborada pelos próprios oficiais, o que não acontece hoje em dia.

A proposta cria, ainda, o Conselho Nacional de Comandantes Gerais da Polícia Militar (CNCGPM). Com assento nos ministérios da Defesa e da Justiça, o órgão teria competência consultiva e deliberativa tanto sobre questões de segurança pública quanto sobre outros assuntos, como a padronização de procedimentos nas corporações. Trocando em miúdos: pretende-se estabelecer uma instância para além dos executivos estaduais e até mesmo do Executivo federal, com poder de conformar as polícias militares.

O projeto também estimula a militarização das corporações nos moldes das Forças Armadas, contrariando décadas de investimentos numa doutrina específica para a Polícia Militar. O que justifica esse estímulo é o regime jurídico constitucional que define as PMs como forças auxiliares e de reserva do Exército. Daí a consequente simetria com as organizações estatais destinadas à defesa nacional. O foco, portanto, não está na segurança pública. Por essa lógica, as polícias militares passariam a ter dezenove postos hierárquicos, que incluiriam o quadro de oficiais generais. No entanto, a proposta não diz como um brigadeiro-general e demais PMs de alta patente contribuiriam para melhorar a atividade de segurança pública nos estados.



Outro problema do projeto referente às polícias militares é a consolidação do bacharelismo jurídico nas corporações. O Quadro de Oficiais de Estado Maior passaria a ser integrado apenas por quem tivesse formação em direito. Aqui, existe a clara pretensão de estabelecer uma equivalência com militares das Forças Armadas e com delegados, promotores e juízes. Mas o que o projeto não explica é, por exemplo, qual a razão técnica para um oficial do Corpo de Bombeiros precisar de um bacharelado em ciências jurídicas. Parece-nos muito mais útil que, em seu cotidiano, ele domine técnicas e saberes das engenharias e ciências ambientais.

Avançando sobre as competências dos municípios e da Polícia Federal, a proposta reivindica que os policiais militares possam emitir laudos e normas relacionados a empreendimentos residenciais e comerciais. Defende, por fim, que as PMs tenham a prerrogativa de credenciar e fiscalizar as empresas de segurança privada e as escolas de formação.

Embora não sejam propriamente novas, todas essas ambições despertaram reações contrárias principalmente em função das atuais ameaças à democracia e de um presidente com fortes traços populistas e autoritários. Quem garante que polícias mais independentes não acabem facilitando um golpe de Jair Bolsonaro? O ex-capitão não deve apoiar explicitamente os projetos, pois sabe o quanto são polêmicos dentro das próprias corporações. Mas também não perderá a oportunidade de se aproveitar do fato de que todos os governos pós-1988 negligenciaram a importância de uma ampla reforma policial. Bolsonaro dará um jeito de se colocar (falsamente) como aquele que valorizou os interesses dos policiais brasileiros.

Por tudo isso, as propostas estão, ao nosso ver, equivocadas. Não existe braço armado do Estado sem controle civil e sem mandatos claros sobre suas missões, subordinações federativas e competências. Precisamos, sim, repensar carreiras e protocolos de policiamento. Mas, infelizmente, a ausência nos projetos de mecanismos explícitos de gestão, controle, transparência e supervisão dificulta o diálogo e reforça a eterna paralisia que toma conta da segurança pública.

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