Cercado por ministros e outros integrantes do governo, Bolsonaro come pizza na rua em Nova York, já que, por não estar vacinado, ele seria impedido de entrar em restaurantes fechados -- FOTO: REPRODUÇÃO/REDE SOCIAL
O puro suco de Bolsonaro
Ao comer pizza na rua e mentir na ONU, presidente contamina as redes e desvia a atenção daquilo que abala sua popularidade
A viagem de Bolsonaro a Nova York, para abrir a Assembleia Geral da ONU, foi assunto de destaque na imprensa brasileira. Foi curta a viagem, como sempre. Mas intensa, também como sempre.
Bolsonaro é “ridicularizado” no exterior, segundo Jamil Chade (https://bit.ly/3lHc4Gl; 78 mil interações no Facebook). Foi “repreendido” pelo prefeito da cidade, Bill de Blasio, e teria virado quase que uma persona non grata na cidade. Boris Johnson também sugeriu a Bolsonaro que tomasse a vacina da Oxford, a Astrazeneca, o que também soou quase como uma reprimenda. Ou: o presidente foi proibido de entrar em restaurantes, tendo que comer na rua em pé ou adaptar “puxadinhos”, parecendo ridículo e envergonhando o Brasil nos Estados Unidos. Boa parte do país leu, estarrecido, num misto de vergonha, tristeza e desespero, os episódios protagonizados pelo presidente.
No entanto, se olharmos a reação nas redes da imprensa “chapa branca”, que apoia Bolsonaro até nos episódios mais indefensáveis, e o agrupamento bolsonarista nas redes, a história é completamente diferente.
Não se trata só de enxergar a realidade com outra lente. Para os bolsonaristas, o puro suco de Bolsonaro, aquilo que foi mostrado pelo próprio presidente com suas atitudes em Nova York, é o verdadeiro Bolsonaro. É o que esperam do presidente. O “Mito”, para eles, voltou de um curto inverno pós-cartinha paz e amor a Alexandre de Moraes, se curvando a Temer (doeu para o agrupamento, ainda que tenha sido uma dor rápida – https://bit.ly/2YImQEi). E voltou com toda a equipe disposta a “comprar” a guerra — que o diga o ministro da Saúde, com dedo, Covid e tudo. Resultado: Bolsonaro e seu time estão animadíssimos e mobilizados para iniciar mais uma batalha.
No domingo, enquanto os jornais criticavam o fato de Bolsonaro comer pizza no meio da rua, por não ter cartão de vacinação, o agrupamento bolsonarista exaltava o “homem simples”. O portal bolsonarista Pleno News, ao noticiar o fato, obteve mais de 27 mil interações no Facebook (https://bit.ly/3lOiof4), enquanto que a matéria de maior alcance na grande imprensa sobre o assunto, do Estadão, obteve 17 mil interações (https://bit.ly/3ktFDfe). O grafo abaixo apresenta o debate sobre o episódio no Twitter, que contou com 118 mil publicações na segunda-feira (20). Na ocasião, Bolsonaro obteve mais de 33% de manifestações positivas. A defesa do presidente feita por seus apoiadores obteve mais alcance do que normalmente consegue obter – o agrupamento costuma ficar entre 20% e 25%.
Grafo de menções sobre o episódio da pizza na calçada em NY
Da mesma forma, a abordagem sobre o encontro de Bolsonaro com Boris Johnson foi completamente diferente quando comparamos a grande imprensa com portais bolsonaristas. O mesmo Pleno News chamou atenção para o fato de Boris Johnson ter ficado “encantado” com o papo com Bolsonaro (https://bit.ly/3nX5XQT; 42 mil interações no Facebook), enquanto que o Estadão deu atenção à defesa feita por Johnson da vacina Astrazeneca (https://bit.ly/2XCpwmZ; 4,6 mil interações no Facebook). O registro do encontro, na página de Bolsonaro no Facebook, obteve 179 mil interações (https://bit.ly/3lKHEDd).
Mas, nas redes, Bolsonaro não teve só vitórias. A notícia de que o prefeito Bill de Blasio marcou o presidente brasileiro numa publicação indicando locais de vacinação, obteve grande alcance em praticamente todos os portais de notícias do Brasil, com a maioria de comentários negativos (https://glo.bo/3ksizgF; 41,6 mil interações no Facebook).
Sobre os protestos na porta do hotel de Bolsonaro, de novo duas realidades distintas. O presidente postou vídeo em suas redes, chamando os manifestantes de acéfalos. Desdenhou que eram poucas pessoas: “Esse bando nem sabe o que tá falando. Deviam estar num país socialista, não nos Estados Unidos.” Foram mais de 301 mil interações no Facebook, numa das postagens de maior alcance dos últimos dias em língua portuguesa (https://bit.ly/3CyvT9G).
Por mais óbvio que pareça (e é), Bolsonaro fala para agradar seu público mais fiel, que adora enaltecer a luta contra o sistema, capitaneada pelo presidente.
No entanto, não se limita a isso. Agindo dessa maneira, chocando e lacrando, o presidente domina o debate público e leva a oposição ao seu campo, para discutir sua pauta. Essas ações dialogam muito bem com o que a ciência política chama de agenda setting, que, num aspecto muito resumido, consiste em controlar o assunto que está sendo debatido, evitando assim que se discutam outros.
É melhor que o debate público fale sobre o presidente comer pizza na calçada de Nova York ou esmiúce seu discurso fantasioso na ONU do que dê ênfase a mais um aumento no preço dos combustíveis, inflação de alimentos ou a denúncia da Prevent Senior.
Volume de menções sobre temas de política no Twitter nos últimos 7 dias (entre 15 e 21 de setembro de 2021)
O cargo de presidente já seria suficientemente importante para influenciar na agenda de discussão, mas Bolsonaro costuma se sair realmente bem nesse controle das pautas. Usa suas redes sociais e microfones com bastante habilidade, ataca jornalistas, corre atrás de animais com caixa de remédio… Tudo pela audiência, ou pelo controle dela.
As redes sociais são um desafio ainda maior nesse sentido. Antes, os editoriais de jornais eram instâncias formadoras de opinião capazes de, prioritariamente, sugerir quais pautas eram importantes, como explica a teoria do gatekeeping. Agora, cada @ é um possível divulgador de um furo, de uma novidade, e a sociedade em rede avalia aquilo que lhe interessa.
A imprensa tradicional, em Nova York e em outros episódios, correu atrás também dos cliques e likes, assim como os portais financiados pelo governo. E assim vamos discutindo, ano após ano, mamadeiras, cloroquinas e pizzas. Mas é sempre bom lembrar, e o número de menções nas redes traz isso, que, apesar de todos os esforços de Bolsonaro para esconder pautas ruins para o governo, a fome está de volta, e a Covid matou quase 600 mil brasileiros. A inflação é persistente. Não só nas redes, mas na vida real. Não por acaso, uma das postagens no Twitter de maior alcance na língua portuguesa ontem tratava de forma singela sobre isso.
Advogado, mestre em Ciências Sociais pela UnB e pesquisador associado do Cepesp/FGV
Sócio da Arquimedes, consultoria de análise de mídias sociais. É mestre e graduado em administração pela Fundação Getulio Vargas.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí