Pessoas aguardam atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Peri, na Zona Norte de São Paulo Foto: Rivaldo Gomes/Folhapress
O que esperar de um prefeito em São Paulo
A poucas semanas da eleição, precisamos trocar o destempero pelo equilíbrio e focar no que realmente importa para cuidar de uma cidade
Quem ainda nutria esperanças de assistir a um debate qualificado na eleição para prefeito de São Paulo, maior metrópole do Hemisfério Sul, frustrou-se rapidamente. Já se sabia que alguns candidatos tentariam reproduzir o embate nacional entre Lula e Jair Bolsonaro, trazendo para si o peso dessas lideranças. A campanha a que estamos assistindo, no entanto, vai além da polarização: é uma sucessão de acusações sem provas, fake news, lacrações na internet e ataques pessoais de todo tipo. O mais recente foi feito com uma cadeira, em rede nacional.
Não é que alguns candidatos simplesmente prefiram a grosseria, o discurso de ódio, o radicalismo. Esse festival deplorável serve, na verdade, como uma cortina de fumaça para esconder o fato de que eles não têm conhecimento da cidade e do que é preciso para resolver problemas graves de segurança e saúde – os dois assuntos que mais preocupam os paulistanos, segundo o Datafolha. A estratégia por trás disso é cristalina. É espantoso que, ainda assim, postulantes com esse perfil liderem as pesquisas de intenção de voto.
Como escapar desse jogo sujo? De que maneira podemos escolher um bom prefeito?
Comecemos “pelas coisas primeiras”, como ensinou Aristóteles. Afinal, o que faz um prefeito? Podemos recorrer à frase seminal de André Franco Montoro, que governou São Paulo entre 1983 e 1987: “Ninguém vive na União ou no estado. As pessoas vivem no município.” A frase foi um tanto banalizada. Como atestou o diplomata Rubens Barbosa, que serviu como embaixador em Londres e Washington, Montoro a repetia “até em demasia, sempre para novas audiências” ou, às vezes, “para maior convencimento de antigos ouvintes”.
A reflexão do ex-governador, no entanto, ainda é atual e necessária. Ela resume o alto grau de responsabilidade dos prefeitos, que lidam com aspectos muito práticos da vida cotidiana dos brasileiros. Hoje, mais de 85% da população do país vive em aglomerados urbanos – estatística que, por si só, demonstra o quão importante é a administração das cidades.
As tarefas de um prefeito, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), são:
- Desenvolver as funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus habitantes;
• Organizar os serviços públicos de interesse local;
• Proteger o patrimônio histórico-cultural do município;
• Garantir o transporte público e a organização do trânsito;
• Atender à comunidade, ouvindo suas reivindicações e anseios;
• Pavimentar ruas, preservar e construir espaços públicos, como praças e parques;
• Promover o desenvolvimento urbano e o ordenamento territorial;
• Buscar convênios, benefícios e auxílios para o município que representa;
• Apresentar projetos de lei à câmara municipal, além de sancionar ou vetar;
• Intermediar politicamente com outras esferas do poder, sempre com o intuito de beneficiar a população local;
• Zelar pelo meio ambiente, pela limpeza da cidade e pelo saneamento básico;
• Implementar e manter, em boas condições de funcionamento, postos de saúde, escolas e creches municipais, além de assumir o transporte escolar das crianças;
• Arrecadar, administrar e aplicar os impostos municipais da melhor forma;
• Planejar, comandar, coordenar e controlar, entre outras atividades relacionadas ao cargo.
Vários itens da lista, como “garantir o bem-estar” das pessoas, cuidar do transporte, das praças, dos postos de saúde e das escolas resumem o que é ser prefeito na prática: zelar pela “vida como ela é”. É nas questões do dia a dia que um prefeito pode fazer a diferença.
Nem tudo está ao alcance do alcaide, é importante dizer. Um bom exemplo – que, com frequência, provoca confusão – é o policiamento. Eleitores cobram isso dos candidatos, que, por sua vez, se esquivam da responsabilidade. De fato, o comando das polícias militar e civil cabe aos governos estaduais. Mas a questão não é tão simples. Como ensina o jurista Júlio Cesar Machado, no livro Manual do Prefeito e Vereador, a segurança pública é uma atribuição “de todos os entes políticos (União, estados, Distrito Federal e municípios), sendo-lhes assegurados os meios necessários para que possam restringir os direitos e liberdades individuais dos cidadãos, em favor do interesse coletivo”.
A Constituição, por sua vez, diz no artigo 144 que a segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”. Esclarece, em seguida, que “os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações”. Sancionado em 2014 pela presidente Dilma Rousseff, o Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei nº 13.022) estabeleceu as normas gerais desse policiamento, que deve ser feito em complemento às “competências da União, dos estados e do Distrito Federal”.
A segurança é a maior preocupação de 23% dos paulistanos, segundo o levantamento feito pelo Datafolha em março. A proporção não deve ser muito diferente em outras grandes capitais. Faz sentido, por isso e pelo que prevê a Constituição, que questões de policiamento e combate ao crime estejam tão presentes na campanha eleitoral deste ano.
Seria normal esperar que candidatos investigados por crimes diversos se assustassem com menções à polícia. Não é o que ocorre. Na verdade, são esses políticos e seus aliados os que mais alardeiam a necessidade de dar armas de grosso calibre para os policiais, quando não aos próprios cidadãos. Em geral, oferecem programas de governo com pouco detalhamento e quase nenhum critério. Ora, armamentos utilizados para policiar mananciais como Guarapiranga e Billings não devem ser usados para vigiar o entorno de escolas.
Propostas desse tipo, genéricas e agressivas, acabam ofuscando o que realmente deveria ser debatido na eleição: o papel-chave dos prefeitos na articulação com os governos estadual e federal para aprimorar a segurança pública e combater de verdade a criminalidade.
A articulação política é crucial para o trabalho do prefeito, e não só devido à segurança pública. A saúde, a educação e outras áreas importantes podem se beneficiar de programas conduzidos em parceria com os governos estadual e federal. Espera-se do prefeito que ele seja capaz de dialogar com esses governantes, mesmo que não sejam do seu partido político. Como representante máximo da população de sua cidade, o prefeito tem a obrigação de colocar os interesses dela acima de suas convicções e interesses pessoais.
Um exemplo do que não fazer ocorreu em dezembro do ano passado, quando a prefeitura de São Paulo mandou suspender os procedimentos destinados à interrupção da gravidez no Hospital Municipal da Vila Nova Cachoeirinha, referência em casos de aborto previstos por lei. Alegou-se, na época, que havia suspeita de irregularidade em algumas operações, o que nunca foi comprovado. Mais provável é que essa medida tenha sido adotada pelo prefeito para agradar grupos políticos que se opõem radicalmente à prática do aborto.
O que o prefeito ou qualquer político pensa a respeito do aborto – em razão, digamos, de sua religião – não deveria influenciar a política pública do município. É papel do alcaide e dos vereadores garantir que o cidadão tenha acesso a todos os direitos previstos em lei.
Devemos ter um objetivo simples quando escolhemos um prefeito para nossa cidade: o bem comum. É aquilo que Aristóteles, novamente, chamou de “viver bem”, e que está na essência da política. É fácil, no entanto, perder isso de perspectiva. Se já vivíamos uma época de polarização devastadora no Brasil, como vimos na última eleição presidencial, hoje estamos cada vez mais reféns das redes sociais e de seu poder desconcertante de influenciar o debate público. Elas protagonizaram a campanha em São Paulo até aqui.
Seria ingênuo imaginar que a internet – nossa ágora contemporânea – não impactaria o modo de fazer política. A arena de debates públicos foi transplantada para o universo digital. Logo entende-se por quê: os brasileiros passam, em média, 3 horas e 37 minutos por dia nas redes sociais. Perdem apenas para os quenianos e os sul-africanos, segundo o relatório Digital 2024: Global Overviews Report, publicado pela consultoria Kepios.
Nenhum candidato minimamente sensato pensaria em ignorar as redes. É um poder que não se pode contestar, mas que tem feito grande mal ao debate público. Essa nova ágora, em vez de abrigar propostas que interessam ao bem comum, tornou-se um veículo de manipulações e abusos constantes, inclusive abuso econômico. Em São Paulo, a Justiça Eleitoral mandou suspender perfis de Pablo Marçal (PRTB), acolhendo a tese de que ele cometeu abuso econômico ao remunerar pessoas para veicularem seus vídeos editados.
A popularidade de Marçal, candidato que surpreendeu a todos ao disparar nas pesquisas, está amparada justamente no mundo digital (e assim deve continuar, já que outros perfis foram abertos em seu nome). Como o PRTB, seu partido, não tem representação no Congresso, Marçal ficará de fora da propaganda eleitoral em rádio e tevê. O que lhe resta são mesmo as redes sociais, os conteúdos impulsionados, os vídeos sensacionalistas.
O problema é que uma coisa é o mundo virtual; outra, muito distinta, é a realidade concreta. Parodiando a frase de Montoro, poderíamos dizer: “Ninguém vive no mundo virtual. As pessoas vivem no mundo real.” Existe uma São Paulo muito concreta, com mazelas de todo tipo, aguardando por um prefeito que saiba combatê-las com seriedade e eficiência.
Diante do nacional-radicalismo (fulgurante à direita e à esquerda) e do marketing digital eleitoreiro, o que o cidadão paulistano pode fazer? Nossa sugestão: recusar os extremos, as experiências fracassadas e os planos de governo baseados em likes – e, em vez disso tudo, apoiar a renovação com conteúdo, sempre lembrando-se do que é a verdadeira função da política: o bem comum. É pensando nisso que devemos eleger nosso prefeito.
Faltam poucas semanas para o primeiro turno. Tempo curto, mas suficiente para fazer valer o equilíbrio, não o destempero; o conhecimento, não a ignorância; as propostas realistas, sustentáveis e inclusivas para São Paulo – e não o sectarismo, o fracasso, o viral.
É cofundador do Arq.Futuro e coordenador-geral do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper. Também é editor e sócio da BEI Editora
É integrante do Conselho do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper, fundadora da BEI Editora e cofundadora do Arq.Futuro
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