Ilustração: Carvall
O que importa na guerra do saneamento
Em vez de discutir mudanças com o Congresso, governo prefere adiar prazos e atenuar exigências – mas isso não resolve as dificuldades de quem está sem água na torneira
O saneamento básico – tema que impôs a primeira derrota do governo Lula 3 na Câmara e agora se encontra nas mãos do Senado – representa, ao lado da energia elétrica, a principal infraestrutura constitutiva da cidade. Abrir uma torneira e usar a água é um ato tão natural que nos esquecemos de que existe uma gigantesca operação de engenharia por trás disso, responsável por captar, tratar e distribuir o produto aos consumidores e, depois do uso, coletar e tratar novamente a água, para que possa ser devolvida à natureza sem risco de poluí-la. Um dos maiores dramas sociais, sanitários e ambientais do país consiste no fato de que 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto. O debate em torno das responsabilidades por essa situação e do melhor modelo para superá-la se prolonga há anos. A disputa em curso no Congresso tem por objeto os decretos do governo que regulamentam o novo marco legal do saneamento, aprovado em 2020.
Atualmente, cerca de 70% dos serviços de água e esgoto são prestados por companhias estaduais de saneamento básico (Cesb). O restante, por serviços autônomos de água e esgoto (Saae) e concessionárias privadas. Os Saae são normalmente autarquias municipais. As Cesb constituem empresas públicas ou companhias de economia mista controladas pelos governos estaduais. Já as concessionárias são empresas privadas selecionadas por licitação.
As companhias estaduais foram criadas a partir da década de 1970 para viabilizar a execução do Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasa), estabelecido pelo governo federal. O plano previa a concessão dos serviços pelos municípios para as Cesb, sob estímulo de financiamentos federais. Essas concessões foram realizadas sem licitação, pois na época não havia essa exigência.
Com a Constituição de 1988, veio a exigência de que toda concessão de serviço público seja precedida de licitação. Os contratos anteriores continuaram vigentes, porém teriam que ser objeto de licitação uma vez expirados. Em 2005, criou-se, no entanto, uma forma de renovar os contratos das Cesb sem licitação. Foi criado o chamado contrato de programa – privativo das empresas estatais com as mesmas regras da concessão, mas que é celebrado sem licitação.
Apesar de a Constituição prever uma legislação nacional sobre saneamento básico, ela foi aprovada somente em 2007. A Lei 11.445, com as diretrizes nacionais para o setor, criou um amplo arcabouço institucional. Previu a elaboração pelos municípios de planos de saneamento básico, com diagnóstico, metas, prazos, ações, fontes de financiamento e mecanismos de avaliação. Também previu que as tarifas sejam fixadas por agências reguladoras independentes, em patamares suficientes para o financiamento dos investimentos, contudo compatíveis com a capacidade de pagamento dos usuários. Apesar desses importantes passos, a Lei de 2007 manteve o modelo de prestação dos serviços por empresas estaduais sem licitação.
O privilégio às empresas estatais no âmbito dos serviços de saneamento básico começou a ser contestado em 2018, quando foram editadas as Medidas Provisórias 844 e 868. Elas exigiam que, antes de assinar contratos com as empresas estaduais, os municípios publicassem editais para verificar se empresas privadas tinham interesse em disputar o mercado. Essas MPs perderam vigência em 2019, todavia um substitutivo da comissão mista do Congresso Nacional acabou sendo posteriormente transformado em projeto de lei e aprovado. A Lei 14.026, de 2020, resultante desse processo, passou a ser chamada de “novo marco legal do saneamento básico”.
Esse novo marco tinha como objetivos principais promover a concorrência no setor e atrair investimentos privados. Para isso, suprimiu-se a possibilidade de prestação dos serviços por contrato de programa, sem licitação. As Cesb não ficaram excluídas do setor, nem precisaram ser privatizadas, entretanto passaram a ter que disputar as licitações em igualdade de condições com as empresas privadas.
Nas versões iniciais da futura lei, a transição para o novo sistema seria suave, respeitando-se os contratos de programa (sem licitação) até o término de sua vigência, porém sem novas prorrogações. Ao longo da tramitação do projeto, no entanto, foram introduzidas novas regras. Estabeleceu-se a necessidade de aditar os contratos vigentes para incluir metas de universalização dos serviços de água e de esgoto até 2033. O prestador que não cumprir o contrato é punido com a extinção do contrato.
Para que os aditamentos fossem assinados, estabeleceu-se a obrigação de comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores para realizar os investimentos necessários à universalização. Os que não conseguissem fazer essa comprovação teriam seus contratos declarados irregulares, ficando os serviços sujeitos a encampação pelos municípios, para subsequente concessão ou prestação direta. Essas medidas foram regulamentadas e implementadas pelo Poder Executivo em 2021.
Em abril deste ano, o novo governo federal editou dois decretos, alterando a regulamentação feita pela gestão anterior sobre a comprovação de capacidade das concessionárias e a regionalização dos serviços de saneamento. As mudanças mais relevantes adiam prazos e adotam critérios menos rigorosos para a comprovação de capacidade; permitem que as Cesb prestem os serviços em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões sem licitação; adiam o prazo de regionalização para 2026 e permitem o financiamento a prestadores que atuem sem contrato ou com contratos irregulares até dezembro de 2025.
O principal argumento em defesa dessas medidas foi a necessidade de assegurar recursos para os 1113 municípios cujos prestadores não conseguiram comprovar a capacidade para universalizar os serviços e para outros 2.098 municípios que não foram incluídos em blocos regionais no prazo previsto. Com isso, o direcionamento de recursos federais, principal instrumento de indução à regionalização e às licitações para concessão dos serviços, passou a se tornar obrigatório somente a partir do último ano do mandato do atual presidente da República.
Em reação à edição dos decretos, a Câmara dos Deputados aprovou um Projeto de Decreto Legislativo sustando os dispositivos que autorizam a atuação das Cesb sem licitação e adiam a comprovação de capacidade dos prestadores, sob alegação de que exorbitam o poder regulamentar do Poder Executivo. A aprovação do decreto legislativo depende agora da votação no Senado
Que avaliação se pode fazer de todo esse quadro? O novo marco nasceu com uma orientação clara e coerente a ser seguida: a regionalização, para subsequente concessão dos serviços de água e esgoto, com licitação para seleção do prestador, seja ele público ou privado. A implantação desse modelo ocorreria no médio prazo, pois os contratos de programa assinados seriam respeitados, ainda que não pudessem mais ser renovados.
Ao longo da tramitação do projeto, no entanto, incluiu-se um atalho: exigências de comprovação da capacidade dos atuais prestadores para universalizar os serviços até 2033 e cumprimento de metas intermediárias, punindo-se as Cesb inadimplentes com a extinção do contrato. Esse atalho criou uma contradição no interior do próprio marco legal do saneamento, pois se choca com os dispositivos que preveem a fixação de metas pelos municípios em planos de saneamento básico elaborados a partir de um diagnóstico local. Além disso, criou o problema de qualificar como irregular a prestação dos serviços em 1.113 municípios, sem que o processo de regionalização tenha sido concluído, para que novas concessões possam assumir esses territórios.
Trata-se de um erro grave, que precisa ser corrigido. Exigir a comprovação da capacidade de prestadores com contratos vigentes, para alcançar metas ambiciosas impostas a partir de Brasília, só vai tumultuar um mercado que precisa de segurança para atrair investimentos. O desrespeito aos atuais contratos de programa se tornará um precedente para o futuro desrespeito aos contratos de concessão.
O correto encaminhamento da questão envolveria a revogação do atalho, restabelecendo-se a coerência do modelo, combinada com uma atuação proativa da União no sentido de promover a regionalização e o planejamento local. O instrumento para isso é o dinheiro: apoiar financeiramente apenas os municípios aderentes aos blocos regionais, como forma de induzir os demais a também aderirem. É preciso retomar o caminho da transição suave para o novo modelo, com licitações competitivas para concessões regionais e metas fixadas em planos locais, a partir de diagnósticos realistas e da efetiva disponibilidade de recursos.
Em lugar de encarar os problemas de frente, no entanto, o novo governo preferiu o caminho mais fácil, que inclui adiar prazos, atenuar exigências e criar exceções, de modo a favorecer as Cesb sem discutir diretamente os problemas do novo marco. É preciso que essa discussão seja feita no espaço correto: o Congresso Nacional.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí