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    Ilustração: Allan Sieber

questões de ordem mundial

O SACRIFÍCIO DA DEMOCRACIA

Ao contrário do que diz Marcos Nobre, é impossível encontrar saídas para a crise por meio de uma reforma do neoliberalismo

José Mario Neves, especial para a piauí | 05 nov 2024_20h27
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A crise da governança econômica global e dos sistemas políticos nacionais impõe-se hoje como um debate urgente e imprescindível. A paralisia da ONU em um mundo conflagrado e em colapso climático, o ressurgimento da extrema direita com força inusitada em inúmeros países importantes, o aumento da pobreza, inclusive nos países centrais, e o aumento disseminado da violência são algumas das evidências que fizeram soar o alarme. No artigo O que vem depois do neoliberalismo?, publicado na piauí (ed. 213_junho de 2024), o professor de filosofia política Marcos Nobre apresenta uma instigante discussão sobre os desafios e impasses atuais dessa governança econômica global, suscitando importantes questões e abrindo um relevante espaço para o debate.

Partindo dos apelos da diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, e do secretário-geral da ONU, António Guterres, por “um novo ‘momento’ Bretton Woods”, Nobre observa que o chamamento feito por eles “é para uma transformação ainda mais profunda e abrangente, que vai além do estabelecimento de uma nova ‘governança econômica global’” como saída para “a crise econômica global do neoliberalismo, deflagrada a partir de 2008”. Segundo Nobre, essa é “uma batalha que está sendo travada dentro do próprio establishment neoliberal”, entre “a direita sem medo de se aliar à extrema direita e um novo progressismo que pretende reformar o neoliberalismo, livrando-se de suas versões mais extremistas”. O professor aponta que essa batalha pode propiciar oportunidades para que “governos do novo progressismo no Sul Global”, como o do Brasil atualmente, escapem da “armadilha neoextrativista” a que foram confinados pelo neoliberalismo. Para aproveitar essas oportunidades, o Brasil entretanto precisa investir na formulação de “uma teoria da dependência renovada”.

Neste texto, não apresentarei uma confrontação pontual às formulações de Marcos Nobre, mas uma leitura alternativa de conjunto, a partir das contribuições da economia política. Ao analisar a crise da regulação neoliberal sem as devidas conexões com a dinâmica sistêmica do capitalismo, Nobre navega na superfície dos movimentos da conjuntura, ficando impossibilitado de compreender a natureza dessa crise e as tendências das dinâmicas históricas. Dessa forma, também deixa de responder às questões cruciais que o seu artigo suscita. Como entender que a democracia esteja entrando em risco, inclusive nos países capitalistas centrais, em pleno século XXI? Por que a governança neoliberal entrou em crise e qual a natureza desta? Por que a extrema direita ressurgiu e está conseguindo, em pouco mais de uma década, dominar o campo da direita tradicional em inúmeros países importantes?

Para responder a essas questões, estruturei este texto em cinco momentos. No primeiro, apresento as condições sócio-históricas que possibilitaram o nascimento da democracia. No segundo, analiso o surgimento da regulação neoliberal e qual o seu papel na governança global. No terceiro, descrevo a dinâmica sistêmica que levou à crise do neoliberalismo. No quarto, examino as condições que levam à eclosão da extrema direita e colocam a democracia em risco. No último, analiso como a associação dessa evolução histórica com o risco de colapso ambiental implica um imenso desafio civilizatório.

 

A democracia de massas talvez seja a mais virtuosa “invenção histórica” resultante do “pacto fordista”. Esse pacto foi configurado ao longo das três décadas de grande desenvolvimento econômico, a partir do final da Segunda Guerra Mundial (os anos chamados de “trinta gloriosos”, ou seja, entre 1945 e meados da década de 1970). O salto econômico – decorrente da incorporação industrial das tecnologias desenvolvidas na guerra e da expansão dos mercados, pela plena integração dos países às relações de produção capitalistas – gerou um contexto de grande ganho de produtividade com expansão do emprego.

Ao mesmo tempo que essa expansão do emprego criou as condições para o surgimento de uma sociedade de consumo, a indústria passou a demandar trabalhadores saudáveis e educados para a produção. Essa demanda levou à acelerada expansão das políticas públicas de saúde, educação e urbanização, estruturantes do Estado de bem-estar social.

A dinâmica criada pela combinação da luta dos trabalhadores organizados – no contexto da derrota da extrema direita na Segunda Guerra –, com a integração social pelo trabalho, o consumo de massas e o Estado de bem-estar social, criou as condições para uma importante novidade histórica: a democracia de massas.

Independente das inúmeras críticas às limitações da democracia formal, cabe ressaltar a sua relevância como enorme inovação histórica. Pode-se caracterizar essa novidade como a passagem de uma gestão violenta das contradições sociais para uma gestão mediada por negociações políticas – políticas públicas e processos eleitorais. Essa novidade foi definida pelo professor de filosofia Paulo Eduardo Arantes, em A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização (2023), como “um arranjo original de regulações e proteções desmercadorizadas”.

 

O pressuposto para a compreensão de qualquer nova modalidade de governança é que ela sempre é uma resposta às condições que conduzem ao fracasso ou à crise da forma de regulação anterior. Esse pressuposto leva a duas definições importantes: a primeira é que o neoliberalismo foi a resposta hegemônica à crise sistêmica do pacto fordista; e a segunda é que, para compreendermos o neoliberalismo, precisamos analisar as condições às quais ele veio a responder.

O pacto fordista entrou em crise na década de 1970, quando os ganhos de produtividade decorrentes do avanço do processo de automação e da síntese de novos materiais (possibilitado pela evolução da eletrônica e da química, tecnologias da Terceira Revolução Industrial, a partir de meados de 1950), levaram à redução da participação do trabalho no processo de produção. Como sintetiza o ensaísta político de Robert Kurz, em Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio (2015), com a Terceira Revolução Industrial “pela primeira vez na história do capitalismo os potenciais de racionalização [do trabalho] ultrapassam as possibilidades de expansão dos mercados”.

A retração acelerada da participação do trabalho vivo na produção passou a comprometer o processo de valorização do capital, com a decorrente redução da lucratividade das empresas, conforme observa o professor e ensaísta Marildo Menegat, no livro Estudo sobre ruínas (2012): “Esse enxugamento do trabalho afetou irreversivelmente a acumulação de valor do capital total.”

A redução da lucratividade empresarial tornou o pacto fordista insustentável do ponto de vista do capital, abrindo um período de disputa – disputa que é resolvida pela configuração de uma nova hegemonia política de matriz neoliberal. Essa nova hegemonia teve como expoentes mais notórios os governos de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, mas seus efeitos se propagaram por todo o planeta, como vimos com os governos de Carlos Menem, na Argentina, e de Fernando Collor, no Brasil.

O neoliberalismo foi a efetuação dos “ajustes necessários” à manutenção da acumulação de capital, nas condições agora mais restritas de valorização – “ajuste” executado por meio da imposição de um profundo arrocho nas condições de vida dos trabalhadores, via precarização das relações de trabalho e contenção dos salários, redução dos direitos e cortes nos gastos sociais.

Podemos caracterizar o neoliberalismo como o “prefácio” do processo de dissolução social em curso – dissolução anunciada por Thatcher em sua famosa provocação (que deve ser entendida como o objetivo almejado pelos neoliberais): “Who is society? There is no such thing!” (ou seja, não existe essa coisa chamada sociedade).

 

O estouro da bolha de hipotecas nos Estados Unidos, em 2008, é considerado o grande marco da crise da regulação neoliberal, abrindo um novo período de disputa pela hegemonia do sistema. Essa crise decorre do aprofundamento, mas agora em uma escala imensamente maior, da dinâmica que tinha levado à crise do pacto fordista nos anos 1970.

O avanço da microeletrônica, da robótica e da internet – tecnologias da Quarta Revolução Industrial que tiveram enorme desenvolvimento a partir da década de 90 – desencadeou um intensivo processo de aceleração da automação. Esse processo reduziu exponencialmente a participação do trabalho vivo no processo produtivo, com a consequente diminuição radical da produção de valor e contração ainda maior das margens de lucratividade das empresas.

Já é possível antever que estamos chegando a um ponto de colapso sistêmico da criação de valor, na medida em que a participação do trabalho é cada vez mais marginal no processo produtivo, sendo que a inteligência artificial, que irá extinguir uma infinidade de postos de trabalho, ainda está dando os seus primeiros passos. Esse colapso só poderá ser postergado, por algum tempo, mediante a imposição de um arrocho ainda mais brutal nas condições de vida dos trabalhadores e do aprofundamento da apropriação da riqueza pública, por meio das dívidas estatais e das privatizações. Assim, a regulação neoliberal entrou em crise, porque os seus “mecanismos de ajustes” – que foram eficazes para manutenção da lucratividade das empresas nas condições das décadas de 1980 e 1990 – tornaram-se insuficientes, diante da acentuada redução das condições para a valorização do capital.

O intensivo direcionamento dos capitais para os circuitos da especulação financeira é mais uma evidência desse colapso. Atualmente circulam nos mercados especulativos mundiais muitos trilhões de dólares, tornando as crises financeiras cada vez mais profundas. No entanto, nunca é demais repisar que a especulação financeira não é a causa da crise e sim uma de suas consequências, que provém da redução das condições de valorização do capital produtivo.

Outra consequência dessa crise é o aumento da desigualdade, que está na base do processo de redução dos setores médios da sociedade (a chamada “classe média”) em grande parte do mundo, como tem sido documentado por inúmeras pesquisas. Cabe lembrar que uma contrapartida política e social que decorre dessa contração dos setores médios da sociedade é a progressiva extinção do centro político (incluindo a centro-direita e a centro-esquerda) – como se vê em muitos países.

Podemos sintetizar dizendo que o arrocho necessário à viabilização de uma sobrevida a esse sistema em colapso significará a imposição de um apartheid brutal, como forma de manter funcionando as “ilhas de valorização do capital” que ainda permanecem viáveis. Apartheid já em expansão não apenas na periferia do sistema, haja vista o aumento da pobreza e da desigualdade nos Estados Unidos e na Europa – o que alguns pesquisadores “batizaram” de brasilianização dos países centrais.

Ao analisar o processo de brasilianização do mundo, Paulo Arantes, em seu livro A fratura brasileira do mundo, evidencia o seu caráter estrutural e a incorporação da violência como estratégia importante na gestão social. Ele observa que se trata de “disfunção patogênica por motivo de mudança social acelerada, menos uma crise do que a inauguração turbulenta de um novo paradigma civilizacional […]. Nessas circunstâncias seria mesmo de se esperar uma reformulação ‘violenta’ dos modos de se ‘fazer sociedade’.”

 

A compreensão da crise da gestão neoliberal, como decorrente da sua incapacidade de viabilizar a manutenção da acumulação de capital, também é a chave para a compreensão do ressurgimento da extrema direita em pleno século XXI e os impasses da democracia.

A crise sistêmica da produção de valor coloca para o establishment político o desafio de colocar em prática um programa de brutal redução de direitos sociais e humanos, que é politicamente insustentável na democracia – o que a direita já compreendeu. Esse programa implica a abolição radical do pacto fordista, o que exige o retorno da violência como operador da gestão social, no lugar da negociação política, tal como inaugurada pela democracia moderna. Por isso, a democracia está em risco, tanto nos países periféricos, quanto nos países centrais, o que era impensável até poucos anos atrás.

O enfraquecimento da direita tradicional e a reaparição da extrema direita no seu lugar decorrem do reconhecimento, pela própria direita, de que ela não é capaz de levar adiante o programa de extermínio da democracia, necessário à manutenção das condições para acumulação do capital. Impotente, a direita entregou a direção do campo da direita para quem “entende desse assunto”. Como se diz no mercado, “cedeu o ponto” e colocou uma plaquinha de aviso: “Sob nova direção.” Isso fica evidente ao observarmos a velocidade com a qual o trumpismo colonizou o Partido Republicano e como a extrema direita está se apoderando do campo da direita tradicional em vários países da Europa e da América Latina. 

No Brasil, a política de apartheid radical avançou nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, com a Reforma Trabalhista e a da Previdência, o novo teto de gastos e o desmonte das políticas públicas. Agora, vemos a tentativa de “enquadramento” do governo Lula a essa política, por meio da intensa pressão para cortes de gastos sociais – especialmente a desvinculação do piso das aposentadorias e do Benefício de Prestação Continuada (dado a pessoas com deficiência) do salário mínimo –, para viabilizar a manutenção do arcabouço fiscal.

Essa política de apartheid radical também está em curso na Argentina, sob os aplausos do FMI. Segundo um relatório de setembro passado do Instituto Nacional de Estadística y Censos (Indec), do Ministério da Economia da Argentina, a população abaixo do limiar da pobreza atingiu 52,9% (um crescimento de cerca de 25% em relação ao fim do ano passado), sendo que a população abaixo da linha de indigência alcançou 18,1% (um aumento de 52%).

A dinâmica de “dissolução social” e passagem da “gestão negociada das contradições” – que constitui a própria democracia – para a “gestão operada pela violência”, também se faz cada vez mais visível no Brasil em vários indicadores: o aumento da violência social e da violência policial, com o extermínio de jovens, principalmente negros; o encarceramento em massa; o crescimento da segurança privada, dos grupos de extermínio, do crime organizado e das milícias e sua penetração no aparato estatal e na política. Como escreve Marildo Menegat, em A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe (2019): “Como essa unidade [da sociedade] foi implodida pela crise, seu lugar vai sendo ocupado por relações sociais sustentadas no uso direto da violência, que procura ainda manter conectado o que ainda funciona da reprodução social da velha ordem agônica.”

Se caracterizamos o neoliberalismo como o preâmbulo do processo de dissolução social – cada vez mais visível em todas as esferas da sociedade –, podemos dizer que, ao entregar a direção do seu campo para a extrema direita, a própria direita busca produzir o seu epílogo.

 

Por fim, precisamos incluir nessa análise a crise climática, que tende a operar como um importante fator de acentuação dos conflitos sociais e geopolíticos. O ponto de degradação ambiental a que chegamos evidencia o antagonismo existente entre o capitalismo contemporâneo e a preservação da natureza.

Esse antagonismo pode ser compreendido pela análise de duas determinações estruturais do funcionamento do capitalismo. A primeira é a exigência inescapável do capital de buscar a permanente valorização, para manter a sua condição de capital. A segunda é que, para se valorizar, ele precisa necessariamente passar pela forma de mercadoria, o que tem por consequência a produção constante e o consumo desenfreado de recursos. A combinação dessas duas determinações faz do capitalismo um sistema de acumulação infinita, que precisa devorar cada vez mais recursos para produzir mercadorias, o que o torna incompatível com os limites naturais do planeta.

A corrida pelo crescimento econômico constante e ilimitado, mais do que um fetiche dos governos e das empresas, é o próprio modo de ser desse sistema. Por isso, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, em Há mundo por vir? – Ensaio sobre os medos e os fins (2014), afirmam, que “não há composição possível com a lógica absolutamente não civilizável do capitalismo”.

É sabido que, em vários momentos da história, setores progressistas e de esquerda prognosticaram a crise terminal do capitalismo. No entanto, é preciso reconhecer que a crise atual está constituída por elementos que têm uma qualidade e uma dimensão inusitada – seja do ponto de vista ambiental, seja do funcionamento sistêmico – que evidenciam que, de fato, já entramos em um novo período histórico. Um período histórico que se caracteriza por uma inaudita aceleração da barbárie, com o colapso das formas de regulação social construídas pela democracia.

Esse é o tamanho do desafio: estamos diante de um sistema de produção que chegou ao seu limite. Sendo assim, a tendência dele é cada vez mais produzir barbárie – social e ambiental. Esse desafio se apresenta ainda maior quando vemos, na discussão acadêmica e na imprensa, que é considerado mais plausível discutir o colapso climático do planeta ou a possibilidade de uma guerra – que podem significar uma regressão à barbárie para a espécie humana – do que a superação do capitalismo.

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