O sal da terra
O sal da terra – um conto-da-carochinha
Sebastião Salgado encarnou a partir do início da década de 1970, durante cerca de 20 anos, a figura heroica do viajante moderno que ao voltar de terras distantes tem histórias para contar. No caso dele, histórias sintetizadas em imagens poderosas. Cada uma das suas fotografias desse período contém uma narrativa, quase sempre trágica. Formam ao mesmo tempo, isoladas ou em conjunto, um belo espetáculo visual.
Sebastião Salgado encarnou a partir do início da década de 1970, durante cerca de 20 anos, a figura heroica do viajante moderno que ao voltar de terras distantes tem histórias para contar. No caso dele, histórias sintetizadas em imagens poderosas. Cada uma das suas fotografias desse período contém uma narrativa, quase sempre trágica. Formam ao mesmo tempo, isoladas ou em conjunto, um belo espetáculo visual. O uso do preto, branco e das gradações de cinza, a composição, luz, expressão do rosto, postura física, o olhar, tudo enfim é harmonizado para causar o máximo de impacto.
“A força de uma foto é que naquela fração de segundo se entende alguma coisa da vida daquela pessoa” diz Sebastião Salgado em . Será razoável tamanha expectativa de uma foto? Além da circunstância do instante captado o que é possível compreender sobre quem é fotografado? Qual é a natureza da relação que Salgado estabelece com as pessoas fotografadas? O filme passa ao largo dessas e outras tantas questões que o trabalho dele suscita.
Dirigido por Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado, filho de Sebastião Salgado, ganhou o Prêmio Especial na mostra Un certain regard do Festival de Cannes de 2014, foi indicadoao Oscar de melhor documentário este ano, e recebeu ainda o prêmio César, dado na França ao melhor documentário do ano.
O documentário propõe recuperar a longa jornada de Sebastião Salgado, utilizando materiais heterogêneos gravados separadamente por cada um dos diretores. As imagens coloridas parecem ter sido feitas por Juliano nas viagens em que, inicialmente contrariado, acompanhou seu pai. Sebastião Salgado, porém, insistiu. Disse que estava ficando velho e queria guardar um registro de si mesmo em ação. Mas, na verdade, conforme Juliano contou a Andrew Pulver, do The Guardian, ele só queria que o filho estivesse lá. Sabia que seria uma experiência importante.
Wenders começou a trabalhar no filme pensando que faria apenas algumas entrevistas. Mas acabou vindo ao Brasil e “gravando centenas de horas de material” que no filme é usado em preto e branco – um longo depoimento biográfico de Sebastião Salgado, no qual por momentos Wenders aparece sentado ao lado dele. E um igualmente extenso comentário de algumas fotos às quais o rosto de Sebastião Salgado é superposto por instantes, parecendo um espectro de gosto duvidoso.
A premissa de , revelada por Wenders em entrevistas e depoimentos, além de incluída na própria narração do filme na sua própria voz, é que Sebastião Salgado “chegou ao fim de alguma coisa. Ele chegou no coração das trevas; o inferno realmente o alcançou e acho que ele seria incapaz de continuar vivendo. Ele talvez não tivesse encontrado a saída se não tivesse tido um encontro com a natureza. Foi uma redenção. Replantar a mata atlântica, recuperar o solo desmatado e erodido, tirou-o do terrível buraco no qual estava e ele reinventou a si mesmo e a sua fotografia.”
É uma bela história, com ingredientes típicos de um conto-da-carochinha. Primeiro, o trauma ao fotografar o genocídio em Ruanda, no qual 800 mil pessoas foram mortas, em 1994. Depois, a redenção no projeto Gênesis ao se voltar para a natureza e áreas não alteradas pelo desenvolvimento humano.
A eficácia da premissa de Wenders e dos seus lugares comuns dramáticos, típicos de um roteiro hollywoodiano, são perturbados, porém, pelos fatos, uma vez que Sebastião Salgado, na verdade, continuou fotografando situações de miséria extrema, como as da fome e guerra na África, nos projetos Migrações, em 2000, e Sahel: o fim do caminho, em 2004. Wenders parece não perceber que, mesmo à sua maneira elegante, está impondo uma harmonia artificial à trajetória de Sebastião Salgado e acaba fazendo de uma hagiografia banal.
É pena que Juliano não tenha enfrentado a dificuldade real de entrevistar seu próprio pai. “Eu não poderia ter feito as entrevistas”, ele declarou,“– minha relação com meu pai é carregada demais.” Essa tensão talvez tivesse permitido fazer um retrato de Sebastião Salgado menos reverente e neutro que o de , sendo o melhor indício dessa possibilidade a gravação de Juliano feita, durante o projeto “Gênesis”, na ilha de Wrangel, uma das reservas naturais menos frequentadas do mundo.
Território da Rússia no Oceano Ártico, a ilha de Wrangel é habitada por ursos polares e morsas, além de focas, lemingues e, no verão, uma colônia de aves. Uma tentativa feita por Salgado de fotografar as morsas fracassa pela presença de um urso polar rondando nas proximidades. É uma das raras vezes, se não a única, em que um fator imprevisto é incorporado ao documentário, mostrando a dificuldade de fotografar, particularmente em regiões de acesso difícil, em condições adversas ou situações de risco. Enquanto estão refugiados do urso, que Sebastião fotografa através de uma abertura, Juliano pergunta se as fotos estão ficando boas. E Sebastião, monossilábico, responde que não, revelando as necessidades básicas da sua linguagem: ação e um fundo para compor a foto, que seriam as exigências mínimas para fazer seus espetáculos em forma de instantâneos.
A narração do filme diz que Sebastião Salgado “realmente se importa com as pessoas” e que elas são o sal da terra. Não é pouca pretensão adotar como título uma passagem do Evangelho de Mateus. Mas ainda mais problemático é a tirada demagógica atribuindo aos personagens trágicos de Sebastião Salgado, marginalizados, esquecidos, sofridos, massacrados, a condição de seres discretos e essenciais, como o sal.
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