Ilustração: Carvall
O samba do desassossego
A história de Roendo as unhas, a canção noiada de Paulinho da Viola que atravessou a ditadura e chega aos 50 anos como síntese de beleza e agonia
Com a mão direita, Paulinho da Viola dedilha seu violão num ritmo a princípio estranho ao samba, arpejos curtos que parecem de alguma maneira interrompidos. Na mão esquerda, faz um caminho de quatro acordes que sugerem uma tensão crescente — quando ela anuncia que vai se resolver num quinto acorde, esse nunca chega, e o músico retoma o início do ciclo, num loop que vai seguir inalterado ao longo dos cinco minutos da canção. Os versos reforçam a angústia: “Meu samba não se importa que eu esteja numa/ De andar roendo as unhas pela madrugada/ De sentar no meio-fio não querendo nada/ De cheirar pelas esquinas minha flor nenhuma.”
O efeito é perturbador — e moderno — ainda hoje, 50 anos depois do lançamento de Roendo as unhas, no disco Nervos de aço, de Paulinho. Talvez por isso, pela maneira como soa afinada ao desassossego destes dias, a canção foi uma das pinçadas para o show O ano de 1973, atração do dia 21 de maio do C6 Festival, no Parque do Ibirapuera. Na apresentação, Kiko Dinucci e Juçara Marçal receberam Arnaldo Antunes, Giovani Cidreira, Jadsa, Linn da Quebrada e Tulipa Ruiz para reler músicas lançadas naquele ano.
“Se eu andar à noite hoje, 2023, pelo Centro de São Paulo, que está horroroso, Roendo as unhas será a trilha sonora perfeita”, sintetiza Dinucci. “É uma música urbana, neurótica, noiada, ansiosa, dos seres que vagam pela noite.”
No início da década de 1970, o ar que se respirava no Brasil tinha o peso dos anos de chumbo da repressão da ditadura militar. A opressão encontrava resistência numa contracultura que, muitas vezes, refletia e engrossava essa densidade, em vez de dissipá-la. Dessa atmosfera saiu a tristeza dos discos londrinos de Caetano Veloso e do show Fa-tal de Gal Costa, a “morbeza romântica” de Jards Macalé e Waly Salomão, a Cosmococa de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida. Roendo as unhas é filha desse tempo.
Há paralelos possíveis entre aquele Brasil e este, que assistiu nos últimos anos ao crescimento da direita antidemocrática de uma maneira que não se dava desde o fim da ditadura. E toda uma gama de novas inquietações pode ganhar espaço na mente do personagem solitário e agoniado de Roendo as unhas: atentados nas escolas; os traumas da pandemia; o poder crescente das big techs e o que ele pode representar no futuro da geopolítica mundial; a precarização do trabalho com o subemprego dos aplicativos de entrega e transporte; as redes sociais como motores de ansiedade e infelicidade.
Já o caráter “noiado” de Roendo as unhas é mais do que uma simples adaptação ao contexto contemporâneo. Paulinho ri ao saber da fala de Dinucci, concorda (“é isso mesmo”) e confirma que o “cheirar pelas esquinas minha flor nenhuma” é uma referência direta à cocaína. “É talvez o meu verso favorito da canção”, diz Paulinho à piauí.
Em entrevista de 1975, referindo-se ao período em que escreveu e gravou Roendo as unhas, Paulinho disse, com a economia de palavras que o momento ainda pedia: “Foi uma fase sofrida, minha e de meus amigos.” Não houve porém, ele explica hoje, a intenção de fazer uma alusão direta à situação política do Brasil ao compor a canção. Mas ele reconhece que, de forma inconsciente, ela está presente em sua tensão musical e poética.
Da mesma forma, há na aflição de Roendo as unhas o testemunho indireto de uma tormenta na vida pessoal. Em entrevista por ocasião do lançamento do disco Nervos de aço, em 1973, Paulinho contou: “Agora estou legal, mas na época [da gravação] tinha acabado de me desquitar e estava arrasado.”
Paulinho não se lembra o momento exato em que surgiram aqueles acordes e aquele dedilhado tão diferentes, por exemplo, do samba rasgado de Foi um rio que passou em minha vida, que havia tornado seu nome conhecido no Brasil inteiro quatro anos antes. Mas há pistas de possíveis caminhos que fizeram com que eles brotassem de seu violão.
Os interesses musicais de Paulinho desde sempre estiveram além do universo circunscrito do samba clássico. Sua Sinal fechado, que venceu o Festival de Música Popular Brasileira da Record de 1969, é mostra disso. A modernidade de sua forma inclassificável e seu clima tenso — ainda sob o impacto do Ato Institucional nº 5, de 1968, é uma canção sobre a iminência e a necessidade de um encontro que não se dá — fazem dela uma espécie de irmã mais velha de Roendo as unhas.
Não à toa, Caetano Veloso, em 1968, ainda antes de Sinal fechado, escreveu uma canção que menciona o caráter naturalmente modernizante da música de Paulinho. Em A voz do morto, na qual o samba em primeira pessoa afirma sua vida e vitalidade (“Ninguém me salva/ Ninguém me engana/ Eu sou alegre/ Eu sou contente/ Eu sou cigana/ Eu sou terrível/ Eu sou o samba”), o baiano diz: “Eu canto com o mundo que roda/ Eu e o Paulinho da Viola”).
Não que Paulinho renegasse a tradição. Pelo contrário. Ele era e segue sendo profundamente ligado a ela, especialmente pela Portela. E sempre resistiu firmemente contra os argumentos de que o samba estava velho, ultrapassado, e deveria se renovar (“Uma afirmação dessa não faz sentido para um sambista, alguém que vive o samba cotidianamente”, chegou a dizer na década de 1970, completando que o samba naturalmente muda quando o sambista muda). Na época do lançamento do Nervos de aço, Paulinho comentou essa pressão que havia sobre ele, e que o perturbava: “Me sinto meio à beira do abismo, sabe? Voltar significa dar uma recuada. E se eu for para a frente eu caio lá embaixo.”
Paulinho, porém (ai, porém), era um artista de seu tempo. Olhava com interesse o trabalho dos tropicalistas e de outros que estavam expandindo os limites da canção popular. Já havia superado o trauma da chegada do rock ao Brasil, que testemunhou horrorizado pelo noticiário que falava dos cinemas quebrados pela passagem do filme Ao balanço das horas (Rock around the clock), em 1956. “Você imagina, eu era acostumado a ficar em roda de choro, ouvia só bolero, tango, samba-canção… Aí começaram a falar que vinha aí um ‘ritmo alucinante’. O que era isso? Vieram as notícias dos cinemas quebrados, minhas primas dançando aquilo, pondo o pé na cadeira, eu achava uma loucura. Tinha medo”, conta o compositor.
Anos depois, ainda na década de 1960, já sem medo do rock e de outras vanguardas, Paulinho era participante assíduo de reuniões para discutir os rumos da música popular brasileira, onde conheceu compositores como o tropicalista Capinan, de quem logo se tornou parceiro, e Sidney Miller. Trocava ideias com artistas como Jards Macalé e Caetano, de quem foi vizinho no Solar da Fossa — pensão em Botafogo que marcou época na década de 1960 ao reunir jovens músicos, cineastas, escritores e jornalistas. Foi lá, em seu quarto, que Paulinho ouviu Caetano mostrando Paisagem útil, até então inédita. “Era completamente diferente de tudo que eu ouvia”, lembra. Já na década de 1970, meses antes do lançamento de Nervos de aço, levou os Novos Baianos para a Portela, e com eles armou por lá uma roda de samba. “Vieram perguntar como aqueles cabeludos tocavam assim, aquela música de 1930, um samba que já nem se toca mais na Portela”, contou em entrevista de 1973. Enfim, Paulinho não era um sambista comum.
No início daquela década de 1970, passou a ouvir muitos artistas de jazz, em audições na casa do jornalista Luiz Carlos Maciel. Antes, já havia se fascinado com ‘Round midnight, de Thelonious Monk. Mas Maciel mostrou a ele sua discoteca de Duke Ellington e os caminhos que estavam sendo desbravados por Miles Davis. “Ouvi ali Bitches Brew [disco revolucionário que Miles lançou em 1970]”, recorda Paulinho. “Se você ouve aquilo, os músicos vão fazendo variações, intervenções… Pode ser que tenha me influenciado também em Roendo as unhas”.
Quando Paulinho chegou ao estúdio com Roendo as unhas, houve um misto de estranheza e curiosidade por parte dos músicos. O baterista Juquinha chegou a ter uma discussão amistosa com Paulinho tentando entender onde ele deveria entrar na música. Juquinha insistia que não daria certo tocar um ritmo de samba ali, menos ainda no ponto em que o compositor dizia que ele deveria começar. Paulinho rebatia: “Pode fazer que é isso mesmo, vai dar certo.” Deu.
Cada músico encontrou seu caminho. Na gravação, percebe-se que inicialmente eles partem do moto-contínuo das quatro notas do baixo que se repetiam indefinidamente. Aos poucos, seguindo o clima angustiado do dedilhado de Paulinho, eles vão se soltando livremente do núcleo. A flauta de Copinha improvisa frases como se tentasse voar para fora daquele ambiente de clausura. O trombone do maestro Nelsinho — que visitou o estúdio como diretor musical, mas ficou intrigado com aquela música e pediu pra tocar também — faz notas dissonantes quando o personagem da canção fala “se pego na viola e ela desafina”. Cristóvão Bastos traça caminhos cada vez mais inesperados e nervosos conforme a gravação avança. “O piano vai ficando neurótico também”, comenta ele ao lembrar da gravação. “Não teve nada ali que eu pensei em casa, foi tudo improviso.”
As gravações do disco foram realizadas no período da noite, muitas vezes madrugada adentro — como a caminhada do personagem que vai “roendo as unhas pela madrugada”.
Roendo as unhas se manteve por anos como uma pérola escondida do repertório de Paulinho, sendo regravada apenas por ele por quase duas décadas. Nesse período, atraiu a atenção de artistas experimentais. Sua primeira gravação sem ser do próprio compositor veio em 2001, pelas mãos da banda underground mineira O Último Número.
Em 1989, uma nota no Jornal do Brasil anunciava que o “paulista futurista” Arrigo Barnabé, representante da Vanguarda Paulistana, lançaria um álbum chamado Roendo as unhas, que teria a música no repertório. O disco nunca saiu, mas sua admiração pela canção segue inalterada. “Roendo as unhas é excepcional”, classifica Arrigo. “Estabelece uma fusão da cultura urbana pop com a tradição do samba com um êxito inigualável. Muito importante na minha formação estética, desde os arranjos até a aproximação com o ‘piegas’, o lado ‘sentimental demais’, fator quase atávico da nossa interioridade, tudo com um pensamento estético claro, límpido, apontando como um espinho para uma possível nova direção na nossa cultura.”
Jards Macalé retomou Roendo as unhas e a regravou em 2003. Em 2013, talvez não por acaso o ano em que o país começou a revelar tensões que se desdobraram no impeachment de Dilma Rousseff e na eleição de Jair Bolsonaro em 2018 (e no consequente estremecimento das bases da democracia), Roendo as unhas teve duas regravações, por Iara Rennó e Ney Matogrosso. Agora, em outro ciclo de dez anos, a canção retorna para lembrar que — nesta vida, neste solo — o gerúndio do título não se esgota nos cinco minutos de beleza e agonia do samba.
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