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O silêncio e a música

Orfeu, quando criança, não suportava o barulho do mundo. Pelos arredores do Monte Parnaso saiu em busca de um lugar verdadeiramente silencioso.

| 27 nov 2015_16h16
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Texto escrito por Alexandre Siqueira de Freitas a convite de Paulo da Costa e Silva

Orfeu, quando criança, não suportava o barulho do mundo. Pelos arredores do Monte Parnaso saiu em busca de um lugar verdadeiramente silencioso. Cansado e irritado por não encontrar tal lugar, foi ao templo de Delfos consultar mulheres com poderes proféticos, Pítia e as sibilas. Interrogou-as, por meio de gestos, e confirmou o que intuía: o silêncio pleno não existe. Em vez de esquivar-se do caos sonoros em que estava imerso, precisava Orfeu atentar-se a todo ruído do planeta. Primeiro, tinha que escutar os sons do próprio corpo, pulsação, respiração, soluços do desejo. Depois, o som de todos os outros seres vivos e, finalmente, o som das sociedades, o barulho das cidades, das guerras, dos discursos (esses últimos costumam silenciar os outros). Somente depois de abraçar o alvoroço sonoro do mundo que Orfeu pôde soltar a voz em sonoridades intensas, propagar a emoção pelas canções ou pela linguagem.

No aprendizado de Orfeu do relato de Michel Serres (Musique, Le Pommier, 2011), o jovem herói teve que escutar o mundo, antes de falar ou cantar. A escuta do mundo, no entanto, era de tal amplitude que devia ir além dos ouvidos. Toda sua pele precisava vibrar como um grande tímpano. “Nada mais profundo que a pele”, disse um dia Paul Valéry. Uma vez aberto às experiências primordiais, ressonâncias percorrem seu corpo, a sensação torna-se comunhão, Orfeu atinge a ordem sutil por detrás de tamanha confusão.

O périplo do artista continua e surge uma nova inquietação: “como passar do ruído à música?”. Apenas uma pessoa tem a resposta: a titânide Mnemósine, feiticeira que detém todas as lembranças do mundo. “São minhas nove filhas que compõem, juntas, todas as músicas”. A titânide apresenta suas filhas, as nove musas, que Michel Serres divide em dois grupos, cinco musas-música e quatro musas-línguas. As primeiras cuidam prioritariamente do ritmo, dos gestos, das melodias e da harmonia. As últimas, dos sentidos e das paixões.

A música, na compreensão do filósofo francês, precede todas as línguas. É a primeira manifestação humana de ordem expressiva e sonora. Acolhe os ruídos do mundo e transforma-os em fórmulas universais que precedem os discursos. Mesmo a linguagem das matemáticas é antecedida pela música, que conta por meio de números sem nome. Antes de serem palavras, os sons eram tons, “variações das sensações de dor e prazer, surpresas… ais e uis melodicamente articulados… poemas arcaicos da invenção do ser. Dias melodias da história humana”, disse José Carlos Capinan, poeta, letrista, parceiro de inúmeros compositores da música brasileira (Vinte canções de amor e um poema quase desesperado, Caramurê, 2015). Na interseção entre música e língua está a canção, como “reconstituição dos signos primais da expressão”, quando “as palavras eram apenas sons ou quando deles não se haviam separado”, diz ainda Capinan.

O aprendizado de Orfeu foi uma descida ao inferno do caos aleatório dos ruídos para, em seguida, com ajuda das musas, emergir como músico, expert em cantos e palavras. A grande aventura de Orfeu pode se abrir a inúmeras reflexões sobre consciência, percepção, experiência estética. Nos faz lembrar de pensadores com os quais podemos tecer analogias com o feito do artista grego. John Dewey, por exemplo, em Arte como experiência (Martins Fontes, 2010), fala de um estado de “captação total”, de um “contexto indefinido” necessário para a inscrição de toda experiência. Maurice Merleau-Ponty, por sua vez, menciona frequentemente uma “unidade primordial do sentir”. Para o fenomenólogo, toda percepção se dá em uma atmosfera de generalidade e comporta um germe de sonho ou despersonalização. O corpo faz e refaz, continuamente, uma síntese entre as especificidades e as totalidades das sensações. A música dialoga, o tempo todo, com o som do mundo e do corpo. Tanto o “contexto indefinido” de Dewey, quanto a “unidade primordial” de Merlau-Ponty podem facilmente ser associados ao ruído de fundo do mundo percebido por Orfeu. Difícil, também, não pensar em John Cage, que foi, como Orfeu, em busca do silêncio impossível e nos convidou a viver essa impossibilidade em sua peça 4’33’’.Vídeo com 4’33’’ de John Cage:[piaui_video nome=”Vídeo com 4’33’’ de John Cage”]https://www.youtube.com/watch?v=JTEFKFiXSx4 John Cage e o silêncio:[piaui_video nome=”John Cage e o silêncio”]https://www.youtube.com/watch?v=klpCX9xoHY4

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