Prédio do STF, em Brasília, cercado por nuvens Foto: Gabriela Biló/Folhapress
O Supremo prende a respiração
Derrota de candidatura bolsonarista no Senado pode ser mais um passo para isolar o extremismo, mas não garantirá paz ao tribunal
A disputa pela presidência do Senado se tornou uma extensão das eleições de 2022. As figuras mais destacadas do bolsonarismo arregaçaram as mangas para conseguir votos para Rogério Marinho (PL-RN), candidato do campo da extrema direita, que disputa a vaga nesta quarta-feira (1º) contra o atual presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A começar pelo próprio Jair Bolsonaro, que participou, por vídeo, do jantar de apoio a Marinho oferecido por Valdemar Costa Neto (PL-SP); passando por Michelle Bolsonaro, que esteve no banquete, em inequívoco sinal da importância que o clã atribui à disputa; e chegando tanto aos bolsonaristas mais estridentes, dentro do Congresso, como o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), e fora dele, como Silas Malafaia, quanto aos mais envernizados, como Sergio Moro (União-PR) e o que restou do PSDB.
Como toda eleição para a presidência de uma das casas do Legislativo, a disputa tem um componente paroquial e imediatista, que é a distribuição de cargos importantes na mesa diretora e nas comissões. No Senado, onde um punhado de votos faz toda a diferença para definir o vencedor, é vantajoso para os senadores esconder seu apoio o máximo que puderem, pois isso os permite cavar acordos melhores para si e seus partidos na reta final das negociações. Esses fatores dão um grau de imprevisibilidade à eleição. Em fevereiro de 2019, Davi Alcolumbre – na época, do DEM, hoje no União Brasil – surpreendeu ao derrotar Renan Calheiros (MDB-AL) com apoio de Bolsonaro. Pelo precedente, Rogério Marinho, embora não seja favorito, ao menos assusta Pacheco e, por extensão, o governo Lula.
Mas além da disputa miúda por votos e cargos, há um elemento mais importante e programático, que torna a disputa pelo Senado uma espécie de epílogo da disputa entre o bolsonarismo e seus adversários: o referendo, ou a crítica, à atuação do Supremo Tribunal Federal, personificada no ministro Alexandre de Moraes, contra o golpismo bolsonarista. Tudo isso ainda sob o clima da invasão bolsonarista que, há menos de um mês, depredou o prédio do STF e dos outros Poderes.
A eleição para a presidência da Câmara, embora possa ser mais importante em muitos aspectos para a política dos próximos dois anos, não carrega esse peso. As competências das duas Casas não são inteiramente simétricas: há diversos papéis de uma das Casas que não correspondem a uma função da outra. E a Constituição guarda para o Senado, exclusivamente, competências fundamentais relativas ao STF, hoje o principal foco do extremismo que ainda se mobiliza no entorno de Bolsonaro.
A primeira e mais óbvia dessas competências é a atribuição para processar e julgar os processos de impeachment contra ministros do Supremo. Ao contrário do rito do impeachment presidencial, que cabe à Câmara autorizar ou não, o processo contra ministros do STF (e um punhado de outras autoridades) começa e termina no Senado. Foi ao Senado que Bolsonaro ofereceu, em agosto de 2021, uma denúncia por crime de responsabilidade contra Alexandre de Moraes, prontamente arquivada por Rodrigo Pacheco. Uma série de ações similares foram engavetadas.
A disputa entre Pacheco, de um lado, e um emissário de Bolsonaro, de outro, pode enterrar de vez, ou ressuscitar, a possibilidade de um processo contra Moraes e outros ministros. É o próprio Bolsonaro quem define a disputa nesses termos: em sua fala de apoio à candidatura de Rogério Marinho, no jantar do PL, o ex-presidente disse que a eleição de seu correligionário seria uma chance de “reequilibrar os Poderes”, eufemismo bolsonarista para o desejo de enquadrar o tribunal. Seu apoiador Silas Malafaia foi mais explícito: retratou a disputa entre Pacheco e Marinho como uma contenda entre a ditadura da toga e “o povo”, na mais populista formulação possível.
Uma segunda competência importante do Senado é a atribuição de sabatinar e aprovar ou não os indicados pela Presidência da República ao STF. O crescente protagonismo do Supremo na arena política faz com que esse processo hoje seja mais delicado do que nunca. Ao menos desde a indicação da ministra Rosa Weber, em 2011, as sabatinas, que antes transcorriam sem maiores emoções, tornaram-se sessões longas e desgastantes. A título de comparação: a sabatina de Edson Fachin, em 2015, já no pós-Mensalão e no auge da Lava Jato, durou mais de doze horas, enquanto, em 2003, Cezar Peluso e Ayres Britto foram sabatinados em uma mesma sessão, para a qual estava prevista ainda a arguição de um terceiro indicado, Joaquim Barbosa (que ficou para a semana seguinte). O mais recente indicado, André Mendonça, amargou meses na geladeira até que o então presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Davi Alcolumbre, topasse pautar sua sabatina.
Os olhos da política para o Supremo, e consequentemente para as indicações ao tribunal, hoje são outros. Isso passa tanto pela disputa pela presidência da casa quanto pelos acordos que determinam quem comandará a CCJ – e, portanto, o destino dos futuros indicados pelo presidente Lula. A eleição de agora terá influência, em um futuro próximo, na escolha de candidatos politicamente palatáveis para superarem a barreira do Senado e ocuparem uma vaga no Supremo.
Por tudo isso, a eleição à presidência do Senado dirá muito sobre a temperatura, no Congresso, da batalha entre o Supremo e o bolsonarismo. Não se trata apenas de uma disputa entre um candidato da situação (Pacheco) e um candidato da oposição (Marinho). O principal mote da campanha bolsonarista, até aqui, é a oposição não a projetos do governo, que Marinho promete não obstruir, mas à atuação do Supremo na sua contenção ao golpismo. Não é comum que a eleição de uma casa legislativa tenha como bifurcação ideológica não o apoio ou oposição a um governo e seus projetos, mas sim às rusgas entre um ex-presidente e um outro Poder. Menos comum ainda, e politicamente perigoso, é o relato de envolvimento dos próprios ministros do STF na campanha por um dos candidatos, papel que definitivamente não lhes cabe, e que dá munição justamente a quem, como Marinho, faz campanha contra a politização de ministros do Supremo. É o que temos para esses tempos de extremismo renitente, mas definitivamente não é normal.
Uma vitória de Marinho será um sinal de alerta para o STF não apenas pelos poderes que o bolsonarismo ganhará em uma Casa com tantas competências relevantes em face do tribunal, mas por sinalizar a disposição da maioria dos senadores em dar centralidade à pauta de contenção de Alexandre de Moraes. A vitória de Pacheco, ao contrário, sinalizará que o Senado compreende e ainda aceita, ao menos por ora, a atuação combativa do ministro contra o golpismo. E claro, também sepultará, ao menos pelos próximos dois anos, a chance de que aliados do extremismo comandem instituições relevantes da política nacional.
Para quem observa com preocupação os poderes emergenciais reclamados pelo STF e exercidos através da caneta de Moraes, só a derrota da candidatura bolsonarista poderá trazer algum alento. Quanto mais o extremismo golpista perder lugar nas instâncias formais de poder, sendo jogado de volta às margens do sistema político, menos necessária e justificável se tornará a enérgica atuação do tribunal. Em algum momento, o Supremo terá de desligar o pisca-alerta da defesa da democracia. A vitória de Marinho, caso ocorra, deixará esse dia mais distante.
Já a vitória de Pacheco permitirá ao Supremo respirar mais aliviado, não apenas pelos sinais dados pelo senador em seu primeiro mandato à frente da Casa, mas pela própria semelhança de seus hábitos e costumes com os dos ministros do tribunal. Se Marinho representa a agenda outsider, Pacheco, cujo nome vez ou outra surge entre os cotados para uma indicação ao STF, é sem dúvida um insider. Nunca sinalizou interesse em atiçar o conflito entre Legislativo e Judiciário – ao contrário.
O Senado, que se renova em parte nesta quarta-feira (1º), será, ao menos no papel, uma casa mais bolsonarista do que antes. E, como demonstraram os acontecimentos de 8 de janeiro, a hostilidade ao STF ainda é o principal sentimento que mobiliza a extrema direita brasileira. A vitória de Pacheco, embora possa ser um alívio imediato, não garante paz aos ministros do Supremo no médio prazo.
É possível, contudo, que a agenda de ataques ao STF perca força com vista às eleições municipais do ano que vem. Essa é a próxima arena que o bolsonarismo terá de disputar para se manter relevante em nível nacional. Nos municípios, não parece fazer sentido apostar numa briga com o Supremo como pauta para conquistar eleitores. Talvez, portanto, num futuro próximo, ouçamos falar menos em “ditadura da toga” e mais em “kit gay”, “doutrinação” e “escola sem partido”.
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