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    Intervenção de Paula Cardoso sobre foto de Bruno Stuckert/Folhapress

questões jurídicas

O Supremo se encurralou

Quando ampliam poderes individuais, ministros esvaziam dimensão coletiva e portanto institucional do STF 

Rubens Glezer e Luiza Pavan Ferraro | 14 out 2020_18h43
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Os ministros do Supremo Tribunal Federal não estão dispostos a salvar o tribunal da crise em que ele se encontra. Não faltam boa intenção, propostas e até mesmo “coragem” para agir como cada um acredita ser correto. Contudo, o que o “caso André do Rap” (a polêmica mais recente) revela é que há pouca disposição dos ministros para agirem como partes iguais – como pequenas engrenagens – que permitem o funcionamento de algo maior: a instituição responsável pela proteção do regime constitucional.

O ministro Marco Aurélio tem sido objeto de severas críticas pela imprensa e nas mídias sociais por ter concedido liberdade para André Oliveira Macedo (André do Rap), acusado de tráfico de drogas e de ser um dos líderes do PCC. O habeas corpus foi concedido porque as condições da prisão eram ilegais: o Ministério Público não pediu ao juiz da causa para mantê-lo preso e o juiz tampouco se manifestou espontaneamente a respeito. A lei determina que a prisão preventiva (realizada enquanto o processo ainda não terminou) precisa ser revista a cada noventa dias, ou se torna ilegal. Essa condição para a legalidade da prisão preventiva foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Bolsonaro em 2019. 

As naturezas das críticas são das mais variadas. Focando no aspecto técnico, a Ajufe (Associação dos Juízes Federais) defendeu que o ministro poderia ter agido como outros colegas do STF em caso semelhante e, mitigando a literalidade da lei, pedido que o juiz do caso se manifestasse se a prisão deveria ser mantida ou não. O que se pedia, na verdade, é que o ministro abdicasse da sua forma de interpretar e aplicar o artigo, favorecendo o modo como isso é feito pela maioria de seus pares (a jurisprudência do STF). Esse é um pedido sensato, para que o ministro favoreça a institucionalidade ao invés de suas convicções íntimas. 

Seria possível acabar a análise por aqui, condenando o  ministro Marco Aurélio como vilão, por ter se deixado guiar por uma espécie de individualismo radical, pelo qual impõe a sua vontade aos demais ministros e ao país como um todo. O problema com essa análise seria uma mistura de ingenuidade e hipocrisia. Esse tipo de individualismo radical é abundante na prática dos ministros do STF.

Dentre as vozes que se levantaram para criticar o ministro Marco Aurélio, há poucas manifestações críticas ao modo pelo qual o ministro Luiz Fux suspendeu a decisão do ministro Marco Aurélio; uma suspensão de legalidade profundamente duvidosa. Nesse caso, pouco se falou sobre a deturpação envolvida no fato de o presidente do STF na prática cassar a decisão de outro ministro, indo contra a jurisprudência do Tribunal e contra a literalidade da legislação. Em nome de uma boa causa, a preocupação com a institucionalidade desapareceu.

Ao suspender a liminar do ministro Marco Aurélio, o ministro presidente Luiz Fux descarrega a munição de uma arma poderosa que sequer existia até pouco tempo atrás. Pela lei e pela jurisprudência, o presidente de um Tribunal pode suspender a liminar de magistrados de instâncias inferiores à sua, respeitadas algumas condições sobre o que trata o processo, quem pede a suspensão e os riscos envolvidos na decisão. Em geral, é um mecanismo utilizado pelo Poder Executivo para evitar alguma liminar muito severa contra o Poder Público. 

Foi durante a presidência do ministro Dias Toffoli, com o auxílio do então-vice-presidente Luiz Fux, que a Presidência do STF se concedeu o poder de derrubar decisões de outros ministros da Casa. Na gestão de Toffoli, isso ocorreu em quatro casos. 

O primeiro caso foi o mais polêmico. Em 28 de setembro de 2018, o ministro Luiz Fux suspendeu decisão proferida no mesmo dia pelo ministro Ricardo Lewandowski, que permitia que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse entrevistado dias antes da eleição. Diversas exigências legais para a suspensão de liminar em situações ordinárias foram violadas. Embora o vice-presidente tenha indicado que a decisão deveria ser submetida à chancela do colegiado, isso nunca ocorreu. A entrevista foi permitida meses depois pelo presidente Dias Toffoli, enquanto ele sofria diversas críticas por realizar a prática de censura. 

As demais suspensões de liminar recaíram todas justamente sobre o ministro Marco Aurélio. Às vésperas do recesso do Poder Judiciário em 2018, o ministro concedeu três liminares, que só poderiam ser revistas pelos demais colegas em fevereiro do ano seguinte. A primeira delas, que tratava de prisão após condenação em segunda instância, determinou que ninguém poderia ser preso antes do trânsito em julgado da ação e, consequentemente, considerava que aqueles que estavam presos apenas por este argumento deveriam ser soltos – estando neste grupo, também, o ex-presidente Lula. O ministro Dias Toffoli suspendeu a decisão horas depois, mantendo-a, assim, até que o colegiado deliberasse sobre a causa. 

A segunda decisão do ministro Marco Aurélio dizia respeito à forma de votação para eleição dos cargos da Mesa Diretora do Senado Federal. O ministro determinou que a votação deveria ser aberta. Em janeiro, poucos dias antes da eleição da Mesa do Senado, o presidente Dias Toffoli afastou tal decisão, determinando que a votação no Senado ocorresse secretamente e que a suspensão da liminar fosse submetida à apreciação dos pares. A questão nunca foi submetida ao plenário. 

A terceira decisão foi suspensa também em janeiro. Marco Aurélio havia suspendido o Decreto nº 9.355/2018, responsável por estabelecer “regras de governança, transparência e boas práticas de mercado para a cessão de direitos de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos pela Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobras”. Na ocasião, a suspensão foi condicionada à apreciação da questão pelo plenário. 

O instrumento se tornou uma arma à disposição da Presidência do STF para lidar com eventuais decisões individuais de ministros que podem causar desconforto ou desagrado, seja da opinião pública, seja do próprio presidente. Essa arma repousa hoje nas mãos do ministro presidente Fux, que nunca teve constrangimento em exercer seu próprio individualismo radical. Foi o ministro que manteve o pagamento de auxílio-moradia a juízes e promotores por anos, sem jamais permitir a discussão do caso pelo plenário do STF. 

E aí está o principal problema. Se por um lado pode e deve haver algum tipo de controle em relação às decisões monocráticas dos ministros, por outro isso não deveria ser feito com a ampliação de um poder igualmente individual. Caso contrário, o voluntarismo é apenas deslocado, ao invés de combatido. Sendo assim, o que veremos pela frente é uma escalada do conflito entre ministros, cada vez mais dispostos a usar seu poder individual para impor sua vontade sobre os demais. 

Até hoje não houve nenhum esforço de fortalecer a dimensão coletiva para o controle desse individualismo. O esvaziamento da dimensão coletiva é, assim, o esvaziamento da dimensão institucional do STF. Sem essa dimensão, a politização em tudo que envolve o STF só tende a crescer, especialmente as críticas e retaliações ao Tribunal. 

Os ministros não conseguem lidar com uma lição básica da política. É necessário limitar o seu próprio poder antes de incitar a disposição em outros atores para limitá-lo. O ministro Dias Toffoli transformou a Presidência do STF em uma arma, por meio de diversos mecanismos. O ministro Luiz Fux demonstrou disposição e interesse em usá-la. O tiro sairá pela culatra.

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