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    Daniel em Anatomia de uma Queda - Foto: Reprodução

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O tempo é a questão

Anatomia de uma queda – um filme feminista

Eduardo Escorel | 31 jan 2024_09h15
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Premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2023, e desde então louvado, de modo geral, pela imprensa, Anatomia de uma queda, produção francesa falada em francês, inglês e alemão, dirigida por Justine Triet, estreou há uma semana (25/1) no Brasil, em 150 salas de 47 cidades. Dois dias antes desse lançamento, o filme foi indicado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, sediada em Beverly Hills, na California, para concorrer ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Original e Melhor Montagem.

A revista Variety prevê que na grande festa da indústria americana, em 10 de março, Anatomia de uma queda poderá ganhar o prêmio de Melhor Roteiro Original, escrito por Triet e Arthur Harari, ambos franceses, o que seria por si só um feito. Nas demais categorias às quais concorre, os franco favoritos são Oppenheimer, Christopher Nolan, Lily Gladstone e Jennifer Lame, editora do filme de Nolan – um britânico e duas americanas, indicados por suas contribuições a dois filmes, Oppenheimer, da Universal Pictures, e Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese, produzido pela Apple Original Films em colaboração com a Paramount Pictures.

Além dos prêmios e da acolhida favorável que tem recebido, os méritos de Anatomia de uma queda incluem o sucesso comercial que vem obtendo. Produzido com orçamento estimado ao equivalente a 6,8 milhões de dólares, rendeu até o momento cerca de 23,8 milhões de dólares no mercado mundial, cerca de 3,5 vezes mais que seu custo de produção.

Entre várias contribuições decisivas, a qualidade de Anatomia de uma queda reside, em grande parte, na excelência de seu roteiro e do elenco, no qual, além de Sandra Hüller no papel da protagonista – a escritora alemã de sucesso Sandra Voyter –, destacam-se Milo Machado-Graner, fazendo seu filho Daniel – um pré-adolescente com deficiência visual –; Antoine Reinartz, o procurador no julgamento de Voyter pelo assassinato de seu marido Samuel Maleski (Samuel Theis); e o border collie Messi, batizado de Snoop no filme, que no Festival de Cannes ganhou a Palm Dog, prêmio não oficial que celebra atuações caninas.

O roteiro de Anatomia de uma queda é um modelo de boa carpintaria narrativa, subdividido em duas partes principais, a primeira precedida de um prólogo e a segunda seguida do epílogo.

No prólogo, com duração de 10 minutos, temas cruciais do filme, desenvolvidos adiante, são levantados de passagem, sem ênfase. Logo no início da abertura, ao entrevistar Voyter na casa onde ela mora nos Alpes com o marido e o filho, a estudante de pós-graduação Zoé Solidor (Camille Rutherford) pergunta: “Você acha que só pode escrever com base na experiência?” A resposta só vem, de forma indireta, duas horas depois, no final da segunda parte, quando a comentarista de um programa de televisão cita o que a escritora teria dito: “Meu trabalho é queimar os rastros para que a ficção destrua a realidade.”

Ainda na abertura do prólogo, pouco depois de a conversa com Zoé ter começado, o volume agressivo do cover instrumental da canção P.I.M.P., clássico do rapper norte-americano 50 Cent feito pelo grupo alemão Bacao Rhythm & Steel Band, vindo do andar de cima, onde o marido de Voyter está trabalhando, impede que a entrevista prossiga. Zoé interrompe a gravação que está fazendo e avisa: “Vou anotar suas respostas. Mas, eu tenho muitas perguntas. Talvez você não tenha tempo.” Ao que Voyter retruca: “Não se preocupe com o tempo. Tempo não é um problema aqui.”

Mas, pelo contrário, o tempo ali é decisivo. A partir da discussão sobre a disponibilidade de tempo de Maleski e Voyter, os cerca de 9 minutos da gravação de áudio reproduzida durante o julgamento, na segunda parte do filme, revelam o paroxismo de violência que a relação do casal atingiu, com agressões físicas e quebra-quebra.

Maleski começa a cena dizendo: “[…] Eu preciso de tempo. Não só algumas horas. Estou falando em reservar tempo para mim o ano todo. Isto não está funcionando mais para mim.”

Voyter: “Bem, organize seu tempo de outro modo, se quiser. Depende de você.”

Maleski: “Qual foi a última vez que você teve tempo para ajudar ele [Daniel] a fazer o dever de casa?… Há um monte de coisas sobre as quais você não dá a mínima, mas é desse tempo que estou falando.”

Voyter: “Querido, o [meu] livro acaba de ser lançado. Você sabe muito bem que é só desta vez…”

Maleski: “É sempre ‘só desta vez’. […] Eu tenho seguido você por anos. Eu não posso fazer nada com o meu tempo, entende? O tempo não é meu, é seu.”

Voyter: “[…] Ninguém está lhe forçando. Se quer ter mais tempo para si mesmo…”

Maleski, interrompendo: “Eu reduzi minha carga horária este ano pela metade para ter mais tempo e ainda não é suficiente… Por que você se recusa a falar disso? Por que você não pode só admitir que isso tem a ver com a maneira que as coisas estão divididas entre nós?”

Voyter: “Porque você está errado. Eu não lhe devo nenhum tempo. Eu faço a minha parte. […]”

A continuação do diálogo oscila entre momentos serenos e exaltados.

Voyter: “Eu acho, de verdade, que discutir reciprocidade na relação de um casal é perda de tempo, levando em conta o seu estado. Todo esse blá-blá-blá aqui é mais tempo perdido.”

Maleski: “Quero tempo para começar a escrever, como você.”

Voyter: “Escreva. Ninguém deixa de escrever porque tem um filho para cuidar e compras para fazer. […]”

Maleski: “Eu lhe dei tempo demais, concessões demais. Eu quero esse tempo de volta. Você me deve isso. Seja justa.”

A discussão sobe de tom e desanda. No final, ambos estão transtornados. Em seguida, ouvem-se ruídos de vidro quebrado, tapas e agressões.

Além de esse diálogo ter, naturalmente, o poder de influenciar quem ouviu a gravação durante o julgamento, qual seria a justificativa para Triet oferecer aos espectadores do filme o privilégio exclusivo de assistir à encenação imaginária do embate do casal enquanto os personagens da trama ficcional têm acesso apenas ao áudio?

Ao contrário de momentos em que lembranças de Daniel, em especial, são encenadas sem prejudicar a verossimilhança do enredo, as imagens da conversa/bate-boca/briga de Voyter e Maleski resultam questionáveis por parecerem não mais do que uma concessão perturbadora, feita possivelmente para atender suposta expectativa do público de cinema, para o qual os cerca de 9’ de áudio em off da gravação, quiçá acompanhados de cenas dos ouvintes no tribunal, seriam insuportáveis – opção facilitadora de Triet que desmerece as inegáveis virtudes de Anatomia de uma queda.

Em entrevista a Alexandra Schwartz, na revista The New Yorker de 15 de outubro de 2023, Triet afirmou: “Acho que a questão fundamental do filme é a questão da reciprocidade no casal. Penso que também, culturalmente, as mulheres sempre estiveram em casa e os homens saíram para o mundo e tiveram tempo para pensar, para refletir, para ter ideias. As mulheres não tinham esse tempo, pois tinham de cuidar das tarefas domésticas. E então o fato de ter uma personagem feminina que é criadora, que escreve livros, que está na posição, finalmente, em que pode reservar tempo para escrever, significa que é o homem quem sofre. É por isso que a discussão começa com a questão do tempo. Acho que é algo universal e fundamental que diz respeito ao lugar do homem e da mulher na família.”

Na mesma entrevista, Triet disse estar de acordo com quem considera Anatomia de uma queda “um filme feminista”. E completou: “Eu não poderia estar nesta profissão, e ser como sou, sem ser feminista. Mas, só para deixar claro, odeio a ideia de escrever um filme, dizendo para mim mesma: vou fazer um filme com uma tese, ou um filme edificante, ou um filme só para provar alguma coisa. Alguém numa sessão me disse: ‘Por que você fez um filme sobre uma mulher que é potencialmente uma agressora, enquanto mulheres são torturadas em todo o mundo e são vítimas com mais frequência?’ E eu me perguntei isso. Já vi tantos filmes sobre estupro, sobre assassinato e desmembramento de mulheres. As pessoas assistem todas essas coisas sobre assassinos em série, que em sua maioria são homens que matam mulheres. Como mulher feminista, não quero acrescentar nada a essa narrativa. Interessa-me muito mais mostrar as mulheres numa situação complexa do que como vítimas.”

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