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    Uma das quatro máscaras Cara-Grande que estavam retidas na França. O objeto é adornado com penas de arara e usado em um ritual do povo Tapirapé, que habita o Mato Grosso Foto: Divulgação

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Objetos indígenas são devolvidos ao Brasil depois de vinte anos na França

Coleção com mais de seiscentas peças estava retida ilegalmente no Museu de Lille

Tatiane de Assis, de São Paulo | 11 jul 2024_18h38
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Os 607 objetos indígenas brasileiros que estavam sob posse ilegal do Museu de Lille, na França, finalmente foram devolvidos ao Brasil. Encerrou-se, com isso, uma disputa que vinha se arrastando há quinze anos e que envolveu longas negociações entre representantes dos dois países. O anúncio foi feito em uma live nesta quinta-feira (11) pela presidente da Funai, Joênia Wapichana, e a diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas, Fernanda Kaingang.

O imbróglio teve início em 2004, quando a Funai emprestou os itens ao museu, ligado à Prefeitura de Lille, no Norte da França. São objetos como cocares, brincos, braçadeiras, chocalhos e máscaras produzidos no século XX por 39 povos originários do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Tocantins e Roraima. O prazo do empréstimo era de cinco anos, com possibilidade de renovação por mais cinco. Em 2010, o museu francês manifestou interesse em renová-lo, mas os trâmites nunca foram concluídos. Os objetos, portanto, deveriam ser devolvidos ao Brasil – só que isso nunca aconteceu.

Por quinze anos, a coleção permaneceu em posse ilegal do Museu de Lille. O governo brasileiro, depois de abordagens tímidas, engrossou as reclamações em 2015. Naquele ano, iniciou um processo formal para pleitear a devolução dos objetos. A iniciativa foi liderada pelo Ministério Público Federal (MPF), com apoio do Itamaraty, do Museu Nacional dos Povos Indígenas e da Funai. Em 2018, os franceses concordaram em devolver o acervo, mas se recusaram a pagar o transporte dele até o Brasil. A Funai, para dar um fim à negociação, aceitou arcar com esse gasto, de pouco mais de 1 milhão de reais. A viagem, no entanto, demorou a sair do papel. Primeiro, por falta de orçamento. Depois, por causa da pandemia.

Em dezembro de 2023, servidores do Museu Nacional dos Povos Indígenas – entre eles Munique Cardoso Cavalcante, chefe do Serviço do Patrimônio Cultural e Arquitetônico, e Bruno Oliveira Aroni, então coordenador de Patrimônio Cultural – viajaram à França para fazer uma vistoria e produzir laudos técnicos sobre os objetos. Depois da análise, a maior parte do acervo foi embalada e transportada em duas remessas por caminhão até Paris, onde foi submetida a um tratamento de restauro chamado anóxia. Só agora foi trazida para o Brasil.

 

Um dos destaques do acervo são quatro exemplares de máscaras Cara-Grande, usadas em um ritual homônimo do povo Tapirapé, que habita a Terra Indígena Urubu Branco, em Mato Grosso. Na cerimônia, também chamada de Tawã, os itens personificam espíritos guerreiros que revivem conflitos do passado. “A máscara é feita de acordo com o tipo de espírito que vai representar”, explica Nivaldo Korira’i Tapirapé, pesquisador que se especializou em Ensino e Contexto Indígena Intercultural pela Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat). “O grupo pega no mato a madeira chamada Tauã. Depois, coloca penas de arara como enfeites. As azuis e amarelas são do tipo canindé. As vermelhas são da arara vermelha.”

Os Tapirapé revivem, no ritual, conflitos com indígenas Kayapó, Karajá e Kopi. A máscara que representa os Kayapós – “que a gente diz Karaxao”, explica Nivaldo – é adornada com as cores vermelha e azul. A dos Karajás – “que a gente chama de Karaxã” – tem traços amarelos e, no meio, uma linha vermelha. A dos Kopi é listrada: “Pode ser feita ou com amarelo e azul, ou com amarelo e vermelho”, diz Nivaldo, que, aos 49 anos, pede para ser chamado de Paroo’i. Tradicionalmente, os Tapirapé ganham um novo nome em cada fase da vida.

A máscara Cara-Grande pode ter até 1,6 metros de largura e 1,3 de comprimento. Depois do ritual, costuma ser destruída. “O espírito do Tawã [que significa guerreiro] tem que voltar para o lago. Nesse momento, tira todas as penas das máscaras, prevendo que pode ser usado novamente, e guarda elas na Takãra [maloca localizada na área central das aldeias dos tapirapés]”, diz Paroo’i. Geralmente, o ritual acontece entres os meses de junho e julho.

Paroo’i diz que, se as máscaras foram talhadas com o objetivo de serem comercializadas, “não é tão grave” que um museu as exiba. Mas se forem objetos ritualísticos, efetivamente usados em uma cerimônia dos Tapirapés, a situação é diferente: “Não é bom que fique no museu”, ele explica. “Geralmente não se mostra, porque é do espírito. Onde ela fica, o espírito também fica. E é um espírito em que a gente acredita muito. É o mais perigoso.”

 

A coleção, quando em posse do Museu de Lille, foi exibida em outros museus da França e também da Inglaterra. Contudo, desde o ano de 2018, não foi mais apresentada ao público, segundo Seiji Nomura, coordenador técnico-científico do Museu dos Povos Indígenas. Os objetos ficaram acondicionados em uma reserva técnica onde, segundo os servidores da Funai, não havia controle de umidade, tecnologia considerada imprescindível, hoje, para a preservação de acervos museológicos. “Surpreendentemente, mais de 90% dos objetos estão em bom estado. Um dos dois troncos usados na cerimônia do Kuarup, do povo Kamayurá, perdeu um pouco da coloração e das penas, mas não é algo grave”, afirma Nomura. Um diadema do povo Xikrin, no entanto, foi encontrado com sinais de contaminação por larvas.

A piauí questionou o Museu de Lille sobre a retenção ilegal dos objetos e a condição em que foram encontrados, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. A Funai e a Embaixada da França também foram procurados, mas não retornaram o contato. 

Agora, o Museu Nacional dos Povos Indígenas se prepara para receber o acervo que estava em posse dos franceses. Nos últimos anos, a instituição, que ocupa um edifício neoclássico no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, reformou suas reservas técnicas. Elas passaram a ter controle automatizado de temperatura e umidade. Segundo Nomura, o museu planeja fazer uma oficina de apresentação das peças: “Geralmente, a gente media o encontro entre os objetos que apresentam conhecimentos tradicionais e os povos indígenas que produziram esses itens. Muitas vezes, há o reconhecimento de técnicas, de autores e de materiais.”

Quando todas as etapas burocráticas forem vencidas, a coleção deve ganhar uma exposição própria, ainda sem data prevista. “É uma forma de dar um retorno para os povos indígenas”, argumenta Nomura. “Não dá para deixar essa coleção fechada, como ocorreu na França.”

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