Dulcivânia Freitas estuda à luz de luminária de emergência - Foto: Ricardo Costa/acervo pessoal Dulcivânia Freitas
Oito dias de calor e escuridão
“A panela de pressão explodiu”, conta jornalista sobre o apagão no Amapá e a desigualdade no acesso aos serviços
Numa Macapá ainda às escuras, a jornalista Dulcivânia Freitas relata o desespero dos primeiros dias sem energia nem água durante o apagão que afetou pelo menos 13 das 16 cidades do estado. Escrito a pedido da piauí, este diário revela a consciência da desigualdade social flagrante, pois a energia e água vão voltando, mas não para todos. Enquanto faz doações para ajudar quem ainda está sofrendo com a falta de serviços, Dulcivânia relata os dias de perplexidade com a demora para resolver o problema em meio ao calor amazônico, com temperatura que beirou os 30°C e umidade variando de 60% a 92% – o que causa “suplício, corpo e cabelo melecados, sensação de colapso mental em adultos, crianças gritando”. “A panela de pressão explodiu.” Nesta quarta, 11, laudo preliminar da Polícia Civil do Amapá afirmou que o problema na subestação de energia, diferentemente dos rumores iniciais, não fora provocado por um raio. O TSE decidiu adiar a eleição de domingo em Macapá.
Terça-feira, 3 de novembro
O amanhecer de céu nublado foi uma surpresa que havia dois meses não acontecia em Macapá. Depois de quase quinze anos vivendo na capital do estado do Amapá – extremo Norte do Brasil – entendi as nuvens como prenúncio da chegada das chuvas do inverno Amazônico, estação particular da região. Só que antecipado, porque é comum as fortes chuvas caírem na Amazônia a partir de dezembro. Na rotina de 30°C em média o ano inteiro – sensação de 40°C entre junho e agosto – e com 90% de umidade relativa do ar, um certo conforto térmico se instaurou. Mas, no fim da tarde, começou uma tempestade de raios, trovões e relâmpagos – cenário pronto para os amapaenses se prepararem para interrupção de energia e da conexão de internet, como é de praxe quando esses eventos acontecem. Por volta das 21 horas, a energia caiu. Nos grupos de WhatsApp se espalharam rumores de que a cidade inteira estava no breu, depois os municípios vizinhos.
Depois da meia-noite nos convencemos de que a agonia do calor duraria uma noite, não mais que uma noite. Meu filho, um pequeno tucuju de 9 anos de idade, dormiu tranquilo sob o calor equatorial. Tucuju, nome de uma nação indígena já dizimada, é um adjetivo para quem nasce por aqui, na margem esquerda do Rio Amazonas. Atravessamos a noite com “sono picotado”, besuntados de repelentes anticarapanãs e zanzando de um cômodo para o outro. Por volta das 2h30, banho para aplacar o suadouro e a pele molhada de suor melecada. Após o banho, cheguei à conclusão de que seria melhor não me secar. Na madrugada, novos estrondos e clarões, e imaginei as trombetas do apocalipse na sequência. Naqueles instantes também me pus a pensar nas aflições dos bebezinhos, obesos, idosos, doentes de catapora, e nos animais domésticos que tanto sofrem com esses episódios.
Quarta-feira, 4 de novembro
Veio a confirmação oficial: a interrupção de energia atingira 14 dos 16 municípios do estado. Depois esse dado foi ajustado, eram 13 municípios. Só Oiapoque, no extremo Norte, e Laranjal do Jari e Vitória do Jari, no extremo Sul (estes dois separados do território paraense pelo Rio Jari), por terem um sistema de geração independente, atendido por outra rede. Só consegui dormir por volta das 6 horas, com o dia claro. Dormi até às 9 horas. No meio da manhã, as operadoras de internet móvel conseguiram abrir sinal por uma hora, e conseguimos dar sinal de vida nos grupos de trabalho e de parentes, e também buscar pistas mais concretas e atualizadas sobre o ocorrido. Adiei diversas atividades programadas na agenda do teletrabalho – regime que estou cumprindo desde março e que deve ir até 15 de janeiro de 2021 por causa da pandemia da Covid-19. No Twitter, onde sigo as principais fontes de informação da cidade, comunicadores, técnicos de governos, artistas, gestores, professores, pesquisadores, entre tretas e debates, já estava visível que continuávamos vagando pela escuridão, inclusive da informação. Também fiz meu desabafo: falta de energia, calor infernal, sinfonia de mosquitos ao ouvido e sem energia a noite inteira. Não há previsão para normalizar totalmente a energia no estado. Vejo avisos soltos nas redes, do tipo “estamos sem o sistema interligado (Sistema Interligado Nacional – SIN) pois o transformador que explodiu ficava na subestação operada pela empresa privada que não tem outro pra repor no momento”. A Companhia de Eletricidade do Estado do Amapá (CEA), distribuidora de energia elétrica, anunciou que os hospitais teriam prioridade de normalização do abastecimento, e conforme a Eletronorte fosse aumentando a geração de energia na Hidrelétrica Ferreira Gomes (localizada no município homônimo a 138 km de Macapá), iria progressivamente normalizando a distribuição para as demais unidades consumidoras.
Quinta-feira, 5 de novembro
Com o foco na falta de energia, só aí me dei conta de que estamos em plena pandemia do novo coronavírus, com aumento exponencial de casos positivos em Macapá no último mês. Eu não cogitava buscar bicos de tomadas em shoppings para reabastecer os celulares. O fornecimento de água encanada ficou dramático até para quem dispõe de alternativa para obter água potável, pois o sistema da companhia estadual depende de energia elétrica para funcionar. “Não dá pra ligar a bomba porque não temos energia, estamos puxando água do poço no braço”, contou uma amiga.
Saímos e, pela janela do carro, o Centro da cidade parecia viver aquelas cenas de filme: filas imensas nos postos de combustíveis, pessoas comprando até dez garrafões de água de uma só vez, outras com malas e mochilas no píer de saída na frente da cidade com destino à cidade de Afuá (Pará). Por outro lado, amigos falavam da disponibilidade de energia via gerador para as áreas de condomínios, o que já nos dava sinais da desigualdade de condições para a população enfrentar o mesmo problema. Algumas pessoas tinham água armazenada em caixas d’água para suprir mais dois dias com parcimônia, como era nosso caso. A Prefeitura de Macapá decretou calamidade pública por trinta dias e começou a abastecer parte da população sem acesso a água potável por meio de carros-pipa.
Sexta-feira, 6 de novembro
Além do caos no fornecimento de energia, água, telefonia, combustíveis, gelo, remédios e alimentos, com unidades hospitalares em grave crise, o setor bancário começa a entrar em colapso. Várias agências estipularam filas exclusivas para saques. Alguns bancos tiveram que suspender o atendimento, mantendo somente os caixas eletrônicos 24 horas. Os supermercados começaram a restringir a venda de três garrafões de água por pessoa.
Nas redes surgiram as hashtags #SOSAmapa e #ApagãonoAmapá, com depoimentos de moradores e arrecadação de donativos. Vergonha e humilhação tornam-se expressões e sentimentos recorrentes da população amapaense. A Eletronorte publica nota informando que não é responsável pela subestação que pegou fogo. A empresa privada responsável no momento pela operação da Subestação Macapá é a Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), operada pela Geminy Energy.
Em nota lacônica, o Tribunal Regional Eleitoral do Amapá (TRE-AP) confirma as eleições para o próximo dia 15 de novembro, com garantia de baterias para as urnas eletrônicas. Sem nota de solidariedade.
Sábado, 7 de novembro
A companhia de energia prometeu uma tabela com o planejamento do rodízio de fornecimento de energia. Às 23 horas, não havia sido divulgado. A rede de solidariedade se intensificou, com doação de alimentos e água potável, e colaboro como posso. O Amapá se tornou estado com a Constituição de 1988, antes era Território Federal, e até 1943 fazia parte do Pará. Amapaenses e paraenses dividem raízes próximas e familiares. Neste primeiro dia de restabelecimento de pouco mais de 60% do fornecimento de energia, a população começa a se inteirar, via redes sociais, da dimensão da estrutura de geração de energia elétrica no Amapá, onde há quatro Usinas Hidrelétricas que, segundo relatórios recentes do ONS, continuam produzindo energia para o SIN: três delas no município de Ferreira Gomes, e uma em Laranjal do Jari. O estado possui apenas duas subestações, a de Macapá, que pegou fogo, e outra em Laranjal do Jari, município na divisa com o Pará.
Domingo, 8 de novembro
Mesmo com rodízio, temos algumas horas de energia. Ligamos ar condicionado e ventilador e já ouço relatos de boas horas de sono. Eletricidade e água vão voltando. Mas não para todos. O Amapá tem quase 70% da população concentrada nos municípios de Macapá, Santana e Mazagão (Região Metropolitana de Macapá). Os demais padecem com a dificuldade de comunicação. No início da tarde, a CEA divulgou a aguardada tabela de racionamento, mas logo percebeu-se que o cronograma não estava sendo seguido. Um grupo ficará sem energia justamente das 0 às 6 horas, ou seja, não poderia dormir por causa do calor. Há protestos nas redes e sugestões para reformular o cronograma do racionamento. A qualidade da energia distribuída no Amapá é rotineiramente instável mesmo nas maiores cidades, com perdas ou danificação constante de aparelhos eletrodomésticos e materiais eletroeletrônicos. Há regiões no interior atendidas somente durante quatro horas diárias de luz geradas a partir da queima de óleo diesel. Nas comunidades do arquipélago do Bailique (no município de Macapá, a 12 horas de barco da capital), onde moram cerca de mil famílias, a população padece até trinta dias sem energia elétrica. Na capital, moradores interditaram as ruas de bairros – alguns da área central da cidade – que continuavam sem abastecimento de energia e água, e também um trecho da orla banhada pelo Rio Amazonas.
Segunda-feira, 9 de novembro
Primeira noite de sono tranquilo, com o ar condicionado ligado. Em meio à crise energética sem precedentes, temos a sorte de contar com o retorno de energia e outros serviços. Optei por não ser indiferente. Participo da campanha de doações. Começo este diário. Descrever a experiência de viver o apagão do Amapá traz momentos difíceis, mas sei que há muitas pessoas em pior situação. Enquanto escrevo, a luz acaba e só volta à meia-noite. Só então consigo dormir.
Terça-feira, 10 de novembro
Oito dias depois do apagão, o fornecimento de energia não está normalizado, e, em muitas casas, o sofrimento continua. Num estado onde a temperatura média é de 27°C, chegando a 36°C nos meses mais quentes, e a umidade pode superar os 80%, a impossibilidade de ligar um ventilador que seja significa suplício, corpo e cabelo molhados, sensação de colapso mental em adultos, crianças gritando de calor. Desde domingo, moradores reagem com protestos e interdição de ruas. Comerciantes relatam furtos e perda de equipamentos. Já há mais de 70 protestos. A panela de pressão explodiu. Espero que o apagão, de algum modo, ajude a descortinar a escuridão e a exclusão em que vivem boa parte dos amapaenses.
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Atualizado em 12 de novembro, às 9h09
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