Olho de Peixe – Lenine e Suzano
Considero o Olho de peixe um dos grandes acontecimentos da música brasileira nos anos 1990. Lenine e Marcos Suzano realizaram um álbum de raro equilíbrio, com uma sonoridade acústica muito própria.
Considero o um dos grandes acontecimentos da música brasileira nos anos 1990. Lenine e Marcos Suzano realizaram um álbum de raro equilíbrio, com uma sonoridade acústica muito própria. Foi esse álbum que colocou Lenine entre os grandes compositores-violonistas de nossa música, pertencendo a uma linhagem que parte de Dorival Caymmi, passando por outros nomes como João Gilberto, Baden Powell, Jorge Ben, Gilberto Gil e João Bosco.
Em muitos aspectos, não deixa de ser um disco de “canções praieiras”. Do início ao fim, o álbum é atravessado por uma brisa marítima. O mar é personagem na maioria das faixas – o mar dos piratas de Lá e lô; do misticismo de Gandaia das ondas e de Pedra e areia; do futurismo lírico e pós-apocalíptico de O último por do sol; o mar que “bebe o Capibaribe” e é navegado por “gregos”, “negros” e “vikings”, caminho único dos povos que confluíram na formação mestiça do Brasil, como aparece nos devaneios históricos de Tuaregue Nagô; ou o vasto mar como símbolo da mais profunda solidão, em Miragem do porto. Poucos versos traduzem de forma tão pungente o sentimento de deriva e abandono quanto aqueles que abrem esta canção: “eu sou aquele navio, no mar, sem rumo e sem dono”. Nela fica claro como o violão de Lenine cumpre uma função cenográfica, estabelecendo um clima para a canção, uma textura. A melodia não é conduzida pelo acompanhamento, mas cercada por ele. O bordão afinado em Ré preenche o fundo da canção com um som contínuo, bojudo. Algo semelhante acontece em O último pôr do sol. Erigida sobre um longo arpejo circular que explora nuanças de ritmo e de posicionamento das notas (repetindo algumas em oitavas diferentes), a base do violão estabelece um fluxo contínuo para a canção, e a recorrência fluida desse desenho de fundo e seu amálgama com a melodia são confirmadas nas imagens que abrem o primeiro verso: “a onda ainda quebra na praia / espumas se misturam com o vento…”. São coisas que me levam a pensar na poética praieira de Caymmi.
Mas isso acontece apenas em algumas faixas do disco. Em outras, o violão de Lenine tem uma pegada de maior impacto rítmico, conferindo um forte “groove” ao . A maneira como ele tira sonoridades percussivas do instrumento, como o utiliza para acompanhar a própria voz, muitas vezes remete ao violão maduro de Gilberto Gil – ao violão pós-exílio londrino, que se torna plenamente reconhecível a partir do disco Expresso 2222, de 1972. Sobretudo, a capacidade de dissociar o plano rítmico do violão do plano rítmico da voz, fazendo com que mantenham uma oscilação contínua entre encaixe e desencaixe, parece aproximar os dois músicos. A levada de Tuaregue nagô (composta sobre um lindo texto de Bráulio Tavares), com o indicador e o polegar revezando-se sobre a mesma corda Ré, possui uma mecânica manual semelhante à da famosa introdução de Gil no Expresso 2222. O recorte rítmico é rico e variado, acentuando momentos precisos ao mesmo tempo em que expõe continuamente a regularidade do fundo métrico. O violão se torna uma “máquina de ritmo” que concentra força a cada giro, quase uma pequena orquestra de tambores. A impressão que se tem é de que Lenine partiu da aquisição técnica de Gil, mas a conduziu na direção de universos musicais que não foram muito explorados pelo baiano: o do maracatu e de outros ritmos do Pernambuco. Assim como acontece em Tuaregue nagô, em Leão do norte (uma longa loa aos ícones culturais do estado, escrita por Paulo César Pinheiro), Lenine seleciona e estiliza na batida pequenas células rítmicas dessa matriz. Além disso, o toque de Lenine é, em geral, mais seco do que o de Gil, mais nitidamente entrecortado de silêncios e ruídos, interrupções súbitas no fluxo sonoro; Lenine parece ir mais longe no aproveitamento expressivo de “ruídos” e “sujeiras” (pausas, slides, contra-cantos, toques rítmicos tirados do impacto das cordas nos trastes, etc…), enquanto o violão de Gil tem mais preenchimento: o movimento é contínuo, as cordas estão sempre soando (e essa observação eu devo ao compositor e escritor Gustavo Sant’Anna). Em outras palavras, o violão de Lenine é mais viril e invocado, mesmo quando tende para a doçura dos arpejos. Violão de cabra macho do Recife.
No , o groove e o peso do violão estão exemplarmente representados em Acredite ou não e Escrúpulo. Elas compõem o núcleo mais “duro” do álbum (junto com a faixa-título ). A primeira é tocada apenas nas três cordas de aço do violão, as cordas mais graves: a bagagem do rock’n roll soa nítida nos power chords utilizados. A segunda é construída sobre uma linha rítmico-melódica suingada, conjugando baixos e harmônicos, que lembra um pouco o Stevie Wonder de músicas como Superstition e Higher ground. São canções mais urbanas e neutras, sem qualquer remissão regionalista. A levada, o jeito de tocar são tão marcantes, que é difícil concebê-las sem o violão de Lenine. Em cada faixa, esse violão ganha uma feição diferente, específica, adequada e indissociável da canção. Nesse sentido, marca não apenas a projeção do pernambucano como cantor e compositor, mas um momento de ampliação das possibilidades do violão em nossa música popular. Essa é uma das glórias do disco, mas não a única: pois o que Lenine fez no violão, Suzano fez no pandeiro, inaugurando um novo modo de conceber o instrumento, transformando-o numa espécie de segundo solista do disco (e essa parceria ainda renderia momentos antológicos no disco seguinte, O dia em que faremos contato, como acontece em Candeeiro encantado). Não bastasse tudo isso, o disco ainda traz melodias inspiradas, portadoras de longas saudades e lentas melancolias – algo que colocava Lenine num ponto de equilíbrio perfeito entre suas matrizes regionais e seus arroubos de modernidade, entre o sertão e a ficção científica, entre a orquestra de pífanos e a banda de rock, entre o tempo eterno das ondas e o tempo agitado da cidade, entre Pernambuco e Rio de Janeiro.
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