Na forma narrativa constituída entre 1895 e 1929, e que permanece dominante, o espectador deixa de lado a descrença para poder apreciar cinema de ficção. Para resistirem ao escrutínio da nossa incredulidade, e poderem servir de entretenimento, filmes feitos de acordo com os parâmetros do “modo de representação institucional – M.R.I.” dependem da suspension of disbelief, noção que teria sido formulada no início do século XIX. "> “Olhos azuis” – desafios à credulidade - revista piauí
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“Olhos azuis” – desafios à credulidade

Na forma narrativa constituída entre 1895 e 1929, e que permanece dominante, o espectador deixa de lado a descrença para poder apreciar cinema de ficção. Para resistirem ao escrutínio da nossa incredulidade, e poderem servir de entretenimento, filmes feitos de acordo com os parâmetros do “modo de representação institucional – M.R.I.” dependem da suspension of disbelief, noção que teria sido formulada no início do século XIX. 

| 04 jun 2010_14h11
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Na forma narrativa constituída entre 1895 e 1929, e que permanece dominante, o espectador deixa de lado a descrença para poder apreciar cinema de ficção. Para resistirem ao escrutínio da nossa incredulidade, e poderem servir de entretenimento, filmes feitos de acordo com os parâmetros do “modo de representação institucional – M.R.I.” dependem da , noção que teria sido formulada no início do século XIX.

M.R.I., por sua vez, é expressão criada por Noël Burch, crítico e teórico americano radicado na França. Em Life to those shadows, publicado em 1990 ( inédito no Brasil ), ele estuda a constituição desse modo de representação “internalizado por todos nas sociedades industriais quando ainda muito jovens”, preferindo usar M.R.I. em vez de “‘linguagem’ [ para tratar das ] “condições de base que tornam possível o sistema simbólico que opera no cinema da Instituição”.

Nesses termos, ao comentar filmes feitos com intenção de entreter, perde sentido duvidar que fatos, atitudes, reações etc. encenados possam ocorrer na vida real. O pressuposto do M.R.I. é justamente o de procurar dar impressão ao espectador de estar diante da realidade, mesmo nos casos de ficção científica ou aventuras dependentes de imagens criadas por meio de computação gráfica. Essa é a ilusão que fundamenta a experiência de assistir cinema.

Deixando de lado a descrença, cabe apenas avaliar, portanto, até que ponto é crível ou não a encenação do roteiro –  interpretada, filmada e montada seguindo as determinações do diretor.

Mesmo conhecendo José Joffily, diretor e argumentista de “Olhos azuis”, além de amigo com quem colaborei em alguns projetos, e lendo nos créditos os nomes de Jorge Duran e Paulo Halm, co-autores do argumento, além de Melanie Dimantas, que assina o roteiro com Paulo Halm, não consigo entender como os quatro podem ter abusado a tal ponto da credulidade do espectador. A meu ver, ultrapassaram o limite admissível da suspension of disbelief, expondo o filme ao risco de ser rejeitado por não dar impressão de realidade.

David Rasche faz o personagem principal – um agente do setor de alfândega e proteção da fronteira dos Estados Unidos. Pelas razões expostas acima, não vem ao caso discutir se arbitrariedades, abusos e violências que resultem em mortes, são cometidas por agentes cuja missão prioritária é evitar a entrada nos Estados Unidos de terroristas e armas, além de implementar as leis referentes ao tráfico de drogas e à imigração. O que pode ser questionado é a verossimilhança da interpretação de David Rasche, ora intolerante, ora em busca de redenção. Nenhuma das duas faces do personagem resulta convincente.

Da mesma maneira, a metade de “Olhos azuis” filmada no Brasil, em estúdio, recriando o setor de imigração de um aeroporto nos Estados Unidos, não têm o teor realista que o próprio filme propõe. O que prevalece é impressão de falsidade, desafiando a capacidade do espectador deixar a descrença de lado. Pode até ser que o cenário seja cópia fiel de uma repartição realmente existente. Não é isso que importa – o que conta é o fato de não parecer verdadeira.

O talento e empenho de Irandhir Santos, um dos personagens à espera da autorização de entrada, não são suficientes para vencer o artificialismo da cenografia e da mise-en-scène. E falta consistência aos demais personagens que se encontram na mesma situação para dar o suporte necessário ao desfecho trágico da trama.

Na outra metade de “Olhos azuis”, as locações e a luz do Nordeste estão arraigadas na realidade. Ainda assim, a inconsistência persiste. O filme não consegue tornar aceitável o fato de um agente do setor de alfândega e proteção da fronteira dos Estados Unidos, mesmo aposentado, precisar da ajuda de uma jovem prostituta, primeiro para encontrar uma menina no Brasil, e em seguida para ir de Recife a Petrolina. Recusadas essas premissas, a história que está sendo contada não se mantém de pé.

O que dizer, então, da aparição mágica do avô da jovem prostituta ou da cura milagrosa de Marshall, à morte num momento, lépido e fagueiro na sequência seguinte? Não há impressão de realidade que resista a cenas como essas, além das outras já mencionadas, fazendo de “Olhos azuis” um filme que fica muito aquém da sua ambição.

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