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    Danilo Verpa/Folhapress

questões de gastos públicos

Os desvios da intervenção militar

TCU apura irregularidades no uso de 93 milhões de reais durante operação das Forças Armadas no Rio em 2018, comandada pelo hoje ministro Braga Netto

Marta Salomon | 28 set 2020_11h16
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Janelas quebradas, armários sem portas, fiação elétrica improvisada, estofados danificados e um bebedouro que não funcionava. O cenário foi descrito como “insalubre” por uma equipe de auditores do Tribunal de Contas da União (TCU) no início de dezembro de 2018 na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da favela Chapéu-Mangueira, Zona Sul carioca. Faltavam poucos dias para o fim da intervenção federal no Rio de Janeiro e a vulnerabilidade a que estavam expostos os policiais contrastava, segundo os auditores, com o anúncio, na mesma semana, do primeiro voo do veículo não tripulado Hermes 900, com link via satélite, adaptação comprada com parte do dinheiro destinado a melhorar a segurança no estado. O Hermes é de uso exclusivo das Forças Armadas – e o upgrade do equipamento, ao custo de 14 milhões de reais, é um dos negócios contestados pelos auditores do TCU na gestão do general Walter Braga Netto, chefe da Casa Civil do governo Bolsonaro, quando esteve à frente da intervenção federal no Rio de Janeiro.

O relatório de auditoria do TCU, mantido em sigilo, aponta desvios de finalidade em mais de 80% dos gastos (93,6 milhões de reais) de uma amostra das despesas da intervenção federal. A relação de problemas apontados pelos auditores inclui a compra de equipamentos de uso exclusivo das Forças Armadas, como os blindados Lince K2,  a atualização de um sistema de inteligência já operado pelo Exército, além de reformas de instalações militares fora do Rio de Janeiro e até a compra de camarão e bacalhau para consumo de militares. O gabinete do ministro do TCU Vital do Rêgo recebeu o relatório há nove meses e informou que não há data para submeter suas conclusões ao plenário do tribunal.

A intervenção foi decretada em fevereiro de 2018 pelo então presidente Michel Temer para conter a criminalidade no Rio de Janeiro e recuperar a capacidade dos órgãos de segurança pública do estado. Em pouco mais de dez meses, deveria “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”, como determinava o decreto presidencial. Parte da conta de 1,165 bilhão de reais que a intervenção custou aos cofres públicos, porém, ainda está sendo paga. O Tesouro Nacional registrava em 23 de setembro 57 milhões de reais de contas pendentes da intervenção, lançadas na ação de código 00QS do Orçamento da União.

Dados do Instituto de Segurança Pública do Rio sobre resultados da intervenção mostraram uma queda de 27% nos crimes de latrocínio (roubo seguido de morte). Uma redução maior do que a registrada em outros crimes, como roubos de cargas ou de veículos. O indicador de letalidade violenta, que inclui homicídios dolosos, latrocínios, mortes causadas por policiais e lesões corporais seguidas de morte, teve redução de apenas 1%  – e já nos últimos meses da intervenção.

A operação catapultou a carreira do general Braga Netto. O então comandante militar do Leste foi promovido na sequência a chefe do Estado Maior do Exército. Menos de um ano depois, era nomeado chefe da Casa Civil do presidente Jair Bolsonaro, como o primeiro militar a comandar a pasta desde a ditadura militar. No papel de maestro do governo, vem coordenando o enfrentamento à pandemia da Covid-19 e foi um dos responsáveis por aproximar o governo dos políticos do Centrão.

 “Repita-se que não se está a contestar a necessidade de modernização das Forças Armadas, mas isso não poderia ter sido realizado com os recursos destinados à segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Não se poderia deixar de reformar as instalações policiais para adquirir equipamentos bélicos milionários que, na melhor das hipóteses, foram utilizados nos últimos dias da intervenção, para não mencionar aqueles com entrega para as Forças Armadas após o final da intervenção”, diz o relatório de acompanhamento da intervenção federal.

“Enquanto o policial da UPP não possuía sequer um bebedouro adequado, cadeira com estofado ou armário com porta, foram adquiridos, pelo Exército, alimentos de luxo, como camarão, bacalhau e torta holandesa a um custo de 319.549,30 reais. Isto é, não é razoável gastar centenas de milhares de reais para adquirir alimentos supérfluos para o Exército ou equipamentos bélicos milionários para as Forças Armadas enquanto as instalações das forças policiais estavam em situação degradante. O problema aumenta quando se verifica que tais verbas eram destinadas para a melhoria das forças policiais do estado do Rio de Janeiro, não das Forças Armadas”, sustenta o relatório.

 

Os auditores do TCU anotaram desvio de finalidade em gastos com a reforma de instalações de uso regular do Exército, como um estande de tiro localizado em São Paulo, e nas despesas com manutenção de veículos no Grupamento de Apoio de Belém, no Pará. E registraram “nítido” desvio de finalidade nos gastos de 212 mil reais para a compra de camarão por três unidades do Exército no Rio, o Comando da Brigada de Infantaria Paraquedista, o 1o Batalhão de Infantaria Motorizado e a Companhia de Comando da 1a Região Militar.

No caso dos blindados Lince K2, foram comprados dezesseis veículos fabricados na Itália, ao custo de 3,9 milhões de euros (cerca de 25 milhões de reais). Embora o Exército já dispusesse de blindados Urutu e Guarani, que garantiam proteção contra disparos de qualquer tipo de armamento, eles não foram considerados apropriados para operar em espaços limitados, como as favelas cariocas. Os Lince foram escolhidos por serem menores e mais ágeis.

O problema, segundo os auditores, é nem ter sido considerada a possibilidade de compra de viaturas blindadas para os órgãos de segurança do estado combaterem o crime organizado. Por serem de uso exclusivo das Forças Armadas, os blindados só poderiam ser usados no Rio em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou no caso de uma nova intervenção federal. Os Lince K2 continuam sob propriedade do Exército, assim como o drone israelense, da Aeronáutica.

Outra compra contestada pelo mesmo motivo – reequipar as Forças Armadas, sem dar continuidade ao enfrentamento da criminalidade no Rio – foi o upgrade no Sistema X de inteligência do Exército. Os gastos com os softwares e com o funcionamento do sistema somaram 73 milhões de reais. Aos auditores, o gabinete da intervenção alegou que o repasse de informações do sistema aos órgãos de Segurança Pública do Rio se daria por meio “de laços existentes” entre o Comando Militar do Leste e estruturas de inteligência do estado. Os auditores sugeriram a celebração de um acordo que regule o acesso ao sistema de inteligência pelo governo estadual independentemente de prévia autorização do governo federal. O gabinete da intervenção, ainda em funcionamento, não tem notícia de tal acordo ter sido feito.

Embora tenha oficialmente terminado em dezembro de 2018, a intervenção federal  mantém até o momento um gabinete no Comando Militar do Leste para cuidar do pagamento de faturas pendentes e da entrega de materiais e serviços comprados. Ainda há três helicópteros a serem entregues. O gabinete da intervenção cuida ainda do “legado tangível e intangível” da presença dos militares no estado, como responder as perguntas dirigidas ao general Braga Netto na Casa Civil da Presidência.

Procurado pela piauí, o general não quis se manifestar sobre o processo no TCU e pediu que as demandas fossem encaminhadas ao gabinete da intervenção. Por e-mail, o gabinete remanescente afirmou à piauí que tem entre suas atribuições a instauração e o acompanhamento de processos administrativos, “efetivando a aplicação de sanções, quando for o caso”. Questionado sobre o processo do TCU, disse que as compras e contratações foram feitas seguindo os princípios da legalidade, imparcialidade, moralidade, publicidade e eficiência, e os recursos usados “em prol da segurança pública do estado”. 

Não é essa a avaliação dos auditores. Os desvios de finalidade apontados ferem a Constituição e configuram “graves” ilegalidades, sustenta o relatório de acompanhamento. Como os gastos da intervenção federal foram autorizados por lei, com um objetivo específico, o dinheiro não poderia ter sido usado para a compra de equipamentos ou a reforma de instalações de uso regular das Forças Armadas, nem mesmo da operação de Garantia da Lei e da Ordem, também em curso no Rio de Janeiro, sem o aval de deputados e senadores.

O relatório do tribunal pede a responsabilização do general Braga Netto porque o então interventor foi alertado em outubro de 2018, por meio de ofício, sobre o risco de desvio de finalidade nas contratações. Já naquela altura, o TCU considerava vagas as informações sobre o destino de “vultosos” recursos descentralizados às Forças Armadas, aponta o ofício. Também já aparecia no documento o alerta de que a intervenção não poderia cobrir despesas com a operação de Garantia da Lei e da Ordem.   

“Sabe-se que os investimentos nas Forças Armadas são importantes, mas não poderiam ser realizados ao custo das verbas destinadas à segurança pública do Rio de Janeiro”, pondera o relatório.

Desde o governo Temer, as Forças Armadas vêm ganhando mais espaço na disputa de verbas do Orçamento da União. Em 2020, avançaram na gestão da Amazônia e obtiveram autorizações extras de gastos, como os 410 milhões de reais destinados em agosto para a operação Verde Brasil 2, de combate ao desmatamento. O Ministério da Defesa também recebeu uma parcela milionária de recursos recuperados pela Operação Lava Jato. A intervenção federal no Rio é um dos episódios, ainda sem desfecho, de uma história maior sobre o destino do dinheiro público.

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