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    Vitor Medrado (à direita) com os irmãos John e Josy. Foto: arquivo pessoal

vultos da violência

Os impactos da barbárie

Como ficaram o irmão, os pais e a namorada de Vitor Medrado, o ciclista vítima da violência paulistana

João Batista Jr., de São Paulo | 21 mar 2025_08h48
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O designer gráfico John Medrado estava no ônibus, indo de sua casa para o trabalho, na Zona Sul de Belo Horizonte, por volta das 7h30 do dia 13 de fevereiro, uma quinta-feira, quando recebeu uma mensagem de WhatsApp. “Me liga, que é importante”, escreveu Jaquelini Santos, namorada de seu irmão, Vitor Medrado. Ele respondeu que estava a caminho do escritório da grife de sapatos onde atua no departamento de criação e que retornaria logo em seguida. Ao chegar ao trabalho, John ligou algumas vezes. Jaque, como é conhecida, não atendeu. “O que aconteceu?”, escreveu John. Pressentiu algo ruim.

Vitor havia deixado pronta uma vitamina – leite, aveia e whey protein – em cima da mesa da cozinha para a sua namorada, no apartamento da Zona Sul de São Paulo onde moravam. Ele saíra às 5h50. Ao dar um beijo de despedida, Jaque disse ao companheiro: “Como você tá lindo hoje.” Vitor vestia uma camisa branca de Jersey, o presente que ela lhe dera no Natal. “Nos falamos na hora do almoço”, disse o ciclista ao se despedir. Jaque saiu da cama às 6h15. Cerca de meia hora depois, um amigo telefonou para dizer que Vitor havia sofrido um assalto. “Parece que ele foi baleado”, ela escutou. Após alguns minutos, uma nova ligação de um outro amigo confirmava o tiro e orientava que fosse ao Hospital das Clínicas. “Eu me troquei correndo e fui”, recordou ela à piauí. Foi nesse meio-tempo que mandou mensagem ao seu cunhado, em Belo Horizonte.

Na recepção do hospital, uma pessoa perguntou de forma bem direta: “Você veio fazer o reconhecimento?” Formada em enfermagem, Jaque sabe o que essa palavra significa. Quando questionou o motivo da pergunta, “já com o meu corpo tremendo”, a mulher desconversou – disse que o homem havia dado entrada sem documentos. E encaminhou Jaque para dois médicos, que deram a notícia. Vitor, seu namorado há dois anos, havia levado um tiro no pescoço, sofrido uma parada cardíaca e não resistiu. Um médico chegou a fazer massagem cardíaca ainda no local do crime, antes de o Samu ser acionado. O disparo foi dado às 6h12, vinte minutos após o último beijo. Ela não atendeu às ligações do cunhado porque recebia a pior notícia de sua vida. “O John foi a primeira pessoa para quem eu liguei.”

Ao saber da morte do irmão, John contatou a sua irmã mais velha, Josy, que mora em Recife. Os dois choraram juntos ao telefone. O casal Medrado, Délio, de 85 anos, e Iolandina, de 76, tem apenas o filho John morando em Belo Horizonte. Seria ele, portanto, quem daria a pior notícia que se pode dar a um pai e uma mãe. Jaque pediu pressa ao cunhado, pois temia que os sogros soubessem do caso pela imprensa. John passou na casa de uma prima para não ir sozinho. No caminho, foram em uma farmácia comprar ansiolítico – Délio sofre de problemas do coração e Iolandina tinha feito uma cirurgia para a retirada da vesícula havia cinco dias.

Ao chegar em casa, John encontrou a mãe sentada na cama, rezando, diante de uma vela acesa. “É com o Vitor, né, pode falar. Ele morreu?” Minutos antes do filho chegar, dona Iolandina recebeu uma ligação de uma amiga de Vitor prestando condolências. Ao perceber que a senhora estava alheia, a amiga desconversou – mas a chamada levantou suspeitas. “Então eu confirmei à minha mãe que o meu irmão tinha morrido em uma tentativa de assalto. Ela desabou. Eu ia falar o quê?”, narrou John à piauí. O pai estava na cozinha, passando o café. Seu Délio foi até o quarto, tomou o remédio e recebeu a notícia. “O meu pai ficou meio aéreo, sem entender o que estava acontecendo. Ele chorou muito, muito, muito.”

Vitor Medrado e a namorada, Jaquelini Santos.                                  Foto: Reprodução/Instagram

 

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Formado em educação física, atleta profissional pela Associação Sertanezina de Ciclismo e especializado em treinamento de ciclistas, Vitor Medrado, de 46 anos, acordava às 5 horas todos os dias. Ele atendia alunos particulares e grupos de ciclismo e suas aulas começavam diariamente às seis da manhã. No fatídico dia, ele foi até a região do Parque do Povo, na Zona Sul paulistana, porque combinou com um aluno de encontrá-lo na entrada da ciclofaixa da Marginal Pinheiros. Vitor estava parado na calçada do parque para sincronizar o seu aplicativo de treino ao GPS. As imagens de segurança mostram uma motocicleta com dois homens. Um deles sai da garupa e dispara no pescoço de Vitor, que cai na calçada. O sujeito pega o celular da vítima já no chão, em um caso tipificado como latrocínio. “Primeiro ele atirou, depois roubou o celular do meu irmão”, diz John. Não houve conversa, resistência, nada. 

Entre ligações de parentes e amigos, John precisou levar seu pai a um cartório de notas da capital mineira. Seu Délio registrou uma procuração dando poderes a Jaque para cuidar dos trâmites legais, em São Paulo. No dia seguinte, 14 de fevereiro, houve um velório na capital paulista. Na madrugada de sexta para sábado, o corpo foi levado para Belo Horizonte em um carro funerário, onde foi enterrado às 14 horas de sábado, 15 de fevereiro.

Duas horas depois, em Lisboa, nascia Miguel, o sobrinho-neto de Vitor e quarto bisneto do casal Medrado. Maria Clara, filha de Josy, a irmã mais velha de Vitor, deu entrada no hospital no dia em que seu tio foi assassinado, mas a criança nasceu dois dias depois, data do enterro. O casal Délio e Iolandina estavam com passagens compradas para visitar os netos e bisnetos – além de Maria Clara, outro neto, Thiago, também mora na capital portuguesa, e cada um deles tem dois filhos. “Meus pais não queriam ir, mas insistimos para manterem a viagem”, conta John. Os dois seguem na capital portuguesa.

Vitor Medrado é mais uma vítima da violência paulistana. Os episódios de latrocínio, como foi o caso de Vitor, aumentaram 23,2% em relação ao ano passado na capital – apesar da diminuição no número de roubos e furtos registrados no estado, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública divulgados no início do ano. A percepção de que a capital vive um cotidiano de insegurança sob a gestão do atual secretário de segurança, Guilherme Derrite, é evidente e reforçada pelos eventos violentos que se repetem. 

Vitor Rocha e Silva, de 23 anos, andava com seu namorado na calçada da Rua Joaquim Antunes, no bairro de Pinheiros, local onde estão alguns dos restaurantes mais badalados do Brasil, quando um falso entregador o abordou para levar o seu celular. Por nervosismo, Vitor não conseguiu destravar o aparelho. Foi morto após ser atingido por dois disparos, no peito e no antebraço. Os dois assaltantes não foram localizados. No dia 7 de março, às 20 horas, um homem foi baleado na perna esquerda após entrar em confronto com um assaltante de motocicleta que exigia o seu celular, no mesmo bairro. Ele foi socorrido e o criminoso fugiu sem o aparelho. Em novembro passado e março deste ano, a Fazemos Pão Padaria Artesanal, na Rua Simão Álvares, em Pinheiros, sofreu dois arrastões. No último, um cliente foi baleado. Os dois bandidos fugiram a pé, levando ao menos dois celulares. 

O assassinato brutal de Vitor Medrado ganhou o noticiário e as redes. Bolsonaristas apoiadores de Derrite espalharam, sem prova alguma, que a execução de Vitor seria uma estratégia da facção Primeiro Comando da Capital (PCC) para enfraquecer o governador Tarcísio de Freitas junto à opinião pública. No dia 18 de fevereiro, Suedna Barbosa Carneiro, conhecida como Mainha do crime segundo a polícia paulista, foi presa em Paraisópolis. Ela foi apontada como líder de um esquema que recrutava assaltantes de celulares. Nesta quarta-feira (19), Derrite deu uma coletiva de imprensa para comemorar a prisão de Jeferson de Souza Jesus e Erick Benedito Verissimo, segundo ele os autores do assassinato de Vitor Medrado. “Depois da prisão dela [Mainha do crime], muita coisa foi apreendida lá no local e outras linhas de investigação levaram à conclusão de que os autores desse latrocínio eram o Jefferson e o Erick”, disse Derrite. Após as prisões, a polícia diz ter solucionado e encerrado o caso. 

Nesta quinta (20), o jornal Folha de S.Paulo revelou, com base em mensagens no celular de Suedna, que Mainha do Crime pagava até 2,2 mil reais por modelos mais novos, como o iPhone 15 Pro Max – o aparelho de Vitor, um Samsung Galaxy S23 (que estava com a tela quebrada), não aparece na lista de smartphones precificados pela suspeita. Apesar da vinculação feita por Derrite entre a prisão de Suedna e a morte de Vitor Medrado, o nome dele não aparece no inquérito policial que investigou a atuação da Mainha do crime.

A reportagem da piauí entrou em contato com a assessoria da Secretaria de Segurança para saber quais são as provas que confirmam que os dois homens presos e Mainha do crime são os responsáveis pela morte de Vitor. A secretaria limitou-se a enviar uma resposta com dados gerais da segurança pública em São Paulo. 

Diz, por exemplo, que “os esforços policiais na capital possibilitaram um aumento de 13% no número de presos e apreendidos, em janeiro deste ano, em comparação com o mesmo mês de 2024”, e que “3.780 pessoas foram detidas”, com queda de 11,35% no número de roubos. A nota salienta ainda que a 3ª Delegacia Seccional Oeste, que atende bairros da região, incluindo Pinheiros, registrou queda de 3,32% nos roubos e um aumento de 14% no número de prisões em relação ao mesmo período do ano passado. Ainda assim, a 14º DP, focada em Pinheiros, registrou 3.569 registros de ocorrências de roubos, ante 3.391 no ano anterior. É o maior índice desde o início da série histórica iniciada em 2002. 

John Medrado afirmou nunca ter recebido uma ligação das autoridades paulistas com informações sobre o andamento das investigações. Jaque, a namorada, tem evitado ler o noticiário. “Procuro focar nas boas lembranças, não no crime. Desejo que ninguém passe por isso.” Ela conta ter recebido uma série de mensagens de carinho e de solidariedade, e fica feliz por esse acolhimento ao vivo e pelas redes. Só não entende quem critica o seu companheiro por ter usado o celular em espaço público. “O Parque do Povo era o escritório do Vitor, e o celular, a sua ferramenta de trabalho. Ele estava trabalhando em um local conhecido e que cobra um dos maiores IPTUs de São Paulo. Ele é vítima, não culpado.”

Na véspera de seu assassinato, Vitor tinha levado a bicicleta de Jaque para a revisão. “Trocou o câmbio, pedivela, deu um upgrade para mim”, lembra. Os dois iriam pedalar na Estrada dos Romeiros no fim de semana, via que liga Barueri a Itu, no interior paulista. “O Vitor era apaixonado por essa rota.”