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    REPRODUÇÃO/SÉRIE FUTEBOL

vultos do futebol

Os nossos astronautas

Os diretores de Futebol explicam por que escolheram o esporte como tema da série documental*

João Moreira Salles e Arthur Fontes | 14 jun 2018_20h56
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De todas as razões que podíamos alegar para fazer esta série sobre futebol – o lugar-comum de que o futebol é uma das mais puras expressões da alma nacional, ou o fato de que muito pouca coisa foi feita na área audiovisual sobre o assunto, ou ainda a de sermos torcedores e adorarmos o esporte –, a mais sincera é que queríamos muito conhecer alguns jogadores. A gente se imaginava voltando para casa depois de um dia de trabalho, ligando para os amigos, perguntando como havia sido o dia deles e, depois de ouvir a resposta – despachei um processo, fechei um contrato, operei uma amígdala –, tendo o prazer de retrucar à queima-roupa: pois é, já nós apertamos a mão do Nilton Santos, demos um tapinha nas costas do Zizinho e contamos uma piada pro Julinho Botelho, que achou muita graça. Depois disso era dormir tranquilo, cheios de nós mesmos, certos de que nas próximas peladas não seríamos os últimos a ser escolhidos – que é a triste rotina das nossas vidas, nós que não somos bons de bola. Não se recusa no time alguém que três horas antes estava frente a frente com Barbosa, Pompéia, Bellini, Vavá, Domingos da Guia e Didi. Conhecer jogador de futebol é coisa séria.

Isso tudo pode parecer bobagem, ou no mínimo muito pouco, para justificar dois anos de trabalho, mas não é. A ideia da série surgiu há uns três anos, numa roda de conversa entre amigos. Falávamos das pessoas que tinham sido importantes nas nossas vidas. Pois bem, descontando pais e mães, e um ou outro azarão (um músico, um escritor, um líder), a lista era quase toda de jogadores de futebol. Zico, Jairzinho, Roberto Dinamite, Ademir da Guia, Geraldo, Reinaldo, Falcão, Sócrates – um botafoguense mais exaltado chegou a mencionar Paulinho Criciúma, e um tricolor, Cafuringa – eram esses os nomes que associávamos aos momentos em que havíamos sido mais felizes. E, como se espera de tudo aquilo que realmente vale a pena, a gente também ligava essas pessoas a alguns dos instantes mais tristes das nossas vidas, deixando claro que futebol era tudo menos entretenimento. Quem gosta de futebol sabe que os momentos de euforia são assim tão intensos só porque antes se rezou muito, se sofreu muito, se chorou muito. Um amigo nosso passou seis horas parado em frente à árvore em que morreu Dener, atordoado, com a sensação de que algo imenso havia acontecido sem que ele conseguisse entender. E nesse dia, exatamente como Carlos Heitor Cony na final Brasil x Uruguai de 50, ele deixou de acreditar em Deus.

Futebol é coisa importante, e pelo menos na roda dos nossos amigos a gente mede parte da vida por ele. “Conheço gente que mudou de casa, de carro, de cidade, de emprego, de mulher, de país – tudo isso a gente aceita, é normal. Mas pessoas que mudam de time, essas são poucas, e nelas eu não confio”, vive dizendo um dos nossos. E para demonstrar que o futebol ocupa o lugar de honra da nossa vida espiritual, ele cita Nelson Rodrigues e afirma que o futebol é anterior ao sexo. Serenamente, ele, que é heterossexual convicto e tricolor furioso, declara com orgulho: “antes de amar qualquer mulher eu amei Rivelino”. Ninguém ri, ninguém caçoa. É verdade. Antes da primeira namorada já tinha o Leandro, o Edu, o Paulo César.

Esses jogadores eram, e serão sempre, os nossos heróis. Ou, se vocês quiserem, os nossos astronautas. É assim que todos nós que estamos fazendo esse programa passamos a chamá-los: os nossos astronautas. São, todos eles, sem exceção, homens destemidos que foram muito longe e voltaram, cumprindo aquilo que deles se esperava. Se lá na América eles chegaram na Lua, por aqui os nossos foram à Suécia, ao Chile, ao México, ao Maracanã, ao Pacaembu, ao Olímpico, ao Mineirão – e voltaram vencedores. E para quem acha a comparação piegas, a gente se desculpa mas mantém: são astronautas. Pelé é astronauta, Telê é astronauta, Flávio Costa, Tostão, Joel, Dadá, Afonsinho, Aymoré e Zezé Moreira, todos eles são astronautas. Ou alguém imagina que para um garoto nascido e criado em, digamos, Pau Grande, sem escola e com pouca comida, Estocolmo é menos distante e esquisita do que a Lua para um cientista da Nasa?

Esses jogadores são a coisa mais próxima que temos de heróis e, para falar a verdade, são os melhores heróis que podíamos ter. Nós não gostaríamos de ter outros. E foi para poder apertar a mão deles que fizemos esse programa.

*Este texto foi publicado originalmente em 1998, logo após o lançamento da série Futebol, exibida em maio daquele ano no canal GNT.

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