Pesquisadores estiveram no Vaticano em junho para discutir os impactos da inteligência artificial nas relações sociais Foto: Gabriella C. Marino/PASS
Os pecados da tela
Papa Leão XIV traz o tema do momento para o coração de seu pontificado: os desafios da fé em tempos de inteligência artificial
Nas savanas da fé, cada leão ruge de acordo com as exigências do tempo de seu reinado. Titular do trono de Pedro desde maio, o norte-americano Robert Francis Prevost, que assumiu para si o nome de Leão XIV, abordou publicamente o tema da inteligência artificial pelo menos duas vezes por mês desde então. Tudo indica que o norte-americano será o papa das novas tecnologias, e seus efeitos sobre as pessoas.
Dois dias depois de ter sido eleito por seus pares do colégio cardinalício para suceder o papa Francisco (1936-2025) no comando da Igreja Católica, Leão discursou aos cardeais ressaltando que o cenário de mudança tecnológica exige postura e resposta cristãs.
Em junho, enviou uma mensagem sobre o assunto para os participantes da segunda conferência anual sobre inteligência artificial em Roma. “A IA, especialmente a IA generativa, abriu horizontes em muitos níveis diferentes, incluindo o aprimoramento da pesquisa na área da saúde e da descoberta científica, mas também levanta questões preocupantes sobre possíveis repercussões na abertura da humanidade à verdade e à beleza, e em nossa capacidade de compreender e processar a realidade”, afirmou em um trecho da mensagem.
O envolvimento ganhou maior concretude no mês passado, quando, pela primeira vez, o Vaticano reuniu, em parceria com a Universidade de Notre Dame, cinquenta especialistas em inteligência artificial para o seminário Rerum Novarum Digital (do latim, Das Coisas Novas Digital). De acordo com comunicado do Vaticano, o encontro serviu para “fomentar o diálogo e compartilhar experiências que pudessem contribuir para o uso responsável, ético e centrado no ser humano da inteligência artificial.”
Entre os convidados, Jaron Lanier, um dos primeiros estudiosos a falar sobre realidade virtual, ainda nos anos 1980, David Autor, renomado professor de economia do trabalho no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), e Jeffrey Sachs, diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia.
Nestor Caticha, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo que participou do encontro, afirmou à piauí que o novo papa “procura informação para definir como deve posicionar a Igreja, com sua imensa influência, frente às mudanças estruturais da sociedade”.
As discussões, segundo ele, abordaram o uso de IA como arma de manipulação, os problemas de uma sociedade que não está educada para lidar com a economia proporcionada por essa tecnologia, as inovações possíveis com a ferramenta e o desenvolvimento de um sistema regulatório em colaboração global, mas que respeite a soberania das nações.
“Embora vários participantes tenham demonstrado um pessimismo fruto de impotência aparente em mudar o comportamento das grandes corporações, várias ações identificadas dão esperança de que as grandes mudanças trazidas pela IA contribuam para uma humanidade digna e pacífica.”
O encontro promovido por Leão XIV ao cerca-se de especialistas representa um movimento comum de quando um pontífice prepara uma encíclica. O documento, ainda sem data para publicação, é considerado o grau máximo das comunicações pontifícias. Dirigido aos bispos e aos fiéis em geral, constitui o corpo doutrinário do atual papado.
“Ele já falou sobre o tema com diferentes grupos, sempre destacando a inteligência artificial (…) Possivelmente será o tema central do pontificado dele, e isto está no seu nome, Leão XIV, continuidade simbólica de Leão XIII”, salienta a jornalista Magali do Nascimento Cunha, autora do livro Do Púlpito às Mídias Sociais, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião e integrante do Grupo de Estudos em Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Se o anterior olhou para a revolução industrial como um grande desafio, agora Leão XIV vai tentar responder que coisas novas são essas: a cultura digital, o domínio do digital, a revolução digital.”
Com o nome de Leão XIII, o italiano Vincenzo Luigi Pecci comandou a Igreja Católica entre 1878 e 1903, e ficou conhecido por inaugurar a chamada Doutrina Social da Igreja. Por meio de uma encíclica, intitulada Rerum Novarum e publicada em 1891, ele expressou a defesa da Igreja por uma ordem social mais justa e menos desigual em meio à Revolução Industrial. Leão XIV, por sua vez, quer fincar o pé ideológico cristão sobre as consequências de outra revolução: a tecnológica, que traz no seu bojo a inteligência artificial.
“A pedra de toque da reflexão católica sobre a inteligência artificial tem sido se preocupar menos com o potencial técnico e centrar mais a atenção em como o ser humano interage com [a tecnologia], e como nessa interação pode ser garantida a dignidade da pessoa humana”, analisa o sociólogo da religião Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica.
“Essa parece uma coisa muito interessante porque nós ainda não sabemos qual é o alcance real da inteligência artificial, mesmo a curto prazo. As coisas todas mudam com muita velocidade, mas podemos ter como princípio que a inteligência artificial deve servir ao bem de cada pessoa e da sociedade como um todo. Então, sempre a pergunta é: como este avanço da inteligência artificial poderá ajudar a cada um de nós e a todos nós juntos? Tomando esse ponto de partida, a Igreja consegue escapar de algumas armadilhas, tanto no sentido de uma idolatria à inteligência artificial que não reconhece os problemas objetivos que ela poderá trazer para a humanidade, quanto um certo terror infundado que imagina a inteligência artificial como o fim da humanidade, a substituição da humanidade pela máquina”, complementou Neto.
Na visão do teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, a encruzilhada guarda semelhanças com a enfrentada por Leão XIII: a revolução atual, assim como a anterior, implicava na mudança das relações entre capital e trabalho. “Por trás de todas as questões algorítmicas, o que se tem é uma reestruturação do modo de produção, que envolve os donos das riquezas e aqueles que são explorados”, argumenta. “A inteligência artificial aparece como desenvolvimento tecnológico, mas a exploração capitalista continua a existir. Leão quer mostrar que a Igreja Católica tem posicionamento para isso.”
O mundo digital vem sendo acompanhado de perto pela Igreja Católica. É um espaço de comunicação, a praça pública do século XXI, dado que debates, argumentação e uma considerável parte da vida social ocorre nos ambientes online.
Nas redes sociais, a figura do papa está presente de forma oficial desde 12 de dezembro de 2012, quando Bento XVI (1927-2022) estreou no Twitter. Francisco herdou a conta papal quando assumiu o trono, no ano seguinte. O Instagram papal foi criado em 2016.
O antecessor de Leão era figura constante nessas redes. De acordo com o Vaticano, foram 50 mil postagens publicadas ao longo de seu pontificado em nove contas diferentes, mas todas relacionadas ao religioso – dificilmente, havia algum dia sem atualização.
Na linha de frente dos trabalhos pastorais e de evangelização, padres e bispos também não abrem mão do celular. Há um ano, por exemplo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) promoveu um evento chamado Encontro com os Padres que Evangelizam no Ambiente Digital.
Os dezessete sacerdotes reunidos pelo organismo, juntos, somavam 22 milhões de seguidores somente no Instagram. Um deles, o padre capixaba Patrick Fernandes da Costa, tinha 6 milhões de seguidores – hoje são quase 7 milhões. Durante o evento, ele frisou que por meio do ambiente digital consegue chegar “aonde os padres não conseguem chegar, comunidades distantes, pessoas distantes”.
Com mais de 700 mil seguidores no Instagram, o padre paranaense Alex Nogueira destacou que a Igreja precisa estar no ambiente em que a maioria das pessoas está. “A verdade do Evangelho precisa chegar a este ambiente, por isso estar presente nas redes sociais faz parte também da missão da própria Igreja de levar o Evangelho a todos os lugares, inclusive nos ambientes digitais”, contextualizou.
Se por um lado a Igreja está ciente de que o mundo digital é uma seara a ser explorada, por outro há preocupações éticas quanto ao exercício do cristianismo. Antes de morrer, papa Francisco disse que era preciso aproveitar “as possibilidades de encontro e de solidariedade que as redes sociais oferecem”. Ao mesmo tempo, lembrava que o espaço não podia se tornar “um lugar de alienação”.
“Peçamos juntos para que as redes sociais não anulem a própria personalidade, mas que favoreçam a solidariedade e o respeito pelo outro na sua diferença”, declarou ele. “A internet é um dom de Deus e também uma grande responsabilidade.”
Leão XIV vê uma incontornável evolução desse cenário. O religioso, formado em matemática, entende que a inteligência artificial é um “excepcional produto do gênio humano”. Mas, assim como Francisco, defende que ela é apenas uma “ferramenta” e, portanto, precisa estar à serviço das pessoas, não para prejudicar a humanidade.
As preocupações do religioso são legítimas, já que o impacto das novidades, sobretudo no âmbito da inteligência artificial, é grande até do ponto de vista climático. Cientistas como Noman Bashir, pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos, vêm alertando sobre como a necessidade exponencial de data centers para treinar e alimentar as plataformas de IA representam um aumento no consumo de eletricidade e água – e qual o limite disso para o planeta.
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o consumo de energia dos data centers de todo o mundo vai quase triplicar no quadriênio 2022-2026. Se fosse um país, o conjunto de data centers estaria em quinto lugar na demanda global por eletricidade, entre o Japão e a Rússia.
Para a humanidade – e, nesse sentido, a doutrina social da Igreja coloca as pessoas no centro –, a conta não vai fechar. Produzir mais energia envolve sempre algum dano ambiental – em maior ou menor intensidade, conforme a fonte. Não à toa, um dos principais debates ocorridos na última conferência do clima, em Belém, debruçou-se sobre a limitação da utilização dos combustíveis fósseis e sua respectiva exploração.
Do ponto de vista filosófico e sociológico, a Igreja, diante dos dilemas provocados pela presença da inteligência artificial, evoca para o papa o peso da “autoridade moral” e busca pontuar o que considera serem as balizas éticas para o tema.
Assim, em uma tendência que vem desde Leão XIII, o atual papa não parte do modelo teológico para buscar ajustar o mundo. É o contrário. Ele analisa a realidade posta – no caso, a humanidade pós-revolução digital – e então cobra o baluarte cristão: a dignidade da vida humana, no entendimento da Igreja, é o valor absoluto que precisa ser protegido.
Professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, e diretor na instituição Lay Centre, o vaticanista Filipe Domingues afirma que o papa é a maior voz de autoridade moral da contemporaneidade. Com isso, ele pode articular mentes e provocar debates em que os argumentos éticos e teológicos que interessam ao catolicismo sejam incluídos. “Ele pode se tornar o papa histórico nesse sentido, propondo valores do evangelho no tema da tecnologia, do ambiente digital, da inteligência artificial e das redes sociais”, comenta Domingues. “Assim como Francisco [com a encíclica Laudato Si’] se tornou referência para os ambientalistas e para a questão do clima.”
No meio disso tudo, um santo novo e oriundo do universo digital foi canonizado por Leão XIV em setembro. Trata-se de Carlo Acutis (1991-2006), cujo processo de santificação havia sido iniciado por Francisco. O adolescente, conhecido por evangelizar por meio de um blog, tem tudo para se tornar o padroeiro da internet, das relações digitais e do mundo da inteligência artificial entre os católicos. É o primeiro santo millennial. E sua foto oficial dialoga com a juventude contemporânea: camiseta desarrumada, cabelo bagunçado, mochila nas costas e sorriso leve. Um santo muito simbólico.
“Jovem que entendeu a internet não como um fim, mas como um caminho para o céu, Acutis, se vivo estivesse hoje, talvez usasse a inteligência artificial para evangelizar ainda mais longe”, afirma o padre Rodrigo Natal, autor do livro São Carlo Acutis: Uma Estrada para a Santidade. “Ele encarna o rosto jovem e luminoso da fé num mundo digital.”
Outro biógrafo de Acutis, o escritor argentino Jesús María Silveyra, autor do livro São Carlo Acutis: Uma Biografia, afirma que ter Acutis como primeiro santo do século XXI é um simbolismo importante para a Igreja. Ele lembra que há uma conexão entre Acutis e o Brasil: foi em Mato Grosso do Sul que ocorreu a cura de um menino reconhecida pela Igreja como um dos milagres necessários para justificar a canonização do santo-blogueiro – o outro aconteceu na Costa Rica.
Em tempos de crise católica diante do avanço evangélico, o Vaticano também sabe que esse marketing da fé é importante no maior país católico do mundo — e isso não depende de nenhuma inteligência artificial. Padre Natal, inclusive, acredita que Acutis pode ser mais do que o padroeiro da internet. Pode vir a ser reconhecido como “um intercessor para a era da inteligência artificial”, “símbolo de esperança para que a tecnologia” una em vez de levar “ao isolamento”.
Leão XIV demonstra que não pretende deixar de encarar o grande tema do qual é contemporâneo. E deve fazê-lo sob um aspecto: de que a inteligência artificial não é capaz de seguir parâmetros morais e éticos, e que estes devem ser definidos pela mente humana. Recentemente, afirmou que a inteligência artificial deve estar a serviço do “desenvolvimento integral da pessoa humana e da sociedade” e que isto implica “levar em consideração o bem-estar do ser humano não só materialmente, mas também intelectual e espiritualmente.”
É uma visão dissonante à de seu compatriota Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos é contra qualquer iniciativa que busque regulamentar as big techs, as grandes empresas de tecnologia que controlam os principais algoritmos do dia a dia e que em sua maioria estão situadas em solo norte-americano.
“O fato de Leão XIV ser norte-americano o coloca no mesmo campo cultural das big techs, mas o seu discurso vem justamente da fronteira entre poder e consciência”, avalia o cientista de dados Ricardo Cappra, autor do livro Híbridos, sobre os desafios enfrentados neste mundo de inteligência artificial. “Ele parece compreender o imaginário tecnológico do Vale do Silício, que é uma fé quase religiosa na capacidade das máquinas, mas está tentando traduzir para um vocabulário mais humano, onde a técnica é meio, não fim. Seu papel é o de mediador entre o entusiasmo tecnocrático e a reflexão humanista, algo que o Ocidente precisa urgentemente recuperar para evitar que o progresso técnico se transforme em pobreza de sentido.”
O cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), vê a nacionalidade de Leão XIV como fator-chave para debater as questões das big techs. “Ele estabelece senso crítico, oposição de ideias e até mesmo deve propor construção de limites para aonde a inteligência artificial pode chegar. Um papa norte-americano tem um impacto muito maior sobre os Estados Unidos do que se fosse de outra nação.”
Para o padre Natal, Leão XIV inaugura uma nova fase no diálogo entre fé e ciência. Se o fizer por meio da Doutrina Social, avalia o religioso, será o “Evangelho aplicado ao mundo dos algoritmos: um chamado a garantir que nenhuma tecnologia substitua o olhar humano sobre o humano”.
Se o papa vai conseguir catequizar o funcionamento das redes sociais, só o tempo dirá. Na iconografia católica, geralmente Deus mora nas nuvens.
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