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    Com caracterização despojada e atuação contida, Othon recorreu sobretudo aos seus atributos pessoais para interpretar Paulo Honório, protagonista de S. Bernardo Imagem: Reprodução

questões cinematográficas

Othon Bastos resiste

Monólogo autobiográfico com a memória em carne e osso

Eduardo Escorel | 11 set 2024_08h18
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“Aquele ali é o Corisco.” A indicação, feita por um amigo, me permitiu ver Othon Bastos ao vivo pela primeira vez, irreconhecível sem estar caracterizado. Isso foi há sessenta anos, na madrugada de 20 de março de 1964, no saguão do antigo cinema Ópera, na Praia de Botafogo, depois da segunda sessão para convidados de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Dias antes, na primeira exibição do filme de Glauber Rocha, eu havia sido apresentado ao ator transfigurado em cangaceiro, na tela do mesmo cinema.

“Foi uma sessão triunfal…” escrevi na piauí, em 2014. O “abalo sísmico” que causou “perdura até hoje, retido na memória”. Não creio ter exagerado o impacto do filme naquelas duas plateias, mas devo me penitenciar pelo lapso imperdoável cometido de sequer mencionar no artigo o nome do ator cuja inesquecível atuação como o fascinante Corisco é uma das maiores virtudes de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Othon Bastos, à direita, no papel de Corisco (Imagem: Reprodução)

 

Essas lembranças foram suscitadas há duas semanas ao assistir a Não me entrego, não!, monólogo escrito e dirigido por Flávio Marinho, em que Othon evoca passagens biográficas e a sua trajetória de ator. O texto da peça evita ser nostálgico, autocomplacente e hagiográfico. A encenação inclui a presença no palco de uma interlocutora (Juliana Medella), atuando como ponto, recurso hoje em extinção no teatro. O protagonista recorre a ela quando sua memória ameaça falhar, conforme é natural ocorrer aos 91 anos. Othon, por sua vez, dá soberba demonstração de integridade, vigor e talento, à altura das esplêndidas atuações que o consagraram no cinema e no teatro.

Após ter ganho merecida fama de grande ator graças a sua atuação como Corisco, Othon recusou inúmeras propostas de papéis de cangaceiro ou bandido. Resistiu incólume a essas tentativas de enquadrá-lo como intérprete estereotipado, capaz de fazer apenas um tipo de personagem. Aceitou, no entanto, o desafio de ser o ciumento algoz Bento Santiago, mais conhecido como Bentinho, em Capitu (1968), adaptação malograda de Dom Casmurro, de Machado de Assis, dirigida por Paulo César Saraceni.

Bentinho interpretado por Othon Bastos (Imagem: Reprodução)

 

Convivi com Othon pela primeira vez, sem ele saber, em meados de 1971, durante a montagem de S. Bernardo (1972), dirigido por Leon Hirszman. Ao longo de alguns meses, vimos e revimos Paulo Honório, personagem central do romance de Graciliano Ramos, ganhar vida à medida que íamos selecionando e combinando as imagens filmadas e o som direto gravado em Alagoas. Dessa vez, Othon tampouco contou com o figurino e a exuberância de Corisco. “Acompanhando a natureza do personagem, tudo em S. Bernardo é seco, bruto e cortante”, escreveu Antonio Candido em Os Bichos do Subterrâneo, incluído em Tese e Antítese. Ensaio que Leon leu enquanto escrevia o roteiro e Othon também deve ter lido. Com caracterização despojada e atuação contida, fora irrupções momentâneas de violência brutal, ele recorreu sobretudo aos seus atributos pessoais de grande intérprete para criar Paulo Honório, “um enjeitado… dotado de vontade inteiriça e da ambição de se tornar fazendeiro” que, tirânico e ciumento, leva Madalena (Isabel Ribeiro), sua mulher, ao suicídio, conforme Candido escreveu.

Foi só a partir de 1990 que me aproximei do Othon em pessoa, embora apenas por um breve período de tempo, quando ele narrou Ulysses Cidadão (1993), que dirigi. Desde a década de 1970, ele se tornara uma espécie de narrador titular de documentários brasileiros. Entre eles, Libertários (1976), de Lauro Escorel, Braços Cruzados, Máquinas Paradas (1979), de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo, Os Anos JK, uma Trajetória Política (1980), de Silvio Tendler, e Linha de Montagem (1982), de Renato Tapajós.

 

Quando assisti ao monólogo de Othon, o teatro estava lotado. Sucesso que se mantém desde a estreia, em junho, e levou à prorrogação da temporada até 29 de setembro. No final do espetáculo, dias atrás, Othon se aproximou do proscênio, levantou os braços e disse com a potência máxima da voz: “Não me entrego, não!” A plateia irrompeu em aplausos, ficou de pé e continuou batendo palmas. Ao proclamar que não vai se render, o ator estabeleceu uma conexão emocional forte com o público.

Após ter dito que “homem, nesta terra, só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino”, o grito final de Corisco – “Mais fortes são os poderes do povo!” –, dado antes de tombar morto, atingido pelos tiros de Antonio das Mortes (Maurício do Valle), levou ao êxtase as plateias nas primeiras exibições de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em março de 1964.

Hoje, o público de Não me entrego, não!, instigado pelo brado final de Othon, aplaude o repúdio à desistência. Quando Deus e o Diabo na Terra do Sol estreou, pegar em armas para mudar o destino e exaltar a capacidade do povo eram atitudes festejadas e enaltecidas. A diferença entre as duas posturas traduz a passagem do voluntarismo festivo da década de 1960 para a resistência acomodada dos nossos dias.

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