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    O diretor Lula Buarque de Hollanda ao lado de sua mãe, Heloísa Teixeira Foto: Divulgação

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Ouvir o outro, exercício da vida inteira

Helô, exibido no Festival do Rio, é um filme raro do qual a protagonista e o próprio cinema saem engrandecidos

Eduardo Escorel | 18 out 2023_08h34
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Só assisti a quatro dos 28 longas-metragens exibidos, entre 5 e 15 de outubro, nas mostras Première Brasil e Novos Rumos do Festival do Rio – amostra pequena, sem dúvida, de três documentários e um filme de ficção, pouco representativa do conjunto oferecido. Mesmo assim, constato que apenas uma dessas produções harmoniza com sucesso tema relevante com forma narrativa livre, desenvolta, sem compromisso com os padrões convencionais dominantes – qualidades essenciais escassas nos demais títulos que tive possibilidade de ver. Desses, Helô, de Lula Buarque de Hollanda, é o único que exala vitalidade, desembaraço e pleno domínio da linguagem, além de atestar sabedoria ao tornar o diretor personagem do seu próprio filme.

Helô evoca a trajetória intelectual e traça o perfil da polivalente Heloísa Teixeira, professora, crítica literária, editora, agitadora cultural e muito mais, além de ser, ainda por cima, mãe de Lula Buarque de Hollanda. O documentário reafirma, ademais, o talento do realizador, demonstrado em seu documentário anterior, O Muro (2017), inspirado no chamado “muro do impeachment” e comentado aqui. Para ele, a divisória de quinhentos painéis metálicos, armada na Esplanada dos Ministérios, em abril de 2016, é a “imagem-limite de nossa impossibilidade de conversar”, premissa que ressurge agora, de forma inesperada, em seu novo filme.

Na sequência final, em seguida à comemoração pela posse de Teixeira na Academia Brasileira de Letras, passa-se da euforia para a exaustão. Sentada em casa, sozinha diante da câmera, a mãe se dirige ao primogênito: “Lula, acho que não vai render, sabia? A gente está brocha total, os dois. Você não acha? Quer salvar esse [sic] coisa com a pergunta fulminante qualquer e fechar? Não vai render. Ele [Lula] também está com o mesmo cansaço que eu. Ele também está exausto. Olha a cara dele. Ele já acabou.”

No plano seguinte, sentado ao lado de sua mãe, Buarque de Hollanda pergunta a ela: “… Como é que foi a sua sensação dessa filmagem? O que é que você esperava? O que é que faltou?”

“Ah, não sei falar”, responde Teixeira. E prossegue: “Essa filmagem aqui? Foi ótima porque você precisou ficar grudado comigo. É dificílimo eu conseguir isso. Só ficar falando, falando, falando para você poder ficar. Uma estratégia de coopção, escravidão. Te escravizei. Era tudo que eu queria desde que você nasceu. Ótima essa filmagem.” A imagem se vai, então, em fade-out e começam os créditos finais.

Encerrar o filme assim, para baixo, deixando a festança na ABL para trás, é coerente com a postura recorrente de Teixeira, sempre atenta para impedir que seja glorificada e, além do mais, prova de lucidez, pois leva em conta a realidade trágica do nosso tempo.

Inúmeros outros lances imprevistos e reveladores estão presentes ao longo de Helô. Um deles é a fonte de inspiração que levou Teixeira a ir ao encontro do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone e filmar a peça Trate-me Leão, entre abril de 1977 e o final de 1978, período em que o Ato Institucional nº 5 estava em vigor. A motivação surgiu na entrevista de Alceu Amoroso Lima que ela filmou, conforme relata: ele era “o único intelectual que podia escrever o que quisesse no jornal. Os militares tinham medo dele. Porque ele tinha um telefone vermelho com o Papa. Mexeu com ele, ele ligava: ‘Alô, Papa!’ Aí eu falei: ‘Vou filmar Dr. Alceu, porque ele vai falar coisas que é a única pessoa que fala no Brasil. E aí, no final, ele disse assim: ‘Mas olha: essa ditadura está muito ruim. A gente vive um momento muito ruim, mas há luz no fim do túnel.’ É assim que acaba: ‘Há luz no fim… tem uma garotada que tá chegando aqui que está querendo ser feliz.’ Eu falei: ‘Vou filmar Trate-me Leão, que era um sucesso na época, para ilustrar a fala do Dr. Alceu.’”

O mérito de Teixeira foi ter sido capaz de fazer a conexão entre, de um lado, as palavras do crítico literário e líder conservador católico que se tornou voz ativa contra a ditadura e, de outro, o jovem grupo cujas criações coletivas a partir de improvisações eram baseadas na experiência pessoal de seus integrantes. Participavam dos espetáculos, entre outros, Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Perfeito Fortuna, Patrícia Travassos, Evandro Mesquita e Hamilton Vaz Pereira (Teixeira publicou Asdrúbal Trouxe o Trombone, em 2004, pela sua editora Aeroplano).

Há ainda outra iniciativa em Helô, talvez a mais crucial de todas, que não só norteia a obra de Teixeira, mas dialoga com os pressupostos do cinema documentário de Eduardo Coutinho, realizado a partir de Santo Forte, em 1999. É a Universidade das Quebradas, curso gratuito de extensão criado, em 2009, com a psicanalista e performer Numa Ciro no âmbito da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Direcionado a artistas e agentes culturais atuantes nos diversos territórios da cidade, o curso passou a ter lugar, no segundo semestre, desde 2014, na Escola do Olhar do MAR – Museu de Arte do Rio de Janeiro.

Nas palavras de Teixeira, “a função das quebradas, maior, para mim, é o reconhecimento. Não é passar conteúdo nenhum. É porque você reconhece aquela pessoa como uma pessoa que tem voz e vai falar uma coisa que você não sabe. Você vai ouvir pela primeira vez um conhecimento que você não tem… as Quebradas são um laboratório. Não é um curso que a gente chegue aqui e dê aula para vocês. É um laboratório onde a gente é parceiro e a gente vai ver se um escuta o outro, o que é muito difícil, quero esclarecer. É muito difícil que vocês ouçam bem o que eu estou falando e eu ouça vocês. Porque o exercício de escuta forte, uma escuta forte, que chegue perto, que realmente entenda o outro, ouça o outro, é uma coisa que tem que ser exercitada a vida inteira. Não é fácil. A gente pensa que ouviu, mas não ouviu.”

Respondendo à pergunta de Jordana Berg, uma das roteiristas e montadoras de Helô, Teixeira diz: “Se eu fosse fazer um filme sobre mim, eu faria sobre os outros. Sobre quem eu escuto, digamos. Então é neto, é amigo, são os quebradeiros sem dúvida nenhuma. Eu ia fazer sobre eles, mas não o que eles pensam sobre mim. Eu faria [sobre] eles por eles mesmos. Eu faria do meu contexto, entendeu? Jamais faria eu falando.”

Diante dessa explicação, um viés mais cético poderá duvidar da eficácia do procedimento imaginado por Teixeira. Não terá como negar, porém, que, por onde ela andou e continua a passar, uma lufada renova o ar que se respira.

Quando fez 80 anos, Teixeira declarou haver “uma coisa que conforta você estar perto da morte. Por que continuar vivendo é foda, viu? Tem uma hora que você cansa. Você não quer mais.”

Helô é um filme raro no qual a personagem principal e o próprio cinema resultam engrandecidos.

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