Ilustração: Carvall
Pai e mãe duelam na Justiça por causa de vacinação de filho de 8 anos
Após receber notificação do ex-marido para que não vacinasse filho contra a Covid, mãe obtém autorização judicial para imunizar criança
Na manhã de 25 de janeiro, quando estava chegando ao escritório onde atua como advogada previdenciária, Fernanda Rocha, de 42 anos, sentiu o celular apitar. Ela recebeu por mensagem de WhatsApp uma notificação extrajudicial enviada pelo advogado de seu ex-marido – que foi procurado pela piauí, mas não quis dar entrevista e pediu para não ter seu nome divulgado. Os dois foram casados por onze anos e se separaram em maio de 2021, muito em função de incompatibilidade ideológica em relação à política. A notificação extrajudicial informava sobre a discordância do pai em vacinar o único filho do casal, de 8 anos, impedindo a mãe – favorável à vacinação – de tomar uma decisão de forma unilateral. Pelo calendário de vacinação da cidade do Rio de Janeiro, onde todos os envolvidos moram, crianças a partir de 8 anos poderiam receber o imunizante a partir do dia 28 de janeiro.
Ao receber a notificação, Rocha teve uma crise de tremores. Ficou, em um primeiro momento, incrédula. O ex-marido defende o governo do presidente Jair Bolsonaro, cuja gestão na pandemia colecionou críticas pelo desdém com a vida de 627 mil mortos. Agora, o ex-companheiro decidiu levar à Justiça uma questão ligada à saúde do filho. No documento assinado por dois advogados, o pai do garoto enumera suas razões para se opor à vacinação infantil. E nega ser negacionista.
Na notificação, o pai diz que não é antivacina; ao contrário, afirma que ele próprio recebeu o imunizante contra a Covid. A preocupação do pai, segundo ele argumenta, é em relação aos menores, por se tratar de uma vacina “experimental” para essa faixa etária. Ele afirma que, uma vez sendo “experimental”, os efeitos colaterais e os possíveis danos à saúde poderiam arriscar o desenvolvimento futuro do filho.
O pai também ressalta que a vacinação infantil contra o coronavírus é “facultativa” no Brasil e finaliza dizendo que o percentual de mortalidade infantil pelo vírus é “ínfimo”. O texto da notificação é categórico ao afirmar que ele não autoriza a mãe da criança a levá-la para tomar vacina. O ex-casal tem regime de guarda compartilhada do filho.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), 1.544 crianças entre 0 a 11 anos morreram de Covid no país até o dia 23 de janeiro deste ano. “É inverídico o argumento de se tratar de uma vacina em estudo clínico, sendo que a mesma obedeceu todos os protocolos científicos e está sendo aplicada com eficácia em milhões de crianças”, diz o médico Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da SBP. “No mais, a Covid matou mais crianças no Brasil do que todas as outras doenças que fazem parte do calendário de vacinação juntas, como sarampo e meningite. Vacinar não diz respeito apenas a evitar mortes, mas evita o sofrimento de crianças irem parar no hospital, interrompe transmissões e diminui internações”, diz Kfouri.
No dia 27 de janeiro, um dia antes de ter início a vacinação para crianças de 8 anos pelo calendário do Rio de Janeiro, Fernanda Rocha entrou com um pedido de liminar junto ao Fórum de Jacarepaguá. Ela pedia autorização judicial para poder levar o filho do casal para tomar a vacina. O termo técnico usado na ação é “divergência ideológica dos pais”. Esse tipo de procedimento se dá quando as partes não concordam com determinado tema e solicitam para a justiça arbitrar sobre o caso – o exemplo mais comum de pais separados diz respeito a eventuais discordâncias com datas de visitação.
No pedido, a mãe explica que a Anvisa aprovou a vacina infantil após uma análise dos estudos clínicos, refutando o argumento do ex-marido de que se trata de uma vacina experimental. Ela também relativiza a questão do efeito colateral. “Todos os remédios do mundo têm bulas onde o paciente pode ler sobre possíveis efeitos colaterais, com a vacina não seria diferente. Isso não quer dizer que eles não funcionam”, disse Fernanda Rocha à piauí. Para exemplificar a sua tese, ela juntou ao pedido de liminar a bula da Novalgina, para provar que o corriqueiro remédio utilizado para combater febres pode causar irritações na pele e problemas no sistema linfático. “Sou advogada há vinte anos e estou acostumada a lidar com litígios, mas a coisa muda quando se trata de uma questão que nos envolve”, diz ela. “Mas se ele quis assim, vou até o fim.”
Antes de a mãe receber a notificação, ela e o ex-marido discutiram sobre dar ou não a vacina ao filho. Não houve acordo, já que cada um pensa de uma forma. Como forma de desatar o nó, Fernanda Rocha marcou uma reunião presencial entre sua irmã médica e seu ex-marido. A conversa durou cerca de quatro horas, mas ele seguiu em sua posição. “Eu mesma argumentei acerca dos estudos da Fiocruz, da Oxford, do Instituto Butantã, mesmo assim ele acredita que os efeitos colaterais da vacina podem ser maiores que sua eficácia, ao contrário do que diz toda a base científica”, conta Fernanda Rocha.
Na noite do dia 31 de janeiro, a promotora de Justiça Flavia Beiriz Brandão de Azevedo, do Rio de Janeiro, recomendou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a vacinação do menor. O despacho da promotora alertou que os argumentos do pai são de ordem ideológica e não têm amparo em recomendação médica que pudesse desaconselhar a aplicação da vacina. No mesmo dia, a Justiça concedeu uma liminar favorável ao pedido de Fernanda Rocha. O pai decidiu não recorrer da decisão.
Quando um casal tem a guarda compartilhada do filho, toda e qualquer decisão de fato precisa ser tomada tanto pelo pai quanto pela mãe. A vacina contra o coronavírus em crianças é recomendada pela Anvisa e Ministério da Saúde, mas não integra o calendário nacional de vacinação. “De acordo com a guarda compartilhada, a decisão sobre vacinas não obrigatórias deve ser sempre conjunta, assim como qualquer outra questão relacionada à saúde, à educação e ao bem-estar do filho. Se vacinar a criança tendo uma das partes já expressado contrariedade, o ato pode ser interpretado como uma quebra do compartilhamento das decisões, podendo gerar sanções. Em caso de discordância, o ideal é acionar o Judiciário, que na questão das vacinas tem dado indicativos de que a recomendação das autoridades sanitárias poderá prevalecer como regra de julgamento”, explica Patricia Valle Razuk, advogada de família e sócia do escritório Pimentel, Helito e Razuk Advogados. Sobre a questão da vacinação infantil, o presidente Jair Bolsonaro informou em uma live no dia 6 de janeiro: “A minha filha de 11 anos não será vacinada.”
Essa não é a primeira batalha judicial de Fernanda Rocha em prol da saúde de um parente. Sua irmã caçula, Tônia, sofreu de câncer no pulmão ao longo de vinte anos. Nesse período, ela escreveu chorando diversos pedidos de liminares para que o plano de saúde arcasse com os tratamentos de quimioterapia. “Vencemos todos. Minha irmã morreu há três anos, mas enquanto esteve viva ela teve qualidade de vida, era uma veterinária atuante e escalava o Pão de Açúcar, e pôde usufruir dos melhores tratamentos”, diz. “Quando recebi a notificação sobre meu filho, me remeteu às angústias que vivi brigando em prol da Tônia. Fiquei muito afetada, mas tenho convicção do que estou fazendo.”
Na manhã de hoje, a advogada buscou seu filho no colégio às 10 horas da manhã. Mãe e filho se dirigiram a um posto de saúde perto da escola. Não havia imunizantes. Ali, Rocha foi informada de que a cidade do Rio de Janeiro enfrenta problemas de escassez de vacinas para crianças sem comorbidades. Foi um banho de água fria, mas ela decidiu que não esperaria nem mais um dia. “Fui de posto em posto, em um total de seis unidades, até que em um sétimo tinha a vacina. Meu filho tomou a primeira dose de Pfizer e eu aproveitei para receber a minha de reforço na mesma ocasião. Comecei a chorar. Foi uma sensação de alegria e vitória. Voltamos para casa escutando música no rádio do carro. Estou muito emocionada.”
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