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    ILUSTRAÇÃO: PAULA CARDOSO

questões científicas

Pandemia de papers

Covid-19 inspirou mais de 23 mil artigos científicos, e urgência traz problemas: periódicos tradicionais encurtam prazo de publicação e textos sem revisão por outros cientistas monopolizam repositórios digitais

Yasmin Santos | 18 jun 2020_13h00
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O modo como a comunidade científica tem respondido à pandemia de Covid-19 pode inaugurar um novo paradigma na divulgação de estudos e pesquisas. Só neste ano, mais de 23 mil artigos científicos citaram a doença, segundo a MEDLINE, base de dados de pesquisa em biomedicina. Se impressiona pelo volume e pela busca de uma resposta à urgência da pandemia, a alta produtividade científica também abre uma discussão sobre velocidade e qualidade dos artigos. O estudo Preprinting a pandemic estima que, até o final de abril, ao menos 37% dos artigos publicados (16 mil até então) não haviam passado pela revisão de outros cientistas. São os chamados preprints, pré-impressos em português. Esses estudos, que costumam ser publicados em repositórios online antes de serem revisados por pares, nunca assumiram tanta relevância quanto nesta pandemia. 

Nesse estudo, os pesquisadores investigam de que forma a popularização dos preprints têm impactado a divulgação científica e medem o interesse por eles durante a pandemia de Covid-19. O trabalho foi realizado por pesquisadores ligados a seis instituições: Leibniz Information Centre for Economics, na Alemanha,  ASAPbio, nos Estados Unidos, University of Liverpool, University College London, The Company of Biologists e University of Cambridge, na Inglaterra.

Entre 1º de janeiro e 30 de abril, preprints relacionados à Covid-19 foram acessados e distribuídos quinze vezes mais do que aqueles relacionados a outros temas. Quando se mede o número de downloads, essa diferença duplica. A popularidade também se mantém nas redes sociais. Enquanto o preprint normal com mais repercussão recebeu 1 323 tuítes, oito dos dez artigos mais populares sobre Covid-19 receberam mais de dez mil tuítes cada. O estudo que teve maior repercussão na rede social, entre janeiro e abril deste ano, investigava a soroprevalência de anticorpos na Califórnia (29 984 tuítes até então).

Os países que mais publicaram preprints sobre a doença foram a China (quase 20%), seguida dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Enquanto a maioria dos países publicou artigos perto do momento do primeiro caso confirmado em seu território, países desenvolvidos como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a Suíça e a exemplar Nova Zelândia – primeira nação a zerar o número de casos ativos da doença – começaram a estudar o vírus antes mesmo que ele aportasse em suas terras. Cientistas de todos os continentes já depositaram preprints sobre a nova doença em repositórios online. 

A pandemia de Covid-19 fez com que, pela primeira vez, o preprint seja amplamente usado na divulgação científica. De acordo com o artigo Preprinting a pandemic, nos primeiros quatro meses da epidemia de Covid-19, 2 527 preprints foram publicados em dois dos principais repositórios de ciências biomédicas: bioRxiv, no qual o próprio estudo, ele mesmo um preprint, foi divulgado, e medRxiv. Em comparação, apenas 78 artigos relacionados ao zika vírus e 10 ao ebola foram publicados nesses mesmos repositórios durante os quatro primeiros meses de cada surto. Considerando outros repositórios e num tempo de análise maior, o número dos preprints nessas epidemias mais recentes permanece comparativamente pequeno. Entre 2015 e 2017, foram publicados cerca de 174 preprints em resposta à epidemia de zika vírus, segundo o estudo Preprints: An underutilized mechanism to accelerate outbreak science. Com relação ao ebola, entre 2014 e 2016, foram publicados apenas 75 preprints.

 

A alta produtividade de estudos sobre a Covid-19 leva a comunidade científica a refletir sobre seus próprios parâmetros de confiabilidade e a discutir se a quantidade de estudos e a velocidade na publicação comprometem a qualidade dos trabalhos. Para se adaptar à nova realidade, muitos periódicos tradicionais resolveram rever suas políticas de publicação, com a intenção de facilitar – e agilizar – a divulgação de conhecimento científico. O período entre a submissão e a publicação, de acordo com o estudo Preprinting a pandemic, foi significativamente acelerado para os trabalhos relacionados à Covid-19, em uma diferença média de 25 dias em comparação a outras pesquisas publicadas no mesmo período. Antes da pandemia, o tempo médio para publicação era de 166 dias.

“Ao comunicar a ciência por meio de preprints de acesso aberto, estamos compartilhando em um ritmo mais rápido do que o permitido pela infraestrutura atual dos periódicos tradicionais”, defende o estudo. Mas os pesquisadores deixam também um alerta: enquanto a maioria dos preprints relacionados à Covid-19 ainda não for revisada por seus pares e publicada em periódicos científicos, as preocupações com a qualidade desses estudos persistirão.  

Até mesmo a revisão por pares tem se mostrado insuficiente como forma de assegurar a qualidade de um trabalho, como mostrou uma reportagem do New York Times. O processo, adotado pelos periódicos em meados do século XX, é falho e pouco transparente – geralmente não se divulga quem revisou um estudo, o que foi encontrado, quanto tempo levou ou mesmo quando um manuscrito foi enviado. A desconfiança ganhou força depois que pesquisadores encontraram falhas óbvias em dois estudos publicados pelo New England Journal of Medicine e pelo Lancet, dois dos mais respeitados periódicos de medicina. As retratações apressadas alarmaram os cientistas em todo o mundo, que temem que a corrida pelas pesquisas sobre o coronavírus tenha aberto a porta à fraude, ameaçando a credibilidade de revistas médicas respeitadas exatamente quando elas são ainda mais necessárias.

 

A insistência do presidente norte-americano Donald Trump e do brasileiro Jair Bolsonaro para fazer da cloroquina a grande cura da Covid-19 também impactou a divulgação dos preprints, especialmente no Twitter. Logo atrás de hashtags diretamente ligadas à pandemia, como #coronavirus e #COVID-19, o tópico mais relacionado aos preprints no Twitter foi a cloroquina, associada a dois dos dez trabalhos mais populares na rede social. Outras hashtags importantes continham uma mistura de referências diretas e neutras à pandemia, como #coronavirusoutbreak e #Wuhan, e alguns termos mais politizados, como #fakenews e #covidisalie, associados a teorias da conspiração.

O estudo Preprint a pandemic também estabelece uma correlação entre a popularidade dos artigos no Twitter e a atenção que eles recebem na imprensa. Analisando os dez artigos mais tuitados e os dez que mais repercutiram na mídia, cinco aparecem nas duas listas. “O fato de as agências de notícias estarem reportando extensivamente os preprints relacionados à Covid-19 representa uma mudança acentuada na prática jornalística”, analisam os pesquisadores. “Os preprints publicados antes da pandemia no bioRxiv [repositório online] receberam, em comparação com artigos de periódicos científicos, pouca cobertura. Essa mudança cultural oferece uma oportunidade sem precedentes de conectar a comunidade científica à mídia para criar um consenso sobre a divulgação de preprints.

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