Ilustração: Carvall
Pandemia encerrada a canetadas
De olho na eleição, Bolsonaro quer declarar o fim da pandemia, mas epidemiologistas dizem que é cedo para isso
O presidente Jair Bolsonaro quer acabar com a pandemia – não através da ampliação da cobertura vacinal ou do reforço da vigilância epidemiológica, mas simplesmente dizendo que ela não existe mais. Em seu canal oficial do Telegram, na primeira semana de março, Bolsonaro publicou uma foto ao lado do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e anunciou, para uma plateia virtual de 1,3 milhão de seguidores, que o ministro estudava rebaixar para endemia a situação da Covid no Brasil. “Chega de pandemia, presidente! Por favor!”, clamou um dos apoiadores. “Já era hora! Parabéns, presidente”, celebrou outro. Bolsonaro fez o mesmo no seu perfil do Instagram, onde conta com 19,5 milhões de seguidores. “E há quem diga que o presidente não se importa com a saúde”, comentou uma seguidora. O próprio ministro também respondeu à postagem, em tom celebratório: “Obrigado pela confiança. Brasil acima de tudo!” Estava montado o palanque.
Mas fora do cercadinho das redes sociais, Queiroga virou chacota. Especialistas lembraram que o status de pandemia é definido pela Organização Mundial da Saúde – e não cabe a um país, ou a um ministro, decretar seu fim.
Mesmo assim, no dia 16 de março, em entrevista a uma tevê local, Bolsonaro reafirmou os planos do governo. “Nosso ministro Queiroga tem se comportado muito bem nessa questão”, disse. “Ele sinalizou há alguns dias que sairia uma portaria dele, como definido em lei, [para] nós sairmos da pandemia e entrarmos na endemia. Isso deve acontecer até o fim deste mês.” A estratégia de desinformação é conhecida: soltar uma informação errada, mas que parece real, e deixar que ela corra solta pela internet. Segundo o presidente, com essa suposta decisão, o Brasil deveria “voltar à normalidade”. Pressionado por uma nova onda de críticas, o ministro voltou atrás e reconheceu que ele não pode atender aos desejos do chefe.
“O fim da pandemia é uma discussão totalmente precipitada, que não tem nenhuma base científica e é motivada única e exclusivamente por motivos políticos e eleitoreiros”, afirma o epidemiologista Pedro Hallal. A rigor, epidemias acontecem quando uma doença atinge níveis de transmissão inesperados e se propaga de forma descontrolada em uma região. Uma pandemia ocorre quando esse cenário se dá em escala global, a exemplo da Covid. Mas para uma doença se tornar endêmica, ela precisa estar controlada – ou seja, o número de casos, de mortes e a taxa de transmissão precisam atingir um patamar estável, regular e, portanto, previsível. A queda do número de infectados – cenário que o Brasil vive atualmente, assim como outros países do mundo – não caracteriza, por si só, uma endemia, explica Hallal.
Não faz muito tempo que o Brasil registrou um número recorde de casos de Covid. Fevereiro foi o pior mês de contágio desde o início da pandemia. Além disso, a curva do número de infectados mostra que a Covid se propaga em ondas, intercalando períodos de maior e menor gravidade. “Para atingir um nível de previsibilidade, é preciso contabilizar pelo menos dois ou três meses sem grandes oscilações nos dados. E nós não temos isso”, explica o epidemiologista. Alguns países europeus e asiáticos já estão vendo seus números subirem. Pode ser que o Brasil passe incólume – ou pode ser que, em breve, surja uma nova variante que mate milhares de pessoas. Em seguida, talvez essa suposta variante suma e o mundo atravesse um novo período sem muitas mortes. Também é possível que não surjam novas variantes perigosas. O futuro é extremamente incerto, e é essa imprevisibilidade que caracteriza o descontrole. “Por isso a Covid ainda não é endêmica e está longe de ser”, completa Hallal. Levando em conta o melhor cenário, diz ele, poderemos começar a falar em endemia só a partir do segundo semestre deste ano.
A cada três meses, desde janeiro de 2020, dezoito especialistas da OMS se reúnem para decidir se a pandemia de Covid (oficialmente chamada de Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional) ainda merece esse status. Trata-se de um cálculo delicado cujo resultado depende da avaliação dos cientistas. Até hoje, em todos os encontros, o comitê decidiu pela continuidade da emergência, e o diretor-geral da organização acatou a decisão. O grupo se reunirá novamente neste mês de abril – e a expectativa é que o veredito se mantenha. Em entrevista à revista Science, o epidemiologista Salim Abdool Karim, principal cientista do governo da África do Sul, disse que errar o timing do fim da pandemia carrega um preço alto. Seu medo é que a mudança de status leve embora instrumentos importantes no combate à doença usados por países mais pobres. “O Sars-CoV-2 causou tantas dificuldades e desafios econômicos que haverá a tentação de encerrar mais cedo ou mais tarde”, afirmou Karim.
No Brasil, o máximo que o Ministério da Saúde pode fazer – já que extinguir a pandemia, como anunciou Bolsonaro, está fora de sua alçada – é decretar o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), estabelecida em fevereiro de 2020. E esse tem sido o foco da pasta desde então. “Acabar com a Espin é simbólico”, reconhece o secretário executivo do Ministério da Saúde, Rodrigo Cruz, que está à frente da operação. “A gente já viu alguns estados e municípios decretando fim do estado de emergência [local]. Sabemos que estamos num ano de eleição, que existem diversos interesses. Por isso avaliamos com muita calma.”
Apesar do simbolismo óbvio, as consequências são concretas. O fim da Espin invalida diversas leis e resoluções vinculadas à vigência da portaria. Só no Ministério da Saúde foram identificadas 177 normas nessa situação. Na Anvisa, há outras 70 resoluções baseadas na situação de emergência, incluindo a autorização para uso emergencial da CoronaVac, que ainda não tem registro definitivo. Outras centenas de portarias estaduais e municipais amparadas pela Espin podem cair. E os efeitos vão além da área da saúde. Uma lei federal sancionada no início deste ano, por exemplo, conferiu direitos a entregadores de aplicativo, como a garantia de seguro contra acidentes e assistência financeira em caso de contaminação pela Covid – mas ela só vale enquanto durar a Espin.
A pedido do Ministério da Saúde, as outras pastas tiveram o prazo de duas semanas para realizar um levantamento interno, indicando quais normas e portarias estão ligadas à Espin. Nesta sexta, todos devem apresentar suas análises à Casa Civil, que passará a se reunir com cada órgão para discutir os efeitos que a decisão tem em todas as áreas do governo. “Acabar com a Espin teria uma repercussão muito relevante e várias implicações. A gente quer estar seguro de que essa decisão não vai pegar ninguém de surpresa”, diz o secretário executivo da Saúde. Segundo ele, a reunião com outras pastas vai determinar se é possível seguir com os planos do Ministério. Mas o primeiro passo já foi dado: fazer o comunicado a diferentes atores políticos.
Ao longo do mês de março, o ministro Queiroga fez um périplo para comunicar a intenção de revogar a Espin aos representantes de outros Poderes. Conversou com o presidente da Câmara, do Senado, do STF e, em breve, planeja se encontrar com representantes do Tribunal de Contas da União. Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, comunicou em sua conta do Twitter que levaria a proposta do ministro aos líderes da Casa. Na Câmara, por outro lado, os deputados não estão muito interessados no tema. À piauí, o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PSD-AM), afirmou que as lideranças não estão discutindo a questão. “Isso nem chegou a nós, acabei de sair da reunião e ninguém falou disso”, concluiu.
Além do nó administrativo que o governo terá que desfazer, está em jogo o futuro dos recursos para o combate à doença, a principal preocupação dos especialistas ouvidos pela piauí. O estado de emergência abriu a possibilidade para repasses extraordinários a estados e municípios que não conseguem arcar, sozinhos, com os custos do combate à doença. Também permite repasses que extrapolam o teto de gastos, por se tratar de uma situação emergencial. Em 2020 e 2021, o governo gastou quase 60 bilhões do Orçamento em projetos de enfrentamento à pandemia. Parte desse dinheiro foi utilizado para a compra de vacinas e para os estados e municípios, com respaldo da Espin.
No último mês de dezembro, o governo federal já havia cortado o orçamento extraordinário criado em razão da Covid – o que significa uma redução de cerca de 25 bilhões na verba destinada à Saúde para o ano de 2022. À época, o Ministério da Economia minimizou o impacto da decisão, alegando que poderia abrir crédito extraordinário, caso fosse necessário. “Quando você retira a emergência, tudo deixa de ser urgente, inclusive a alocação de recursos”, diz Marcia Castro, demógrafa e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard. Na avaliação dela, esses recursos deveriam ser usados inclusive em programas dirigidos a brasileiros desamparados por consequência da pandemia.
É o caso de órfãos cujos pais morreram de Covid. Não há um levantamento para contabilizar quantas crianças e adolescentes estão de fato nessa situação, apenas estimativas. Existem ainda os problemas da Covid longa: um exército de sequelados que precisarão de tratamento e apoio hospitalar. Também não há rastreamento dessas pessoas. “Acabando o estado de emergência, não vai ter verba adicional para isso”, prevê Marcia Castro, que se envolveu no mesmo debate em 2017, quando o governo retirou a Espin relacionada à zika. “Com o governo que a gente tem, o estado de emergência não é garantia de que tudo vai ser resolvido, mas sem o estado de emergência piora porque não há uma mobilização para trazer parte dos recursos extras para esse enorme desafio que está colocado”. As medidas que têm que ser implementadas, diz a pesquisadora, não estão vindo do governo federal, e o fim do estado de emergência deixa estados e municípios de mãos atadas.
“Vamos precisar discutir um novo teto de financiamento do SUS”, avalia o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Nésio Fernandes. Como a pandemia modificou o funcionamento do sistema de saúde, será necessário incorporar novos recursos para continuar financiando a capacidade ampliada do sistema, as cirurgias eletivas que foram adiadas por causa da Covid e a estrutura de vigilância sanitária do país. “Temos uma quantidade gigantesca de pessoas aguardando cirurgias eletivas, consultas e exames, e elas disputam recursos que foram utilizados para combater a Covid. A gente precisa produzir em 2022 o que não produziu ao longo de dois anos de pandemia e temos que financiar tudo isso.” Caso a portaria caia, afirma Fernandes, é preciso descobrir outra fonte de recursos que substitua essa perda – e o repasse financeiro em questão está “relacionado à vontade política”.
Por enquanto, o Conass é contra o fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional. Antes de qualquer decisão, os secretários querem organizar um “plano de retomada”, que estabeleça uma agenda de vigilância, a continuidade da campanha de vacinação e um raio X da estrutura do SUS. “Só podemos levantar Espin se tivermos clareza de que estamos preparados para conviver com essa carga de doenças”, diz o presidente do conselho. A capacidade hospitalar para responder à doença é uma das condições legais para o estabelecimento de uma emergência. Fernandes relata que, em fevereiro deste ano, o sistema só não colapsou porque os estados mantiveram um número remanescente de leitos que estavam em vias de desmobilização. “Com o corte e a descontinuidade desse financiamento, haverá uma grande desmobilização de leitos de UTI”, alerta. O Conass pediu que o Ministério da Saúde faça um balanço para avaliar se os leitos que ficarão disponíveis serão suficientes. “Não pode ser um debate atropelado com frases de efeito em lives e entrevistas. Isso diz respeito à segurança sanitária do país”, acrescenta o presidente do conselho.
O Ministério, contudo, não vê problema na alocação de recursos porque a liberação de crédito extraordinário pode ser feita fora da Espin. “Uma portaria é muito rápida de ser editada, assim como a edição de crédito extraordinário”, afirma o secretário executivo da pasta. Segundo ele, se o cenário epidemiológico piorar, é possível adotar medidas orçamentárias para financiar a resposta do governo. Mas o argumento não convence especialistas em saúde pública. “Se temos governo relaxando as medidas de emergência, por que eu vou esperar que esse mesmo governo emita uma outra medida que garanta o repasse adicional de recursos?”, questiona Castro, que encara com ceticismo o futuro da gestão da crise sanitária. “Para variar, o governo está levando isso de forma irresponsável”, avalia Gonzalo Vecina, ex-secretário de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. “Vamos perder uma série de instrumentos que podem ajudar no combate à doença enquanto ainda estamos, claramente, em um cenário de emergência.”
Os Estados Unidos recentemente baixaram a guarda no combate à Covid. E o que está acontecendo no país norte-americano soa como um alerta: o governo Biden trava uma batalha política para conseguir recursos de combate à Covid, à medida que o país entra em um novo momento da pandemia. “O Congresso não nos forneceu o financiamento necessário para continuar a resposta à Covid e minimizar o impacto da pandemia na nação e em nossa economia”, diz uma nota liberada pelo governo. A Casa Branca apresentou um plano para que o Congresso forneça os recursos adicionais imediatos, incluindo 22,5 bilhões de dólares em financiamento emergencial – mas a medida ainda não foi aprovada.
Se o Congresso não liberar o montante, alerta a Casa Branca, os Estados Unidos não conseguirão dar continuidade ao tratamento da doença – não poderão abastecer os estados com medicamentos nem sustentar a capacidade de testagem do país. E isso acontece justamente no momento em que especialistas preveem o aumento do número de casos, ecoando a onda que já se observa na Europa. “A falha em financiar esses esforços agora terá consequências graves, pois não estaremos equipados para lidar com um aumento [de casos] no futuro. Esperar para fornecer financiamento quando estivermos em alta será tarde demais”, diz a nota da Casa Branca.
Segundo o secretário executivo do Ministério da Saúde, Rodrigo Cruz, não há data definida para revogar a Espin. O governo ainda não terminou o mapeamento de todas as normas que estão ligadas a ela. As pastas ainda precisam escolher quais vão efetivamente cair e quais merecem ser desvinculadas – e, portanto, passarão a valer independentemente da emergência. É o caso da telemedicina, cuja prática o Ministério estuda regulamentar em caráter permanente.
Determinar a revogação da Espin significa o início de uma cruzada jurídico-administrativa: um trabalho complexo, demorado e que envolve muitos atores políticos diferentes. Por isso, enquanto esse projeto não anda, o plano B do Ministério é adiantar a flexibilização do que dá, entregando uma série de revogações. Um exemplo: em função do cenário epidemiológico que considera controlado, o Ministério da Saúde planeja acabar com a proibição de exportações de medicamentos usados em internações hospitalares (por causa da emergência, hoje essa operação é restrita). “Faz sentido eu continuar proibindo a exportação? Talvez esse seja um que a gente já possa revogar”, disse Cruz à piauí.
A pasta solicitou que cada secretaria avalie quais normas já podem ser extintas em breve, e esse movimento está sendo chamado de “revogaço”. A ideia é extinguir as medidas de forma regular, assim que a equipe técnica receber o aval. Dentro do pacote de revogações a jato, por exemplo, a pasta estuda também alterar uma portaria que determina a utilização de máscara para trabalhadores do setor público. Esse é um tema caro ao bolsonarismo e dá gás ao discurso presidencial. Segundo uma pesquisa da Quaest Consultoria, divulgada pela Genial Investimentos, um terço dos participantes que declaram voto no atual presidente querem autorização para não usar máscaras em qualquer ambiente, mesmo os fechados.
Na mesma entrevista em que anunciou um suposto decreto que daria o fim à pandemia, em meados de março, Bolsonaro aproveitou para fazer um aceno à sua base eleitoral. “Realmente não se justifica mais todos esses cuidados no tocante ao vírus, porque praticamente acabou isso aí [a pandemia]. O povo praticamente abandonou o uso de máscara”, disse. E, num duplo twist carpado, afirmou que o “fim da pandemia” aconteceu graças aos esforços do governo para fornecer vacina.
Às vésperas da campanha presidencial, virar a chave da pandemia para a endemia se tornou ponto decisivo para Bolsonaro, como se isso significasse o fim de todos os problemas. Mas não é bem assim. “A endemia tem a vantagem de não estar descontrolada. Mas o que não pode é as pessoas acharem que endemia é bom”, diz o epidemiologista Pedo Hallal. “Endemia quer dizer que a doença está estabilizada naquele patamar, só isso.” A menor severidade da endemia vem do fato de que os países conseguem antecipar o número de casos e manter uma estratégia de enfrentamento constante. Não significa necessariamente que tudo será mais fácil. Guardadas as proporções, a malária, em alguns países da África, continua sendo um dos maiores desafios da saúde pública do mundo – e é uma doença endêmica.
O Brasil alcançou uma boa média de cobertura vacinal contra a Covid, mas alguns estados ainda estão atrasados. No Amapá e em Roraima, apenas 47% da população está completamente imunizada. O objetivo de alcançar 90% de cobertura vacinal no país foi prejudicado pelo movimento antivacina, que boicotou a imunização de crianças. E os avanços na cobertura são lentos. Os especialistas ouvidos pela piauí argumentam que o governo deveria se concentrar nessa campanha de imunização – e não em espalhar desinformação sobre o fim da pandemia. “Ainda temos muita gente não vacinada, o número de casos está aumentando na Europa, temos ambientes cujas condições de ventilação são péssimas. Essa mensagem do ‘acabou’ é muito preocupante”, avalia Marcia Castro, de Harvard. Deixar de falar sobre um problema não significa que ele foi resolvido – nem as causas, nem as consequências. Para ela, dadas as desigualdades e vulnerabilidades do país hoje, é despropositado pensar no fim da emergência. “O Brasil anda meio sem sentido mesmo”, completa Castro, com um riso nervoso.
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