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    Familiares recebem corpo de menino morto no ataque ao hospital Nasser, em Khan Yunis, na faixa de Gaza, em dezembro de 2023 (Belal Khaled/Anadolu via Getty Images)

questões geopolíticas

Para além dos escombros

Ataque brutal do Hamas e resposta desproporcional de Israel eliminam toda chance de paz entre judeus e palestinos

Consuelo Dieguez | 19 jan 2024_13h41
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Versão atualizada e corrigida em 19/02/2024

Com o braço amputado, metade do corpo queimado e sangue escorrendo pela boca, um menino treme de pavor e dor, deitado sobre uma maca, no saguão de um hospital na Faixa de Gaza. Um bebê com o rosto em carne viva chora. Um adolescente com o corpo queimado grita, mas os médicos não têm medicamentos para amenizar o sofrimento. Três irmãos pequenos, com cortes e queimaduras por todo o corpo, se abraçam assustados. Seus pais estão mortos e o menino mais velho, que aparenta ter cerca de 10 anos, tenta consolar os irmãos. Em uma rua, duas meninas descalças e feridas, cobertas de pó, correm de mãos dadas, tentando escapar de bombas.

No corredor dos hospitais lotados, médicos e enfermeiros atendem os feridos até no chão. As cirurgias e amputações são feitas sem anestesia por falta do fármaco. Como a de um menino de 10 anos que precisou amputar o pé, na presença da mãe e da irmã, de 13 anos, que se submeteria em seguida a um procedimento semelhante, também sem anestesia. Com um corte profundo na nuca, outro menino mira o nada com os olhos arregalados. Ao mesmo tempo em que suturam, enfaixam, engessam, amputam, médicos e enfermeiros precisam consolar pais que chegam com os filhos mortos nos braços na esperança de que ainda possam ser salvos. Outras vezes, são as crianças que precisam ser consoladas, não apenas por causa de seus ferimentos, mas pela morte dos pais e irmãos.

Para as crianças de Gaza, a morte é uma realidade palpável: pode acontecer a qualquer instante. Essa consciência do fim inevitável levou um menino a perguntar se estava vivo ou morto ao médico que limpava suas queimaduras. E há os recém-nascidos. Muitos foram encontrados em decomposição nas incubadoras, porque os médicos e paramédicos não tiveram meios de carregá-los no momento do bombardeio. Em vários cantos dos hospitais, se enfileiram corpos embrulhados em lençóis para serem enterrados em covas coletivas, abertas nos espaços onde antes funcionavam escolas, casas, mesquitas e praças.

Cenas como essas são mostradas aos milhares nas tevês e redes sociais, diariamente, há mais de três meses, desde que Israel iniciou sua caçada aos integrantes do Hamas. Num bárbaro ataque no dia 7 de outubro passado, o grupo terrorista palestino matou 1 139 pessoas e sequestrou outras duzentas – inclusive bebês. Os atiradores eliminaram todos que viram pela frente nos kibutzim e numa rave que acontecia a poucos quilômetros da fronteira com Gaza, ao Sul de Israel. Agora, o jornal israelense Haaretz noticiou que a responsabilidade por parte das mortes dos judeus foi das próprias Forças de Defesa de Israel, que confundiram as vítimas com os algozes. Pessoas que estavam nas casas atingidas no kibutz Be’eri afirmaram que suas famílias foram mortas por um tanque israelense que tentava atingir os terroristas[1]. O mesmo jornal afirma que não há comprovação de que tenham ocorrido estupros, como inicialmente o governo de Israel alegou. A polícia israelense pediu que as pessoas que tenham alguma prova da ocorrência de estupros  sintam-se encorajadas a depor, uma vez que as possíveis vítimas desse  crime ou teriam sido mortas ou estariam entre os reféns. A maior dificuldade  para se chegar a conclusões precisas é devido à recusa da polícia israelense de aceitar a participação de investigadores independentes no caso[2].

 

Quando aconteceu o ataque criminoso do Hamas à população civil indefesa, não restou dúvida de que haveria uma forte reação de Israel. O que surpreendeu foi a brutalidade da resposta. Israel invadiu a Faixa de Gaza e, pela primeira vez, o mundo está testemunhando em tempo real tamanho morticínio, registrado por jornalistas e por organizações humanitárias, como Anistia Internacional, Cruz Vermelha, Crescente Vermelho, Médicos Sem Fronteiras.

Tanques, drones, tratores gigantes (buldôzeres) e outros armamentos de última geração já levaram à morte, até meados de janeiro, mais de 24 mil palestinos, sendo que 16 mil (ou 70%) eram mulheres e crianças, segundo a ONU. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, a cada dia, cerca de 160 crianças palestinas morrem na Faixa de Gaza em razão dos ataques israelenses. Mais de 11 mil pereceram em três meses de conflito – número muito superior ao das mais de 500 crianças mortas em dois anos de guerra entre a Rússia e a Ucrânia. De acordo com a organização Save the Children, o número de crianças mortas em Gaza em três semanas ultrapassou o total das que perderam a vida em todos os conflitos bélicos no mundo em 2023. A comparação fica ainda mais medonha com a estimativa de que cerca de 4 mil crianças estão desaparecidas.

Os ataques de Israel também mataram (até 10 de janeiro) mais de 300 médicos e paramédicos, cerca de 40 integrantes da Defesa Civil e mais de 112 jornalistas, sem contar os corpos que estão soterrados sob os escombros. Há ainda 61 mil feridos (incluindo mutilações graves), 8 mil desaparecidos (incluindo as crianças) e, de acordo com a ONU, 400 mil pessoas infectadas por doenças contagiosas, dada a insalubre situação dos campos de refugiados, onde restos humanos e de animais domésticos apodrecem sob as ruínas. “A situação em Gaza é catastrófica e apocalíptica”, disse o vice-presidente da comissão de política externa da União Europeia, Josep Borrell, em entrevista coletiva à imprensa em Bruxelas, em dezembro. “Eu considero o sofrimento humano, com o incrível número de mortes de civis, um desafio sem precedentes para a comunidade internacional.”

Com o bloqueio da entrada de alimentos, a fome e a desidratação – por falta de água potável –, a situação piora a cada dia, ainda mais com a chegada do inverno (entre dezembro e março) e as chuvas, já que as pessoas não têm onde se abrigar. Outro dado dramático do Ministério da Saúde de Gaza: cerca de 3 mil pacientes de câncer devem morrer em pouco tempo devido à interrupção do tratamento. Entre o 1,7 milhão de pessoas deslocadas do Norte para o Sul de Gaza, por imposição de Israel, 15% sofrem de doenças diversas e correm risco de vida por falta de tratamento. No começo de janeiro, as Nações Unidas declararam que Gaza está inabitável. Segundo Josep Borrell, a destruição dos edifícios é maior do que a ocorrida nas cidades alemãs ao fim da Segunda Guerra Mundial.

 

Tudo isso ocorre diante dos olhos das grandes potências – Estados Unidos, Canadá, União Europeia, Rússia e China – e também dos países árabes, que pouco ou nada fazem para conter os ataques. As propostas do Conselho de Segurança da ONU, de um cessar-fogo humanitário, inclusive a que foi formulada pelo Brasil, acabaram vetadas duas vezes pelos Estados Unidos, o aliado número 1 de Israel. Uma proposta de Malta, de criação de corredor humanitário, foi aprovada em novembro e permitiu a entrada de alguns caminhões com comida e medicamentos, mas durou pouco, com a retomada dos combates.

“É como se a comunidade internacional tivesse desistido de uma solução para a Palestina e deixado aquele povo à própria sorte. Como se esmagar o Hamas, mesmo ao custo de dizimar a população civil, fosse dar tranquilidade a Israel. Mas não é isso que vai acontecer”, me disse um veterano diplomata brasileiro, especialista em Oriente Médio, que preferiu não se identificar por não ser voz oficial do Itamaraty. Para ele, mesmo que o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, atinja seu objetivo de acabar com a capacidade bélica do Hamas, Israel continuará vulnerável a ataques como o de 7 de outubro. “Netanyahu não vai acabar com a ideia de resistência palestina. Pelo contrário, ela irá se acentuar. Ademais, Netanyahu pode justificar que quer eliminar um grupo terrorista, mas, do ponto de vista moral, não há como defender a morte de inocentes. Não se pode aceitar o massacre da população civil como um dano colateral. Assim como não se pode aceitar o massacre dos israelenses no dia 7 de outubro.”

Pelo menos até janeiro, as grandes potências ocidentais resistiam em frear Netanyahu, um líder de extrema direita que, tendo sido primeiro-ministro por quinze anos praticamente ininterruptos (fora o período de 1996 a 1999), tornou-se o mais longevo dirigente de Israel. Em vez disso, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França e Alemanha argumentam que Israel está exercendo seu direito à autodefesa. Mas o direito internacional humanitário, embora não proíba os conflitos, estabelece regras mínimas para conter crimes de guerra. Uma delas é a proporcionalidade. Ou seja, um país não pode retaliar de maneira desproporcional ao que sofreu. Não pode atirar em alvos civis, assim como não pode bombardear hospitais, ambulâncias e escolas, mesmo que esses lugares, como alega Israel, estejam sendo usados como escudo pelas forças militares do Hamas.

O advogado Fernando Lottenberg, de ascendência judaica, é comissário da Organização dos Estados Americanos (OEA) para monitoramento e combate ao antissemitismo. Numa conversa por telefone, em dezembro, ele me disse discordar da ideia de que a contraofensiva de Israel estava sendo desproporcional ao ataque impetrado pelo Hamas. “Onde Israel teria quebrado a proporcionalidade?”, perguntou. “Eu falo como advogado constitucionalista internacional. Israel não tem que entrar, matar e degolar e estuprar como o Hamas fez. Mas, pode sim, destruir a infraestrutura do Hamas. Os danos colaterais causados a civis ocorrem ao se tentar destruir essa infraestrutura.” Para Lottenberg, que já foi presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), o que acontece agora em Gaza não foi diferente do que os aliados fizeram na Segunda Guerra, ao bombardearem a cidade de Dresden para destruir a infraestrutura alemã, ou ao que aconteceu em Fallujah, no Iraque, em 2016, “quando uma coalizão de países decidiu enfrentar e derrotar o Estado Islâmico, matando milhares de civis”.

Somente em meados de dezembro, quando o número de palestinos mortos chegou a quase 19 mil, os Estados Unidos começaram a alertar Netanyahu da necessidade de suspender os ataques por estar perdendo apoio internacional. Em 19 de outubro, poucos dias depois de Joe Biden ter pedido moderação ao primeiro-ministro israelense, uma reportagem do Washington Post afirmou que o presidente americano fizera o alerta pensando muito mais no seu próprio futuro político como candidato à reeleição do que na tragédia dos civis palestinos.

O Post ressaltou que Biden só começou a agir depois de ter sido advertido por seus assessores de que ele tem muito a perder com essa guerra. “O custo diplomático pode ser incalculável”, disse ao jornal um funcionário da Casa Branca. “Você quer que os países olhem favoravelmente para os Estados Unidos, que queiram dar apoio e cooperar”, continuou ele. “Mas quando a opinião pública em vários países está tão hostil à guerra, fica muito difícil ganhar apoio em questões que nos interessam.” Os Estados Unidos, diz a reportagem, estão ficando isolados nos fóruns internacionais das Nações Unidas, onde se encontram virtualmente sozinhos na oposição às resoluções do Conselho de Segurança da ONU em favor de um cessar-fogo. Na Casa Branca, cresce o temor de que o governo americano perca relevância na região por causa de sua postura.

A mensagem de Biden para Netanyahu é de que a pressão internacional não é útil nem para os Estados Unidos, nem para Israel. A confirmação dessa premissa veio em uma pesquisa publicada também em 19 de dezembro, feita pelo New York Times. A pesquisa mostrou que a maioria dos americanos, principalmente os mais jovens, é contra a ação de Israel na Faixa de Gaza e ao apoio de Biden à guerra. “Falta um mediador para a guerra no Oriente Médio. A ONU está paralisada”, me disse o diplomata brasileiro que não quis se identificar.

Em novembro passado, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência no governo de Jair Bolsonaro, fez uma palestra na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre o papel dos militares na política brasileira. Depois do evento, numa conversa informal, perguntei a ele como via a atuação de Israel na Faixa de Gaza. Santos Cruz, que comandou as tropas da ONU no Haiti e durante a guerra civil do Congo, se disse impressionado com a ação dos israelenses. “Não é admissível massacrar a população civil”, afirmou. “É como você entrar numa favela do Rio em busca de traficantes e atirar indiscriminadamente contra os moradores, inclusive crianças.”

O que mais impressionou o general foi o fato de Israel, que possui um serviço secreto considerado um dos mais sofisticados do mundo, o Mossad, não ter detectado com antecedência o atentado do Hamas. E ter respondido com um ataque tão violento. “Caçar terroristas da forma como estão fazendo não vai levar a lugar algum. Em casos assim, eles deveriam ter usado a inteligência investigativa da qual se gabam, coisa que não fizeram antes e nem depois da ação do Hamas”, disse. “Estão matando milhares de civis inocentes, não desmontaram a organização nem resgataram os reféns. E o que eles conseguiram até agora? Nada. Apenas promover uma matança indiscriminada.”

O serviço secreto de Israel recebeu informações de que algo poderia acontecer na fronteira com Gaza, mas nenhuma segurança extra foi providenciada para o local. Também não está claro por que as forças israelenses levaram cerca de oito horas para agir contra os terroristas do Hamas no dia 7 de outubro, uma vez que a distância de Tel Aviv a Gaza é de cerca de apenas 70 km. Analistas avaliam que houve muita desorganização da parte dessas forças logo em seguida aos ataques. Agora, o que parece estar em jogo nessa guerra não é tanto a estratégia, mas o fator emocional e a fúria de Netanyahu, em razão de sua falha pessoal no desastre.

 

O historiador brasileiro de origem judaica Michel Gherman, professor da UFRJ, me disse que não é suficiente chamar a investida do Hamas aos kibutzim de “ataque terrorista”, porque a ação adicionou elementos que foram muito além da prática do terror. Seu maior impacto foi mobilizar uma série de medos atávicos dos judeus. O atentado, que resultou no maior assassinato coletivo de judeus desde o Holocausto, “mexeu com o que há de mais duro na memória coletiva judaica: a ideia de que, por serem judeus, eles podem ser destruídos”. Esse sentimento, explicou Gherman, fez com que não só os israelenses se sentissem atacados. “O alvo, na cabeça de grande parte dos judeus, não foi o soldado israelense, mesmo porque no país não há diferença entre civil e militar. O alvo foi a criança judia, a mulher judia. Ou seja, o alvo foram todos os judeus, simplesmente por serem judeus”, disse ele, ressaltando que, embora entenda a disforia judaica, é um crítico dessas ideias, que considera equivocadas.

O agravante – que desorientou muitos observadores – é que os kibutzim atacados são justamente aqueles onde moram pessoas mais identificadas com a esquerda e que, portanto, defendem um acordo com os palestinos e se posicionam contra Netanyahu. São israelenses que apoiam os acordos de paz que começaram a ser construídos nos anos 1990 por Yitzhak Rabin, então primeiro-ministro israelense, e Yasser Arafat, líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).

Assinados na Noruega, os chamados Acordos de Oslo renderam o Prêmio Nobel da Paz de 1994 aos dois líderes e a Shimon Peres, ex-primeiro-ministro e ex-presidente israelense, que também contribuiu para o processo. Mas, em 1995, a perspectiva de entendimento entre os dois povos começou a ser desmontada depois do assassinato de Rabin. O crime foi perpetrado por um colono judeu de extrema direita, inconformado com cláusulas do acordo que previam a devolução aos palestinos de parte do território tomado deles por Israel durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967. A tentativa de paz desmantelou de vez com a morte de Arafat, em 2004, num hospital de Paris, em condições nunca esclarecidas (especula-se até hoje que o líder palestino possa ter sido envenenado).

A narrativa dos israelenses mais conservadores de que as vítimas do ataque do Hamas em 7 de outubro foram justamente pessoas que apoiam a criação de uma ponte com os palestinos acabou influenciando até judeus seculares, de acordo com Gherman. E a tese da direita de que os palestinos não são confiáveis parece ter se amalgamado nos corações e mentes de muitos judeus, mesmo dos que se opõem à direita israelense.

“O que aconteceu agora foi uma salada mista na cabeça de boa parte dos judeus”, disse Gherman. “Foi construída a percepção de que os que fazem ponte com os palestinos são os atacados. Reavivou-se a memória do Holocausto e dos pogroms e desmontou-se a percepção de que Israel é um abrigo seguro para os judeus. Além disso, o 7 de outubro foi entendido como uma prática genocida, dado que alguns kibutzim chegaram a perder um terço de sua população.” Os pogroms (palavra que em iídiche significa “destruição violenta”) do início do século XX na Palestina foram uma reação dos árabes à forte imigração de judeus para a região, então ocupada pelos ingleses. O fato é que, para dar lugar aos recém-chegados, muitos agricultores palestinos foram expulsos de suas terras, o que gerou uma onda de revolta e ataques de lado a lado.

Nos pogroms de 1920 e 1921, em Jafa e Haifa, 47 homens, mulheres e crianças judias, muitos deles recém-imigrados da Europa, foram mortos a facadas e pauladas em confronto com os palestinos, que tiveram 48 pessoas mortas do seu lado. Em 1929, ocorreu outro pogrom, ainda mais traumático, na cidade de Hebron, onde vivia uma antiga comunidade judaica. A confusão foi provocada pelo boato espalhado por um líder palestino de que os judeus pretendiam tomar a Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém. Revoltados e instigados pelas lideranças, palestinos invadiram a cidade de Hebron. O conflito levou à morte de 133 judeus e de 116 árabes, afora os feridos, e ocorreu sob o olhar indiferente da polícia britânica, que controlava a região. Em seguida ao ataque foram criadas as milícias judaicas, que depois se transformariam nas forças militares de Israel.

Além da percepção de que todos os judeus se transformaram em vítimas, o atentado do Hamas, segundo Gherman, também levou à falência a concepção das “três pernas”, disseminada por Netanyahu e seus seguidores. A primeira “perna” era a ideia de que não seria preciso Israel resolver o conflito com os palestinos: bastava administrá-lo. Na perspectiva do primeiro-ministro e da extrema direita israelense, o Hamas é uma milícia local que poderia ser controlada com dinheiro, o que Israel vinha fazendo. Há anos, o grupo se sustentava com dinheiro vindo do Catar, com suporte israelense, entregue em malas para suas lideranças.

A estratégia de Netanyahu ao reforçar o Hamas era enfraquecer a Autoridade Palestina, um órgão provisório reconhecido internacionalmente (exceto pelos Estados Unidos e alguns de seus aliados) como legítimo representante do povo palestino e controlado pelo Fatah, na origem um partido de centro-esquerda[3]. A Autoridade Palestina foi designada para administrar locais da Cisjordânia – a outra parte do território palestino (que foi dividido em decorrência dos vários conflitos com Israel) – e para negociar pelos interesses palestinos na ONU.

Ao manter divididos o Fatah e o Hamas (a segunda perna do tripé de Netanyahu), o primeiro-ministro entendia que seria mais fácil bloquear qualquer entendimento em torno da criação de um Estado palestino, o que ele e a extrema direita israelense rejeitam peremptoriamente. Como o Hamas não aceita a existência de Israel, ao contrário do Fatah, disposto a negociar uma solução de dois Estados, qualquer entendimento fica emperrado. Em dezembro, Netanyahu reforçou sua posição contrária à criação de um Estado palestino, alegando que o ataque do Hamas provou que ele tinha razão em não ceder à pressão internacional para um entendimento com os vizinhos.

A terceira perna do tripé consistia na crença local de que Israel é um país seguro, com eficientes equipamentos antimísseis, o Domo de Ferro, e uma fronteira inexpugnável com Gaza. “O 7 de outubro implodiu com a ideia de parte da população de que tudo se resolve com base na segurança e não na ação política”, disse Gherman. Era essa confortável sensação de segurança que fazia com que a maioria dos israelenses, e não apenas o governo, ignorasse a questão palestina[4].

 

O jornalista Gideon Levy, articulista do Haaretz (“Terra”, em hebraico), um dos mais influentes jornais israelenses, de cunho liberal e forte opositor de Netanyahu, é um crítico da indiferença dos seus compatriotas à causa palestina. Mesmo após o atentado de 7 de outubro, Levy continuou batendo pesado neles. Em 9 de outubro, enquanto Israel ardia de pavor e ódio aos palestinos, em um artigo intitulado Israel não pode aprisionar 2 milhões em Gaza sem pagar um preço cruel, ele escreveu:

Por trás de tudo isso está a arrogância israelita; a ideia de que podemos fazer o que quisermos e nunca pagaremos o preço nem seremos punidos por isso. Continuaremos imperturbáveis. Prenderemos, mataremos, assediaremos, desapropriaremos e protegeremos os colonos ocupados com seus pogroms. […] Dispararemos contra pessoas inocentes, arrancaremos os olhos das pessoas e esmagaremos as suas caras; expulsaremos, confiscaremos, roubaremos, arrancaremos pessoas das suas camas, realizaremos limpeza étnica e, claro, continuaremos com o cerco inacreditável à Faixa de Gaza, e estará tudo bem.

Em outro trecho, referindo-se ao furo no controle da fronteira cercada por tropas armadas e equipamentos bélicos, acrescentou:

Acontece que mesmo o obstáculo mais sofisticado e caro do mundo pode ser transposto com uma velha escavadeira enfumaçada quando a motivação é grande. […] Os palestinos de Gaza estão dispostos a pagar qualquer preço por um momento de liberdade. Israel aprenderá a lição?

O americano John Mearsheimer, celebrado cientista político da Universidade de Chicago, é um dos analistas internacionais que afirmam que o pânico judaico, que encara o atentado do Hamas como uma grande ameaça ao país, é injustificável. Em uma recente entrevista ao podcast americano UnHerd, ele afirmou que o argumento de Israel de que precisa bombardear Gaza porque o país está sob ameaça do Hamas não se sustenta. “Esse não é um argumento sério. Você acredita realmente que o Hamas é uma ameaça a Israel?”, questionou Mearsheimer.

O temor, segundo o cientista político, se justificaria se o Hamas fosse um Estado lutando nas mesmas condições que Israel. “Mas o Hamas não é um Estado. É um grupo de resistência que opera em parte da Palestina que está dentro da grande Israel. Não é uma relação de dois países.” O caso ali “é que temos uma grande Israel, militarmente o Estado mais forte da região e o único a possuir armas nucleares, e temos o Hamas, que é um grupo de resistência”. Mearsheimer continuou sua crítica, dizendo que não se pode matar milhares de palestinos sob a alegação de que se está evitando um novo Holocausto. “O que está havendo? O Hamas não é o novo Holocausto. Essa ameaça foi inflacionada pelo Ocidente, principalmente pelos britânicos e pelos Estados Unidos, para justificar o que Israel está fazendo em Gaza.”

Na mesma entrevista, concedida depois de três reféns israelenses terem sido mortos pelas próprias forças de Israel em Gaza, Mearsheimer afirmou que o país não tem interesse em pagar um preço alto para resgatar os reféns, que seria a negociação com o Hamas. “Por essa razão, eles foram mortos sub-repticiamente.” O entrevistador perguntou: “Você quer dizer que eles foram assassinados?” Mearsheimer não titubeou: “Podemos dizer que sim.” É o que ele chama de “doutrina Hannibal” de Israel, de “canibalizar” seus próprios cidadãos para evitar qualquer negociação com os palestinos.

 

A chegada de Netanyahu ao poder, em 1996, foi um retrocesso na tentativa de entendimento com os palestinos. O primeiro-ministro reforçou o apoio aos colonos israelenses na Cisjordânia, avançando sobre a porção de terra dos palestinos, que foram submetidos a situações humilhantes de revistas e prisões, inclusive de crianças, que reagiram atirando pedras nos soldados e colonos judeus.

Em um alentado perfil de Netanyahu escrito em 1998, o jornalista americano David Remnick, diretor de redação da revista New Yorker, ouviu vários contemporâneos do primeiro-ministro. Um deles foi o líder trabalhista Shimon Peres, que foi derrotado por Netanyahu na eleição para premiê, depois de incluir em sua campanha o plano de acelerar os Acordos de Oslo. Em conversa com Remnick, Peres disse:

Perdemos tanta coisa, e em troca de nada. […] A única preocupação de Netanyahu é com a sua própria coalizão. Ele vive com medo de perder o poder – esta é sempre sua maior prioridade. Enquanto isso, perdemos a confiança que conquistamos, perdemos o mundo árabe, perdemos o respeito conquistado no resto do mundo. Tudo isso nos faz parecer uma nação estranha. Obter a paz e não seguir em frente é estranho.

Remnick escreveu que os inimigos de Netanyahu o consideravam “um político incompetente, sem imaginação, cínico, com um talento singular para se conservar no cargo”. E ressaltou a conversa que teve com um importante político e diplomata israelense, Uri Savir, assessor de Rabin nos Acordos de Oslo, que lhe disse: “O mais importante é guiar Israel na direção de uma política mútua de dissuasão, porque Netanyahu não acredita na paz real.”

Para entender a intransigência de Netanyahu, hoje com 74 anos, em relação a estabelecer qualquer negociação com os palestinos, é preciso falar de seu pai. Benzion Netanyahu, que morreu em 2012, aos 102 anos, foi um historiador controverso, ultraconservador e uma das figuras mais influentes da política israelense desde a fundação do Estado de Israel, em 1948. Benzion foi secretário particular de Vladimir Ze’ev Jabotinsky, o líder do movimento de direita Revisionistas Sionistas, morto em 1940, que já antes da divisão da Palestina defendia que Israel ficasse com uma porção grande do território, para dar um lar aos judeus europeus perseguidos pelo antissemitismo. A ideia da necessidade de um lar para os judeus seria reforçada depois do trauma do Holocausto. “Havia uma culpa das grandes potências por terem permitido o extermínio de cerca de 6 milhões de judeus promovido pelos nazistas. Ao mesmo tempo, por trás disso, havia também a intenção racista de se livrar deles, retirando-os da Europa e dos Estados Unidos, para onde muitos haviam emigrado para fugir do genocídio”, disse um outro diplomata brasileiro, que hoje atua em um organismo internacional.

Os revisionistas consideravam que os trabalhistas judeus, então liderados por David Ben Gurion, estavam abrindo mão muito facilmente de uma porção maior de terra. Os revisionistas defendiam a máxima expulsão da população originária da Palestina e a máxima apropriação territorial, buscando que o Estado de Israel se estendesse até uma parte da Jordânia. O seu lema era: “O Jordão tem duas margens: a de cá é nossa, a outra também.”

 Ze’ev Jabotinsky era ucraniano e um anticomunista férreo. Tanto que, após a Revolução Russa (ocorrida em 1917), colocou a Legião Judaica, um grupo armado de milicianos que liderava, à disposição dos fascistas ucranianos para combater os comunistas. Isso, apesar de a extrema direita ucraniana preconizar a morte dos judeus. Em 1935, depois de disputas internas, Jabotinsky deixou a Organização Sionista Mundial[5] – criada no fim do século XIX pelo jornalista austro-húngaro Theodor Herzl para lutar pela criação de um Estado judeu na Palestina. A proposta de Herzl era dura com relação aos palestinos. Em seu diário, ele escreveu[6], em 12 de junho de 1895: “Tentaremos expulsar a miserável população local para fora das fronteiras. […] Tanto o processo de expropriação como de expulsão dos pobres deve ser executado de maneira discreta e circunspecta.”

Em 1917, o barão Lionel Walter Rothschild, banqueiro judeu e um dos homens mais ricos e influentes da Inglaterra, dono de uma cadeira no Parlamento, e a federação sionista britânica convenceram lorde Arthur Balfour, aliado de Rothschild no Partido Conservador, secretário de Relações Exteriores e assessor do então primeiro-ministro britânico Lloyd George, emitir uma declaração que ficou conhecida como Declaração Balfour – anunciando o apoio da Inglaterra ao estabelecimento “de um lar nacional para o povo judeu na Palestina”. À época, a Palestina era uma região do Império Otomano, com uma pequena população judaica. A partir de então, Rothschild – líder da Federação Sionista Britânica – intensificou a compra de terras na região para colonos judeus, que por vezes desalojavam à força os antigos proprietários e dando início a uma série de conflitos entre as duas populações, que até então viviam em harmonia[7].

Ao fim da Primeira Guerra Mundial, com a derrota da Tríplice Aliança – Alemanha, Áustria-Hungria e Itália (que se desligou e 1915) –, que tinha como aliado o Império Otomano, que se estendia da Turquia até parte do Oriente Médio, os vencedores do conflito, Inglaterra e França, trataram de dividir o butim. Em 1920, após uma conferência na Riviera Italiana, foi assinado um acordo entre as potências estabelecendo que a França ficaria com o domínio do Líbano e da Síria, e a Inglaterra – que já controlava o Canal de Suez, no Egito – ficaria com o Iraque e a Palestina. A cidade de Jerusalém, por ser berço das três maiores religiões monoteístas – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – ficaria sob controle internacional, mas com mandato britânico. 

Foi somente após a Segunda Guerra, com o mundo ainda em choque com o Holocausto, que a comunidade internacional, por meio da recém-criada ONU, autorizou a criação de um Estado judeu. A proposta de partilha da região palestina, que começou a ser negociada em 1947, foi assinada no ano seguinte, quando o brasileiro Osvaldo Aranha presidia as Nações Unidas. Os judeus a aceitaram de imediato, mas os árabes e palestinos a rejeitaram. Por uma razão compreensível. Os palestinos, que eram 70% da população, ficariam com 42,9% do território. Já os judeus, que representavam 30% da população local e ocupavam 6% das terras, ficariam com 56,5% (o restante do território – 0,7% – era referente à cidade de Jerusalém), de acordo com a ONU[8]. Em 30 de novembro de 1947, um dia depois da aprovação do Plano de Partição da Palestina[9], eclodiu uma guerra civil entre judeus e palestinos que durou até 1949. O plano seria oficializado em maio de 1948.

Foram os revisionistas, que no passado tiveram líderes como Jabotinsky, os responsáveis por começar a tocar o terror na região, antes mesmo da saída dos ingleses. Na madrugada de 9 de abril de 1948, dois grupos paramilitares sionistas, o Irgun e o Lehi, invadiram a aldeia de Deir Yassin, mataram cerca de cem moradores e levaram outros tantos, inclusive grávidas, para Jerusalém na carroceria de um caminhão para serem mortos aos olhos do público, conforme relato dos jornais britânicos da época. O caso ficou conhecido como o massacre de Deir Yassin. O Irgun – fundado, entre outros, por Jabotinsky, a quem o pai de Netanyahu assessorou – era, então, comandado por Menachem Begin. O Lehi era liderado por Yitzhak Shamir. Os dois, mais tarde, governariam Israel. O Irgun foi um precursor do Likud[10] – o partido de direita que controla o país há décadas e hoje é controlado por Netanyahu.

No dia seguinte à saída dos britânicos, em 14 de maio de 1948, sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos, a situação se agravou. A partir de então, se acentuou a expulsão em massa dos palestinos das terras destinadas a Israel. Os palestinos chamam essa diáspora de Nakba, ou “a catástrofe”. Apavorados com a violência, mais de 700 mil fugiram ou foram expulsos da região. Até 1949, quando aconteceu o armistício entre os dois povos, 771 localidades palestinas foram invadidas e ocupadas, e 531 deixaram de existir. A ação foi tamanha que em 11 de dezembro de 1948 a ONU admitiu ter havido limpeza étnica na Palestina e aprovou a Resolução 194, determinando que os palestinos, por direito, deveriam voltar a suas terras. Mas a resolução jamais foi cumprida por Israel.

Desde então, os dois povos vivem em conflitos permanentes. Israel venceu três guerras contra os árabes. Na primeira, em 1956, atacou o Egito de surpresa para defender os interesses dos franceses e dos britânicos no Canal de Suez, passagem que havia sido nacionalizada pelos egípcios naquele ano. A segunda foi a guerra dos Seis Dias, em 1967, quando Israel atacou o Egito de surpresa. A Síria, a Jordânia e Iraque ficaram ao lado dos egípcios.  Israel foi apoiado pelos Estados Unidos[11] e avançou sobre os territórios árabes – a Península do Sinai, no Egito, as Colinas de Golan, na Síria, Gaza e parte da Cisjordânia. Uma nova resolução da ONU, a 242, determinou a saída de Israel das áreas ocupadas, mas também não foi cumprida (após a guerra, Israel ficou com 75% do território e, a Palestina, com 25%, segundo a ONU). Até hoje, Israel não obedeceu a nenhuma das treze resoluções da ONU determinando a devolução de áreas aos palestinos. Em represália à ocupação dos territórios, surgiu em 1964 a Organização para a Libertação da Palestina, cujos ataques terroristas provocaram a morte de dezenas de israelenses, o que dificultou ainda mais o diálogo entre as partes.

Em 1973, um novo conflito, a Guerra do Yom Kippur, também vencida por Israel, provocou uma crise econômica mundial. O Egito e a Síria avançaram sobre os territórios perdidos durante a Guerra dos Seis Dias, tentando recuperá-los. Israel recorreu ao apoio dos Estados Unidos e de outras nações ocidentais, o que levou as nações árabes a reagirem, aumentando o preço do petróleo e levando muitos países à quebradeira, entre eles o Brasil. A Península do Sinai só foi devolvida ao Egito em 1979, depois de um acordo do governo do país com os israelenses. No acerto, o Egito passou a ser o primeiro país árabe a reconhecer a existência de Israel. As Colinas de Golan continuam ocupadas até hoje, apesar de pertencerem à Síria. Embora tenha se retirado de Gaza, Israel fez um cerco pesado à região, mantendo os palestinos praticamente encarcerados e com as rotas por terra, mar e ar controladas militarmente pelas forças israelenses.

A esperança de solução veio com os acordos em 1993 e 1995, assinados em Oslo. A OLP abriu mão de uma solução armada para o conflito e se transformou em um grupo político. Em contrapartida, parte das terras tomadas na guerra de 1967 seria devolvida aos palestinos. Com isso, a população palestina expulsa de seu território e que vive em campos de refugiados no Líbano e na Jordânia poderia voltar a sua terra. Com o assassinato de Rabin em 4 de novembro de 1995 e a morte de Arafat nove anos depois – os dois articuladores dos tratados de Oslo –, as esperanças de paz ruíram.

Com a demora em se cumprir os acordos de devolução do território, surgiram novos grupos palestinos armados, reiniciando os ataques terroristas: o Hezbollah, no Sul do Líbano, e o Hamas, em Gaza. Israel, por sua vez, endureceu seu cerco aos territórios ocupados, o que resultou em duas intifadas – ou revoltas populares palestinas[12]  – em 1987-1993 e em 2000-2005. Na primeira, os palestinos lutaram com paus e pedras; na segunda, contaram com a participação de grupos armados. Já a Autoridade Palestina, que havia se comprometido com a paz, embora nunca tenha recebido de volta as terras prometidas, se enfraqueceu. Para piorar, Israel continuou avançando sobre a Cisjordânia, o que desmoralizou ainda mais o Fatah.

O ataque do Hamas, em 7 de outubro, com a consequente reação de Israel, pulverizou as chances de entendimento, exacerbou a tensão no Oriente Médio e recrudesceu o ódio entre árabes e judeus. Para complicar o quadro, o Houthi, grupo de resistência do Iêmen, em solidariedade aos palestinos, passaram a bloquear as navegações no Mar Vermelho, dificultando o comércio mundial com Israel. O temor, agora, da comunidade internacional, é que o conflito se espalhe por todo o Oriente Médio. Hoje, com a violência da guerra, observadores acham quase impossível que se concretize a criação de dois Estados e que a paz se instale na região. “O ódio é muito grande. A nova geração de crianças palestinas crescerá com sede de vingança”, disse um diplomata brasileiro.

 

Palestino naturalizado brasileiro, Jawdat Abu-El-Haj vive no Brasil desde 1986 e é professor de políticas públicas na Universidade Federal do Ceará (UFC). Por ter família em Jerusalém, mantém conversas frequentes com pessoas da região, inclusive israelenses, tentando entender as consequências do atual conflito, e participa aqui de discussões com estudiosos árabes e judeus em busca de diálogo. Para Abu-El-Haj, tanto o governo de Israel quanto o Hamas têm responsabilidade na tragédia recente, e uma negociação entre esses dois extremos será praticamente impossível.

Numa conversa por telefone, em dezembro, ele lembrou que, em meados de 2022, o Hamas e a extrema direita israelense passaram a dominar as agendas políticas dos dois povos. “De um lado, a extrema direita israelense avançava contra o estado de direito, com Netanyahu querendo mudar as regras da Suprema Corte, sacrificando a democracia pela supremacia judaica, utilizando-se da violência bruta contra os palestinos”, disse. “De outro, o Hamas optava pela linha militar, rompendo com a unidade interna e formando alianças externas com outros grupos, como o Hezbollah.” Era questão de tempo para que se desse uma colisão entre as duas forças, submetendo os dois povos à violência brutal.

A catástrofe humana e política mostra o fracasso dessas duas vias – a do Hamas e da extrema direita israelense. “Israel nunca enfrentou uma crise existencial de tanta intensidade. O mesmo ocorre com os palestinos em Gaza, submetidos ao mais cruel ataque militar da história do Oriente Médio e abandonados pela comunidade internacional, os países árabes e o tal eixo de resistência”, disse o professor. “Se para os judeus o ataque do Hamas ativou a memória do Holocausto e dos pogroms, para os palestinos a reação israelense ativou o trauma da Nakba, a catástrofe de 1948. Essa guerra estourou todos os parâmetros de civilidade. Não é mais uma luta política. É bandidagem.”

O Hamas surgiu como um grupo político e paramilitar em 1987, depois do início da Primeira Intifada, no campo de refugiados Jabâliyah, em Gaza. Seu fundador, o imã e xeque Ahmed Yassin, quase cego e tetraplégico desde os 12 anos, não era um radical e mantinha diálogo com vários rabinos. Em 1973, a organização que viria a se chamar Hamas era conhecida como Centro Islâmico, associado à Irmandade Muçulmana, sediada no Egito. O Centro Islâmico se limitava a prestar assistência social aos moradores de Gaza. A partir de 1987, começou a se envolver cada vez mais no conflito israelense-palestino.

De acordo com o governo de Israel, Ahmed Yassin autorizou vários atentados, como a explosão de um homem-bomba em uma discoteca, em 2001, que matou 21 jovens, e mais dois atentados em 2002, em um hotel e um ônibus. Depois disso, Israel iniciou a construção de um muro em torno da Faixa de Gaza, para conter ataques desse tipo. Não adiantou. O Hamas passou a disparar mísseis contra Israel. Em 2004, Yassin foi assassinado, atingido por mísseis de um helicóptero do Exército israelense. Estima-se que 200 mil pessoas tenham comparecido a seu funeral.

A morte de Yassin fez crescer a radicalização. Seu lugar na organização foi ocupado Ismail Haniyeh, o líder político que hoje vive no Catar, e por Yahya Sinwar, um ultrarradical responsável pela construção do braço militar do Hamas e que vive em Gaza. Sinwar passou 22 anos nas prisões israelenses e foi solto em 2011, em troca da libertação do soldado Gilad Shalit. É considerado um sujeito cruel, frio, responsável não apenas pela morte de israelenses como também de palestinos contrários aos seus planos. É apontado como o idealizador do atentado de 7 de outubro e, especula-se, tomou a decisão sem consultar as lideranças políticas do Hamas que hoje vivem no Catar.

O professor Abu-El-Haj, da UFC, contou que o ataque ocorreu justamente quando o Hamas estava se enfraquecendo em Gaza, por causa dos seus métodos radicais. Além disso, os moradores começaram a perceber que muitas lideranças vinham enriquecendo e se mudando para o Catar, onde podem levar uma vida abastada. De qualquer forma, foi o Hamas, com dinheiro do Catar, que construiu hospitais, universidades, praças e prédios em Gaza. “O Catar sonhava em criar uma espécie de Cingapura em Gaza”, comentou Abu-El-Haj. Para ele, uma das motivações do Hamas no 7 de outubro era sequestrar soldados israelenses para trocá-los por palestinos presos, principalmente os da Cisjordânia, e assim aumentar sua popularidade nessa região, enfraquecendo o Fatah, que governa o território. O problema, segundo o professor, é que, com o estouro da fronteira, várias outras milícias de Gaza entraram em Israel, e a situação saiu do controle, resultando no maior massacre já visto no país. Além disso, o ataque desmontou as negociações com a Arábia Saudita, que estava prestes a reconhecer o Estado de Israel. Se esse reconhecimento ocorresse, na visão do Hamas, os palestinos ficariam ainda mais isolados na sua luta.

O presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), criada em 1979, Ualid Rabah, é menos complacente do que Abu-El-Haj sobre o que ocorre agora em Gaza. Rabah tem 57 anos e é filho de imigrantes palestinos que vieram para o Brasil nos anos 1960. “Estamos falando de limpeza étnica. Exatamente o que ocorreu em 1947 e 1948”, me disse ele, sentado em sua mesa de trabalho, com um retrato de Yasser Arafat afixado na parede ao fundo. “Quantas crianças e mulheres estão sendo mortas? Quantas delas estão grávidas? Isso é acabar com o futuro dos palestinos.”

Rabah admitiu que hoje falta liderança na Palestina para enfrentar a questão. A vitória do Hamas em Gaza, nas eleições legislativas de 2006, contra o Fatah, que ele apoia, foi muito negativa, porque dividiu e enfraqueceu os palestinos. “O erro do Fatah foi permitir várias candidaturas do partido nas diversas localidades, o que pulverizou os votos de seus candidatos, beneficiando o Hamas.” Já o Fatah está desgastado, seus líderes estão velhos e ultrapassados e já não contam tanto com o apoio do povo da Cisjordânia, que acha que eles cederam tudo a Israel e ainda perderam território para os colonos judeus. “Nós temos um problema que é a falta de conciliação das forças palestinas para a construção de um governo de unidade que enfrente o governo de Israel na arena local e internacional”, afirmou. “Falta uma liderança para criar legitimidade.”

E por que não surgem novas lideranças? A principal razão, disse Rabah, é que o líder mais moderado, Marwan Barghouti, de 64 anos, está preso há quase 22 anos. Os palestinos o chamam de “Mandela palestino”. Além disso, boa parte da elite intelectual e política palestina foi morta ou está exilada. Do lado de Israel também não existem lideranças capazes de iniciar um entendimento. “A sociedade israelense e suas lideranças se tornaram tão fascistas que, nesse momento, é Israel que elimina qualquer possibilidade de diálogo”, afirmou Rabah.

 

A intransigência de Netanyahu, com o apoio dos Estados Unidos, em discutir um cessar-fogo em Gaza vem desmoralizando a ONU. Um diplomata brasileiro que participou das reuniões do Conselho de Segurança das Nações Unidas, quando o Brasil ocupava a presidência temporária do órgão, em outubro, contou que os representantes americanos adiavam o quanto podiam a decisão pelo cessar-fogo. E até hoje a opção pelo cessar-fogo não foi aceita por causa do veto americano, mesmo com o desgaste que isso está causando a Biden e aos Estados Unidos.

“Netanyahu sempre enfrentou os Estados Unidos. Ele rejeitou a proposta de paz com os palestinos, apresentada por Barack Obama, em 2011, desprezou o presidente americano e foi defender suas teses anti-Hamas no Congresso americano. Para completar, deu uma entrevista aos jornalistas em que afirmou que a paz ‘baseada em ilusões não ia durar’”, lembrou o diplomata. “Acho que existe essa falta de disposição dos judeus de cederem às negociações porque, no fundo, eles culpam o Ocidente pelo Holocausto e pensam: ‘Como nos deixaram sozinhos na Segunda Guerra, agora vamos resolver sozinhos nossos problemas.’”

Foi algo assim que Netanyahu, depois de sua vitória nas eleições, em 1996, disse ao mundo durante uma visita ao então presidente Bill Clinton, que pediu a continuidade dos Acordos de Oslo. Clinton não escondia a sua tristeza com a morte de Rabin, seu grande amigo e orientador, nem a torcida que fazia pela vitória de Peres nas eleições. Com Netanyahu, suas relações eram frias, como observou a reportagem da revista New Yorker. “Claro que Clinton adorava Rabin”, Netanyahu costumava dizer. “Os americanos sempre nos adoram quando abrimos mão de tudo sem obter nada em troca.”

A análise de diplomatas brasileiros é que, para os Estados Unidos, a questão de Israel, assim como a de Cuba, tem muito mais a ver com a política interna do que com a externa. “Os cubano-americanos e os conservadores cristãos e judeus pressionam as grandes lideranças do país. Por isso, Biden tem baixado a cabeça para Netanyahu”, comentou um diplomata. Ele lembrou que uma das razões apontadas pelos democratas para a derrota de Al Gore, nas eleições de 2000, foi o governo anterior (do democrata Clinton) ter devolvido para o pai, em Cuba, o menino Elián González, o único sobrevivente de um naufrágio de balsa na costa americana. A decisão enfureceu os cubano-americanos na Flórida. Agora, com essa lembrança em mente, Biden não quer correr o risco de enfurecer a poderosa comunidade judaica americana.

O comportamento dos Estados Unidos na ONU irritou o presidente Lula, que insistia publicamente num cessar-fogo, afirmando que era inadmissível a matança de civis. O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, chegou a ocupar a presidência rotativa do Conselho de Segurança junto com o embaixador brasileiro na ONU, Sérgio Danese, para deixar claro o peso que a questão tem para o Brasil.

Depois de vários pedidos de adiamento dos americanos para votar o cessar-fogo humanitário, Lula – “com sua experiência de sindicalista”, como me disse um diplomata brasileiro que participou das reuniões – deu um basta e avisou a Vieira e a Danese: “Chega de enrolação. Vamos colocar para votar porque os Estados Unidos não querem negociar nada e vão votar contra. Eles só querem postergar a decisão. E nós temos que deixar claro que são eles que estão inviabilizando um cessar-fogo.” Depois disso, a China, que assumiu em seguida a presidência do Conselho de Segurança, também pediu um cessar-fogo temporário. Novamente os Estados Unidos vetaram a proposta.

Para os diplomatas brasileiros, contudo, o impasse não é só provocado pelos americanos. Também a Rússia não tem interesse na medida, por causa da guerra na Ucrânia. Os países árabes estão mais preocupados em marcar posição na Assembleia Geral da ONU, sem efeito deliberativo, e incluir na proposta de cessar-fogo alguns pontos que fortaleçam sua influência na região. Já a China, de olho em Taiwan, que elegeu no dia 13 de janeiro passado um presidente pouco simpático a Pequim, não quer se meter no imbróglio.

O comportamento do Brasil levou o embaixador de Israel no país, Daniel Zonshine, a fazer uma desfeita ao presidente Lula e ao governo brasileiro, em desrespeito às regras diplomáticas. Reuniu-se no Congresso com parlamentares de direita e com o ex-presidente Jair Bolsonaro, a fim de discutir os efeitos do ataque do Hamas sobre a população dos kibutzim e pedir solidariedade. André Lajst, presidente-executivo da StandWithUs Brasil, ONG de perfil conservador dedicada à difusão da educação judaica no Brasil, me disse que acha importante que o mundo olhe também para o drama dos israelenses e considere a situação de Israel após o ataque de 7 de outubro. “Além das mortes violentas, dos reféns levados para Gaza, há uma questão de segurança nacional”, disse. “Como o Hamas prometeu atacar Israel novamente, os moradores perto de Gaza e da Cisjordânia tiveram que ser deslocados. São milhares de pessoas que não podem voltar para casa enquanto a situação não se resolver. É preciso voltar à origem de todos os conflitos para entender o temor de Israel em relação aos palestinos.” Para Lajst, os palestinos elegeram o grupo terrorista Hamas em Gaza. “Como eles podem esperar que o governo de Israel negocie com terroristas?”

A comunidade judaica brasileira de direita nunca foi simpática ao PT, por causa da afinidade do partido com a causa palestina. Uma crise entre Brasil e Israel quase ocorreu após os bombardeios israelenses a duas escolas da ONU em Gaza, em 2009, quando o então assessor especial para Assuntos Internacionais de Lula, o historiador Marco Aurélio Garcia, fez uma crítica inflamada aos israelenses, chamando o ataque de “terrorismo de Estado”. A embaixada de Israel reclamou com Lula.

Em uma entrevista à piauí, no mesmo ano, Garcia não voltou atrás no que disse, mas se explicou: “Se um cara entra aqui com um cinturão, detona uma bomba e mata dez pessoas, é chamado de terrorista. Mas e quando Israel bombardeia duas escolas da ONU e mata dezenas de crianças não é terrorismo? Se não é terrorismo, então é crime de guerra. Temos que parar com essa diplomacia de punhos de renda. Os judeus têm que perder o hábito de achar que qualquer crítica é uma manifestação contra a existência de Israel.” O assessor especial foi além. “Se querem reconstituir a história, estou disposto a reconstituir. É a minha profissão. Israel apoiou durante todo o tempo o regime de apartheid da África do Sul. Apoiou todo o tempo a ditadura de Somoza, na Nicarágua, e a de Salazar, em Portugal. Não venham agora querer bancar os bacanas para o meu lado.”

Os sul-africanos nunca perdoaram esse apoio ao apartheid. Tanto que o governo da África do Sul, em 29 de dezembro passado, entrou com um pedido na Corte Internacional de Justiça, em Haia, de punição de Israel por estar cometendo “atos genocidas em Gaza”. O governo brasileiro, no começo de janeiro, decidiu apoiar a iniciativa sul-africana de “acionar a Corte Internacional para que Israel cesse imediatamente todos os atos e medidas que possam constituir genocídio ou crimes relacionados”.

A Corte de Haia já está investigando crimes contra a humanidade cometidos tanto pelo Hamas quanto por Israel, mas não fala em genocídio. Em novembro, Lula já havia feito uma crítica pública a Israel, chamando o massacre dos palestinos de genocídio. A Confederação Israelita do Brasil reagiu à comparação, lamentando o uso da palavra para definir as ações de Israel em Gaza.

O advogado Fernando Lottenberg me disse estar preocupado com o aumento do antissemitismo por causa da guerra. “O antissemitismo não é uma ameaça apenas aos judeus, mas às sociedades onde vivem judeus”, afirmou. “Você já viu algum russo ser atacado fora da Rússia por causa da Guerra da Ucrânia? Mas com os judeus isso está acontecendo. As sinagogas estão sendo pichadas, pessoas estão sendo hostilizadas nas ruas, estudantes judeus estão sendo atacados em restaurantes universitários nos Estados Unidos.”

Para Lottenberg, os governantes deveriam ajudar a combater o ódio aos judeus. Em dezembro, antes de o Brasil apoiar a proposta da África do Sul, perguntei o que ele achava da posição de Lula em relação ao conflito. Embora esteja impedido de falar de governos, pelo cargo que ocupa na OEA (de comissário para monitoramento do antissemitismo), ele me disse que achava que o governo brasileiro acabou moderando o tom contra Israel e equilibrando o discurso. “O presidente Lula andou conversando com o presidente de Israel, Isaac Herzog. As relações entre os dois países também melhoraram após a saída dos brasileiros que estavam em Gaza. Eu acho que o governo brasileiro tem a pretensão de ser um interlocutor de todas as partes. O Brasil não é um ator de primeira grandeza para influenciar A ou B, mas tem contatos com todos. Para isso é preciso uma linha mais equilibrada e acho que é isso que o governo brasileiro está buscando.”

 

A saída dos brasileiros de Gaza foi um momento tenso entre Brasil e Israel. Bolsonaro tentou se aproveitar da situação, gabando-se de que tinha sido ele, graças a seus contatos com o embaixador israelense no país, o responsável por agilizar o processo. Na verdade, os palestinos retirados da região foram levados a abrigos para refugiados da Convenção Batista Brasileira, associada à Aliança Batista Mundial, da qual participam 130 países. Foi o governo que pediu apoio à Convenção Batista Brasileira, que no ano passado cuidou de refugiados do Afeganistão.

O conflito acabou mexendo com a comunidade cristã brasileira, principalmente os evangélicos pentecostais e neopentecostais, cuja interpretação da Bíblia diz que a segunda vinda de Jesus só ocorrerá depois que todos os judeus retornarem à Terra Santa – uma ideia difundida pelos cristãos conservadores americanos. Por isso, muitos pastores tomaram partido de Israel. Um deles, importante integrante da Assembleia de Deus, me disse, sem titubear: “Quero que os palestinos desapareçam.” Ele preferiu não se identificar por ter tido recentemente problemas com a Justiça, já solucionados.

 Os batistas não seguem essa linha. André Simão, presidente da Comissão para a Liberdade Religiosa da Aliança Batista Mundial, me falou da sua preocupação com essa visão de muitos evangélicos a respeito dos palestinos, o que é uma forma de perseguição religiosa. “É uma falta de conhecimento bíblico”, disse. “Vários teólogos, hoje em dia, explicam que Deus fez promessas ao povo de Israel e não ao governo de Israel.” Simão explicou que muitas igrejas cristãs tradicionais defendem a paz para todos. “O chamado de Deus não era para abençoar um só povo. Mas todos os povos da Terra. Está em Gênesis, capítulo 12.” Mas a paz parece estar cada vez mais distante. O embaixador aposentado Marcos Azambuja interpretou assim a situação entre Israel e Palestina: “Há 65 anos eu acompanho esses conflitos. Sempre que um lado faz um horror, o outro lado, em vez de ter a vantagem moral de ter sido vítima, faz um horror maior ou equivalente.”

A grande pergunta é como acabará este conflito. “O que Israel pretende fazer? Ocupar Gaza? Isso vai custar uma fortuna para os cofres do país, que já é abastecido todos os anos com 4 bilhões de dólares dos Estados Unidos”, me disse um consultor de uma empresa americana de análise de risco geopolítico, com filial no Brasil. Outra saída seria a ONU colocar tropas em Gaza. Tudo isso, segundo o consultor, tem um custo enorme, já que a revolta palestina só tende a aumentar. “Mas a verdade é que, infelizmente, os clientes não estão preocupados com o destino dos civis palestinos”, afirmou. “Eles só estão preocupados com o risco de a crise se alastrar e afetar seus investimentos. Por isso, nenhuma grande força econômica vai pressionar para conter a matança dos civis. Parece que, para as forças econômicas, a vida dos palestinos não vale nada. A pressão virá da opinião pública.”

No drama Sansão agonista, do poeta inglês John Milton, depois de ser traído por sua amante, Dalila, preso e cegado pelos filisteus, o personagem bíblico lamenta: A promessa era que eu deveria libertar Israel do jugo filisteu! E o que fez esse grande libertador? Se perguntas por ele, está na roda entre escravos, cego em Gaza, submetido ao jugo filisteu. Sansão acaba recuperando a força, destrói o templo de Dagon, deus dos filisteus, mas morre junto com seus inimigos.

Perguntei ao historiador Michel Gherman se ele via paralelo entre essa narrativa bíblica e o que se passa hoje em Israel. Ou seja, Israel sai vencedor, mas, moralmente, sai desmoralizado. “Acho que todos os lados estão cegos nesta guerra”, respondeu. “O que nós estamos vendo é o embate entre Netanyahu, com a arrogância típica de um narcísico, e o ódio de Yahya Sinwar, o líder armado do Hamas, típico de um psicopata que acredita que seu ódio pode servir de projeto nacional.” Ele, contudo, vislumbra nessa tragédia alguns pontos capazes de promover certa esperança. “O primeiro é que está clara a falência do enfrentamento e do confronto dos dois lados, que só produz muita morte. A saída tem que ser política e começam a surgir vozes moderadas nesse sentido”, disse. “Não adianta Israel achar que vai eliminar o Hamas, porque ele vai continuar a existir, se não em Gaza, na Cisjordânia ou no Catar. E não adianta o Hamas achar que vai conseguir algum avanço para os palestinos sequestrando e matando israelenses.”

O segundo ponto é que o mundo já percebeu que tem que fortalecer a Autoridade Palestina para enfraquecer o Hamas, o exato contrário da política de Netanyahu. “O Hamas nunca falou de paz. Ele fala de trégua. Mas não fala sobre dois Estados e trata a Autoridade Palestina como funcionário de segurança de Israel. É preciso que o mundo entenda que a Autoridade Palestina impediu, nesses trinta anos, que houvesse na Cisjordânia um bando terrorista como o que se tem em Gaza.” Gherman não tem dúvida de que só um novo governo em Israel poderá perceber que a Autoridade Palestina é um parceiro. A alternativa, para os dois lados, é só esta: livrar-se de Netanyahu e do Hamas. “O ódio só será aplacado quando pessoas sensatas dos dois lados decidirem romper com a polarização e sentarem para negociar.”


[1] O texto original dizia “tanques israelenses”.

[2] Trecho novo, que não havia no texto original.

[3] Trecho alterado. Foi acrescentado que o Fatah era na origem um partido de centro-esquerda.

[4] O texto original citava uma pesquisa informando que 80% dos israelenses apoiavam a operação de Israel em Gaza e que 50% achavam que o território deveria ser varrido do mapa. A mesma pesquisa dizia que 70% dos palestinos condenavam o ataque do Hamas a Israel. Essa menção à pesquisa foi suprimida, porque ela foi feita com árabes israelenses, não com palestinos. A população palestina manifestou amplo apoio ao ataque do Hamas.

[5] O texto original dizia que Jabotinsky foi expulso da Organização Sionista Mundial, mas foi ele quem decidiu se desfiliar da entidade.

[6] Trecho corrigido. A citação não é do livro O Estado judeu, mas do diário de Theodor Herzl.

[7] Trecho alterado com o objetivo de maior precisão.

[8] O texto original informava que os palestinos eram donos de 94% das terras da região palestina, informação que não pôde ser confirmada e foi suprimida.

[9] O texto original informava que a guerra civil entre judeus e palestinos iniciada em 1947 eclodiu durante as negociações da divisão territorial. O trecho foi corrigido.

[10] O texto original afirmava que o Irgun se transformou no Likud. A informação foi corrigida.

[11] O texto original afirmava que na Guerra dos Seis Dias (1967) Israel tinha sido apoiado por Estados Unidos, Inglaterra e França. O trecho foi corrigido.

[12] No texto original, as datas das intifadas estavam incorretas, e as informações sobre elas,  imprecisas. O trecho foi corrigido.

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