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    Ilustração: Carvall

questões de direitos

Para ligar o nome à pessoa

Mutirão auxilia homens e mulheres trans a alterarem o prenome e o gênero na certidão de nascimento

Felippe Aníbal | 23 jun 2022_16h40
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Assim que acordou na manhã de sexta-feira (10), Larissa Ember de Oliveira Alves pegou o celular e notou que havia uma nova mensagem enviada pelo avô. A primeira palavra a paralisou: ele a chamava pelo nome de registro, não pelo nome social com o qual a jovem se identifica desde setembro do ano passado, quando passou a se entender como mulher transexual. “Sempre que leio meu ‘nome morto’, me dá um bloqueio automático. Eu apaguei sem terminar de ler [a mensagem]”, disse a garota de 18 anos. Naquele mesmo dia, Larissa foi uma das 51 pessoas trans que participaram do mutirão “Meu nome, meu direito”, promovido pela Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), em Curitiba, para orientar pessoas que queriam retificar o prenome e/ou o gênero em documentos pessoais. 

Nascida num corpo masculino e educada como menino, Larissa cresceu insatisfeita com o que via no espelho. Há dois anos e meio, ao preencher um formulário, parou no campo gênero. “Eu não sabia o que colocar e, de brincadeira, escrevi: Transformers”, contou. Só no ano passado, a partir de conversas com amigos, ela consolidou seu entendimento sobre a própria identidade de gênero. A alguns amigos próximos e a familiares, ela passou a se identificar como Larissa e a usar pronomes femininos para se referir a si. E sofre ao ser chamada pelo nome de registro.

“Quando as pessoas aceitam meu nome social, melhora minha disforia [insatisfação com o próprio corpo]. É um reconhecimento. Por outro lado, quando alguém insiste em me chamar pelo meu ‘nome morto’, fico mal uma semana inteira, me fazendo pensar se eu não expresso o gênero com que me identifico. É cruel”, disse Larissa. “Eu vim pra cá [ao mutirão], refletindo como será quando eu tiver meu nome social nos meus documentos. Quero que me chamem pelo meu nome”, acrescentou a jovem, aluna de direito e que sonha em ser juíza.

Larissa Ember de Oliveira Alves foi uma das 51 pessoas trans que participaram do mutirão promovido pela DPE-PR – Foto: Felippe Aníbal

 

Desde junho de 2018, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento Nº 73/2018, as pessoas trans maiores de 18 anos podem alterar o prenome e o gênero na certidão de nascimento sem a necessidade de entrar com um processo judicial. A retificação é feita diretamente em um cartório de registro civil. Para isso, é preciso apresentar uma série de documentos pessoais – como carteira de identidade, CPF, título eleitoral e comprovante de residência – e de algumas certidões – cível, criminal e de tabelionato de protestos, por exemplo. Por fim, a pessoa trans precisa assinar diante do servidor do cartório em que foi registrada uma declaração em que manifesta a vontade de mudar seu prenome e/ou seu gênero na certidão de nascimento. 

“Apesar dessa simplificação trazida pelo provimento do CNJ, vimos que, na prática, muitas pessoas trans tinham dúvidas. São exigidos muitos documentos e certidões que, às vezes, a pessoa nem sabe onde conseguir. Começamos a ter uma demanda média de vinte mulheres trans por mês, pedindo nosso apoio para retificar a certidão”, disse a coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da DPE-PR, Mariana Nunes. “Foi isso que nos levou a fazer os mutirões”, apontou.

Realizada na sexta-feira, 10 de junho, a segunda edição do mutirão “Meu nome, meu direito” atendeu a 31 mulheres trans e 20 homens trans. No primeiro mutirão, foram 151 atendimentos. Quem busca o serviço – um salão no terceiro andar do prédio da DPE-PR, no Centro de Curitiba –, recebe orientações de um servidor da Defensoria sobre o passo a passo para solicitar as alterações na certidão de nascimento. A pessoa sai com três ofícios, a serem entregues nos cartórios distribuidores cível, criminal e de protestos, para retirar as certidões exigidas; uma declaração de hipossuficiência para ter acesso à gratuidade dos procedimentos; um requerimento final, a ser assinado no cartório de registro civil; e um ofício, explicando ao servidor do cartório que o portador é usuário da Defensoria Pública. Com a orientação, cabe à pessoa trans retirar as certidões e ir ao cartório de registro civil, para efetivar as alterações. 

“Isso é politizar essas pessoas, fazer com que elas ocupem os espaços a que têm direito. As pessoas trans precisam ir aos lugares públicos, precisam ser vistas e fazerem entender que é um direito delas estar ali. Isso empodera outras pessoas trans a buscarem esses direitos”, disse a ouvidora externa da DPE-PR, Karollyne Nascimento, considerada a primeira ouvidora trans do país. Em 2011 ela entrou com uma ação judicial com o objetivo de alterar o prenome e o gênero nos documentos, mas só conseguiu a mudança em 2018, após o Supremo Tribunal Federal (STF) conceder às pessoas trans direito de alterar nome e gênero nos documentos civis mesmo sem terem realizado cirurgia de redesignação de sexo. Em todo o país, mutirões ajudam pessoas trans e não binárias a retificar os documentos.

“Quando eu peguei minha certidão de nascimento atualizada, foi como se eu tivesse, enfim, nascido. Porque, por mais que eu tivesse entendimento da minha pessoa, meu antigo nome de registro me gerava inúmeros constrangimentos. Você não sabe o que é se entender como mulher e ouvir: ‘Mas, então, você é homem?’ Tudo porque o meu registro estava no masculino. Só com o nome social nos documentos é que me senti eu mesma”, disse.

 

Um dos atendidos no mutirão, o universitário Luca Veiga Balbueno considera que ter o nome social incluído em seus documentos é pré-requisito para que possa exercer sua cidadania, com acesso a todos seus direitos. No fim de maio, o jovem cumpria expediente na empresa de call center em que trabalha quando teve uma queda brusca de pressão e desmaiou. Foi encaminhado a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), mas o sistema exigia que o cadastro fosse feito de acordo com os dados que constavam nos documentos de identificação – ou seja, com o nome de registro. 

“Eu fiquei muito ansioso, porque sabia que ia ser uma burocracia essa questão do nome. Não conseguiram colocar o meu nome social no sistema da UPA. Eu comecei a ter uma crise aguda de ansiedade. Fui embora sem atendimento. Eu não queria ouvir alguém gritando meu nome de registro numa sala de espera lotada. Pra mim, seria um gatilho muito pesado”, contou. “Para mim, a mudança nos documentos vai ser como uma passagem para que eu possa ser eu. Vai representar que eu sou válido como ser humano na sociedade em que vivo. Nós, pessoas trans, existimos e precisamos desse reconhecimento para viver”, apontou Balbueno, após ser atendido no mutirão.

Luca Veiga Balbueno aguarda a inclusão do nome social nos documentos para que possa exercer plenamente sua cidadania – Foto: Vitória Sofia Buchner Gaiotto/Ascom DPE-PR

Mesmo com a orientação prestada no mutirão, ainda há entraves, e alguns cartórios se recusam a fazer as alterações. “Tivemos casos em que cartórios impuseram condições que não constavam do provimento do CNJ. Eram exigências indevidas. Tivemos que fazer recomendações ao cartório e, em alguns casos, até reclamações à ouvidoria, mas foram contratempos que foram contornados graças a essa atuação imediata”, disse Mariana Nunes. “Esse tipo de reação revela a transfobia que ainda existe na nossa sociedade”, resumiu.

Outro entrave está diretamente relacionado a quem provém de outros estados ou municípios. O processo de retificação precisa ser finalizado no cartório em que a pessoa foi registrada. Ela até pode assinar o requerimento final em qualquer serventia de registro civil, mas, para efetivar a mudança de prenome e/ou gênero, o documento precisa ser remetido ao cartório onde foi registrada. Para esse envio, é preciso pagar uma taxa de remessa entre os cartórios, que custa 250 reais – mesmo para quem depende do expediente da justiça gratuita.

 “A gente entende essa cobrança como despropositada, porque quem é usuário da Defensoria não vai ter condições de pagar essa taxa. Isso inviabiliza o acesso ao direito. Temos enviado ofícios aos cartórios pedindo que a retificação seja feita sem custo, argumentando que temos fé pública e que a pessoa preencheu o requerimento na nossa frente. Alguns cartórios têm aceitado, mas muitos não”, disse o coordenador do Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos, da DPE-PR, Antonio Vitor Barbosa de Almeida. “Estamos questionando a cobrança dessa taxa junto ao CNJ”, acrescentou.

Um dos últimos atendidos do mutirão, Vicente Leôncio Mahle estava confiante quando deixou o prédio da Defensoria, no fim da tarde de 10 de junho. Após o atendimento que durou 16 minutos, ele saiu com o encaminhamento de que precisava. Filho biológico de uma prostituta e de um traficante, ele foi adotado pela sua família aos 9 anos de idade. Chegou a morar na rua, onde passou por “maus bocados”. Quando se assumiu homem trans há dois anos, enfrentou resistência dos pais e foi morar com a avó, “para dar tempo ao tempo”. 

Vicente Leôncio Mahle: “O dia que eu pegar meu documento com meu nome social vai ser meu novo aniversário” – Foto: Vitória Sofia Buchner Gaiotto/Ascom DPE-PR

“Minha mãe teve resistência não por ser contra, mas porque tinha receio do que eu poderia passar, dizendo que eu já tinha sofrido muito na vida. Minha avó, de 77 anos, foi quem mais me apoiou. Pegou computador e foi estudar, entender as siglas, foi se informar. Hoje, vira e mexe, meu pai ainda desliza, me chama pelo pronome errado ou pelo nome de registro, mas estamos no caminho. Somos um lar acolhedor”, observou. “Quem não tinha a mente aberta, abriu na porrada”, brincou.

Em junho do ano passado, Mahle começou o tratamento hormonal. Quem lhe aplicou a primeira dose foi a mãe, enfermeira. Agora, a alteração do prenome e do gênero em seus documentos pessoais será mais um passo em seu processo de identidade de gênero. “Quando alguém nos chama pelo nome, faz diferença enorme. O dia que eu pegar meu documento com meu nome social vai ser meu novo aniversário. Vai ser como se eu tivesse passado no vestibular”, definiu. “Estou recebendo muito apoio da família, de amigos, de colegas… Eu mandei mensagem para a minha mãe, avisando que o processo estava encaminhado, ela ficou super feliz. Assim que eu chegar em casa, a gente vai pedir pizza para comemorar”, disse.

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