Passagem por Tiradentes – batuque, carneiros e implosão
Quem tiver lido o post Desabamento e batuque, publicado sexta-feira passada (27/1/2012), terá notado a coincidência entre a imagem da “casa já antiga” que mal consegue se manter de pé, descrita por Jean Claude Bernardet, e o desabamento de três prédios no centro do Rio, na véspera do Seminário sobre a crítica, ocorrido na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes, para o qual o texto do Jean Claude serviu de inspiração
Quem tiver lido o post , publicado sexta-feira passada (27/1/2012), terá notado a coincidência entre a imagem da “casa já antiga” que mal consegue se manter de pé, descrita por Jean Claude Bernardet, e o desabamento de três prédios no centro do Rio, na véspera do Seminário sobre a crítica, ocorrido na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes, para o qual o texto do Jean Claude serviu de inspiração.
Mais uma vez, foi demonstrado que nem tudo é representação. A realidade existe e, como a história, dói.
Logo depois do Seminário foi exibido HU, documentário dirigido por Pedro Urano e Joana Traub Cseko, premiado como melhor filme da Mostra pelo júri jovem, formado por estudantes. Em HU pudemos ver a implosão parcial do elefante branco projetado para ser o hospital universitário da UFRJ. Coincidência? Sincronicidade? Randômico? O que Jung e Paul Auster teriam a dizer sobre isso?
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Ainda que, a meu ver, HU seja redundante, repetindo à exaustão uma mesma ideia e esvaindo, dessa maneira, sua força inicial, não deixa de ser também uma inegável demonstração de talento e vitalidade. O manancial de energia e liberdade do cinema brasileiro é farto, sem dúvida, o que não contradiz sua irrelevância nem eventuais efeitos negativos que o batuque pode ter. Sempre haverá filmes para abastecer festas e dar ânimo aos devotos. Longe de mim pretender cercear rituais festivos e celebrações, ou me referir a cineastas em particular. Nem por isso, nosso sistema cinematográfico deixa de ser disfuncional, propenso a desabamentos por ser construído com alicerces frágeis em terreno movediço.
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Ainda durante o Seminário, encerrando as intervenções da plateia, Edgard Navarro, diretor de O homem que não dormia, também exibido pouco depois, fez ressalvas às referências ao batuque como causa da inferioridade do cinema brasileiro em relação ao argentino, conforme escreveu Luiz Paulo Horta e eu acabara de reiterar para encerrar minha intervenção, dizendo que nosso problema talvez seja mesmo excesso de batuque.
O que só me ocorreu depois dizer ao Edgard Navarro é que, assim como a expressão tudo acabou em pizza não nos impede de apreciar uma boa pizza, atribuir a inferioridade do cinema brasileiro ao batuque não implica em desconhecer seu (do batuque) valor cultural.
Será necessário esclarecer que a casa já antiga que mal consegue se manter de pé, o batuque e a pizza não devem ser entendidos em sentido literal?
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Quem assistiu ao Seminário e comentou depois, pessoalmente e por e-mail, a imagem do desabamento da casa foi o professor de filosofia da UFMG e emérito cinéfilo César Guimarães. Para ele, “ela trouxe uma indagação muito inquietante: qual casa habitamos e com quem a partilhamos? E, mesmo que alguns já não a habitem mais, não permanecem os traços (pensamentos e afetos) dos que a povoaram? E ela não poderá também abrigar novos habitantes, hóspedes, visitantes? Os antigos habitantes (os "sobreviventes") não podem estabelecer liames com os que chegam?”
Para César Guimarães, há uma questão decisiva: “como, ao nos engajarmos no cinema (como realizadores, críticos, espectadores) implicarmo-nos também na compreensão e na intervenção do tempo no qual vivemos? Enfim, trata-se de dificuldade que esse nosso tempo impõe à transmissão da experiência do cinema… certamente trata-se do liame entre uma geração e um mundo inventado pelos filmes que ela fez e nos quais investiu seus desejos, crenças, aspirações…”.
Lembra ainda que “Bernardet escreve que pertence a ‘uma história que está virando a página’, e diz isso sem nostalgia (mas entre uma página e outra o sentido não se perde).” Seria preciso, completa César Guimarães, “sustentar a crença nas imagens como uma experiência histórica cuja transmissão não é garantida (e procurar, igualmente, as razões para defender que essa transmissão se faça – com perdas, lacunas, conflitos, mal-entendidos, dissensos).”
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No domingo (29/1), The New York Times publicou artigo com uma pergunta que, feitas as devidas transposições, deveria servir para refletirmos sobre o modelo de produção cinematográfica implantado no Brasil ao longo dos últimos quinze anos.
“Uma indústria cinematográfica frágil pode sustentar uma empresa que insiste em fazer filmes ambiciosos, com calibre para disputar Oscars, da dimensão dos estúdios – mas sem o saco sem fundo da Viacom, dona da Paramount Pictures, ou da News Corporation, proprietária da 20th Century Fox?”
A pergunta refere-se à situação da Dreamworks, empresa criada há 4 anos por Steven Spielberg, que esgotou seu financiamento inicial, da ordem de 750 milhões de dólares, tendo agora que obter novas fontes de financiamento. Isso num momento de dificuldade da economia americana, queda de frequência nos cinema e da venda de DVDs.
As dificuldades da Dreamworks, produtora de dois filmes que concorrem a vários Oscars, e para a qual Steven Speilberg está terminando Lincoln, ilustram a complexidade dos problemas do cinema, mesmo no centro industrial dominante da atividade cinematográfica, e mesmo para um dos produtores e diretores mais bem sucedidos de todos os tempos.
E por aqui? Qual é mesmo o cinema que queremos?
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Na madrugada de segunda-feira (30/1) morreu Linduarte Noronha (1930-2012), diretor do curtametragem Aruanda, realizado entre 1959 e 1960, filme deflagrador do Cinema Novo. Poderia haver comprovação maior de desperdício de talento, resultante da disfuncionalidade do cinema brasileiro, do que a carreira de Linduarte? Depois de Aruanda, para o qual contou com a colaboração de Rucker Vieira, João Ramiro Melo e Vladimir Carvalho, ao longo de 50 anos Linduarte fez apenas mais um curtametragem, Cajueiro nordestino (1962), e o longametragem Salário da morte (1971/72).
Aruanda, segundo o próprio Linduarte Noronha, quer dizer “terra prometida”. Para ele, porém, a terra parece ter sido ingrata.
Não há algo terrivelmente cruel nessas repetidas promessas que se frustram? Paulo Emílio registrou que a existência de Aruanda foi revelada “pelo jovem crítico e cineasta baiano Glauber Rocha”. Para Paulo Emílio, “a caminhada de uma família escrava que procura a paz de um planalto longínquo tem uma universalidade bíblica e prolonga suas raízes no cerne mais íntimo da longa e insuportável miséria brasileira.”
Com a morte de Linduarte Noronha, mais uma parte da casa desaba.
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E por falar em coincidência, começou terça-feira (31/1) no Rio a retrospectiva de Péter Forgács que, segundo ele mesmo declarou no Globo, compartilha a melancolia de outros grandes artistas como Robert Musil e Kafka. Na entrevista dada a André Miranda, Forgács diz ainda que seus “trabalhos são pensados para um museu. Um museu ou uma sala de concerto são locais de contemplação. Por que o público não pode assistir a eles com concentração e atenção, como faz com outras formas de arte?”
E por aqui? Qual é mesmo o cinema que queremos?
Entre 7 e 26 de fevereiro, paulistanos e brasilienses também terão a oportunidade de ver um conjunto expressivo dos magníficos filmes de Forgács, além de um debate com a participação dele e de Bill Nichols, marcado no Rio para sábado, 11 de fevereiro.
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Ainda na quarta-feira (1/2) a Folha de S.Paulo abriu espaço para estimular a cizânia entre cineastas. Minha única surpresa é que meus colegas caiam de novo nessa armadilha e personalizem suas discordâncias, sem terem sequer, ao que tudo indica, ouvido o que foi dito ou lido o que foi publicado.
Para a participação no Seminário na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes escrevi 21 páginas, 1692 palavras, 10298 caracteres (com espaços), 39 parágrafos e 305 linhas. Esperaria o crédito de haver mais do que uma única ideia exposta nesse texto.
Para o propósito da Folha de S.Paulo, porém, só interessou um trecho parcial da menção feita no final de que, a meu ver “irrelevante no mercado interno e externo, a produção cinematográfica brasileira se tornou perdulária. Mais dia, menos dia, a conta será apresentada.”
Como disse meu amigo Nilton, “condensação drástica [feita pelo repórter da Folha de S.Paulo] mas compreensível, você atingiu o chacra mais sensível.”
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Ter ido a Tiradentes fez bem à minha dolorida cervical e à minha melancolia, apesar de só ter podido ficar por lá algumas horas. Por aqui, há filmes a concluir, aulas a dar, textos a escrever, contas a pagar, maluquices a administrar. Deixei o turbilhão do sistema disfuncional por um dia para participar da festa. Fui e voltei de carro, andei pelas ruas da bela cidade e admirei a quantidade de espectadores nas duas sessões que assisti. Encontrei amigas e amigos queridos, ouvi com interesse o que Fábio Andrade e Luiz Carlos Merten disseram no Seminário. Tentei dar minha contribuição ao debate. Na falta de carneiro, à noite comi um excelente bacalhau em boa companhia. Foi ótimo. Nada contra uma batucada na medida certa. Voltei e continuo fazendo filmes, como sempre, ao contrário do que alguns afirmam, com os pés no chão, tentando manter as narinas um pouco acima do nível da água e o foco à meia distância, entre a visão microscópica e a de um satélite.
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Erramos – retificação e desculpas
Soubemos ontem, domingo (5/2), por volta de meio-dia, que o folclorista Deífilo Gurgel está vivo, em estado grave, apesar da sua morte ter sido anunciada por familiares, pela tevê, em jornais e blogs.
Segundo a Tribuna do Norte, a notícia do falecimento chegou à redação na manhã de quarta-feira (1/2) através do filho e do neto de Deífilo, mas ele ainda não havia sido declarado oficialmente morto pelos médicos, continuando a respirar com auxílio de aparelhos.
Pelo lamentável engano cometido no post de sexta-feira (3/2) pedimos desculpas ao Deífilo, à sua família e aos leitores, tendo sido retirada a referência que fizeramos ao falecimento.
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