Policiais militares assistindo a uma palestra no Templo de Salomão, uma das sedes da Igreja Universal em São Paulo Foto: Reprodução/UFP
Pastores no coração da tropa
Como as capelanias militares, historicamente dominadas pela Igreja Católica, se tornaram um poderoso instrumento de pregação evangélica nas polícias
Alguns anos atrás, o pastor evangélico Rafael* recebeu uma ligação na madrugada. Do outro lado da linha, falava o comandante do 30º Batalhão da Polícia Militar de São Paulo. “Temos um caso que acreditamos ser de natureza espiritual”, disse o policial. Rafael, que trabalhava como capelão voluntário da PM, ficou surpreso com o chamado àquela hora. Não se tratava do convite costumeiro para abençoar a tropa com sermões bíblicos antes da rotação de turno, algo que vinha fazendo há anos como membro da associação PMs de Cristo. Dessa vez, ele teria a oportunidade de contribuir diretamente com uma operação policial.
Quando chegou ao local da ocorrência, no município de Ribeirão Pires, Rafael viu quatro viaturas estacionadas em frente a uma casa num bairro de periferia. Os policiais estavam suados e exaustos. Não conseguiam explicar o que se passava ali dentro, e o pastor decidiu entrar na casa para inspecionar a situação. Foi quando uma mulher voou sobre ele, atacando-o. Rafael concluiu sem pestanejar: era uma possessão demoníaca. Ergueu a Bíblia com uma das mãos e apontou a outra para a mulher, exorcizando o espírito que se apossara de seu corpo. Deu certo. Em poucos segundos, ela desabou no chão e recobrou a consciência. Rafael saiu da casa satisfeito e deu a missão por cumprida. Um policial atônito perguntou a ele o que deveria fazer agora. “Nada. Deixa ela seguir com a vida em paz, está tudo resolvido.”
O relato acima foi compartilhado comigo por Mendes, outro capelão evangélico de São Paulo, quando o entrevistei na sede dos PMs de Cristo, um prédio baixo de escritórios no bairro Ponte Pequena, na capital paulista. A associação se define, em seu site, como um grupo de policiais e voluntários que “atuam a favor da valorização da figura humana do PM”. Segundo Mendes, o episódio supostamente diabólico de Ribeirão Pires não foi um caso isolado, mas uma dentre “várias experiências que têm ocorrido nos batalhões policiais”.
Ouvi histórias semelhantes desde que comecei a estudar o trabalho de base evangélico nas polícias brasileiras para a minha pesquisa de doutorado em ciência política, na Universidade York, na Inglaterra. Esses relatos demonstram, além da visão de mundo dos pastores, o quanto as capelanias influenciam o trabalho rotineiro das polícias. E, principalmente – o que mais me interessa na pesquisa –, como esses cargos religiosos, que existem há décadas nos batalhões das PMs, hoje são ocupados primordialmente por pastores evangélicos. Uma maioria construída graças ao esforço e ao investimento de várias igrejas.
Fazendo um tour pelo escritório da associação, em agosto de 2022, Mendes me mostrou uma sala equipada com computadores e headsets. Dali a poucos meses, segundo ele, funcionaria ali uma central de atendimento para conectar capelães evangélicos diretamente às polícias, facilitando que agentes de todo o estado pudessem encomendar cultos e outras cerimônias religiosas. A central, me disse Mendes, serviria também para atender casos de policiais com ideação suicida, crises internas na corporação e conflitos comunitários. Uma etapa significativa na profissionalização de um trabalho que é feito de forma voluntária.
Como os PMs de Cristo, há várias outras associações evangélicas atuando nas polícias brasileiras. A maior delas é a Universal nas Forças Policiais (UFP), grupo comandado pela Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo. Quando visitei sua sede, em julho de 2022, duas coisas me chamaram atenção. Primeiro, o caráter abertamente missionário do projeto. Um dos coordenadores regionais da UFP me disse: “Nossa visão é obedecer à ordem de Jesus na Bíblia: ide a todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura.” Perguntei se a atuação do grupo não desrespeitava a laicidade do Estado. “Nós não podemos nos prender a isso”, ele respondeu. “Precisamos entender que esses servidores públicos são seres humanos. Também precisam de apoio espiritual, social, psicológico.”
Em segundo lugar, o que me impressionou foi a escala do projeto, que conta com ao menos um representante em cada estado. Um pastor da Universal com quem conversei estima que a UFP tenha ao menos 10 mil voluntários capacitados e cerca de sessenta funcionários exclusivos, números que a associação, procurada por e-mail, não confirmou. O orçamento também não me foi revelado, mas não pode ser pequeno, considerando as doações de Bíblias feitas pela UFP e as centenas de eventos realizados até hoje, com direito a café da manhã e brindes. Uma reportagem do The Intercept Brasil mostrou que, só nos cinco primeiros meses de 2023, a UFP promoveu mais de setenta encontros, durante os quais policiais e integrantes das Forças Armadas receberam a bênção de pastores e obreiros. O capelão da PM do Maranhão Roni Negreiros, coordenador da UFP, estimou que, naquele ano, o grupo já tinha doado ao menos 100 mil Bíblias de estudo para agentes de segurança.
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O trabalho de assistência espiritual às forças de segurança é antigo e institucionalizado no Brasil. Nas Forças Armadas, a capelania militar existe desde 1944, quando o Serviço de Assistência Religiosa foi criado pelo governo Vargas para auxiliar em operações de guerra. A Força Expedicionária brasileira, que lutou na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, viajou acompanhada de trinta padres católicos e dois pastores evangélicos (o protestantismo ainda era uma minoria tímida no Brasil). Atualmente, a capelania militar é regulada por uma lei federal de 1981 que instituiu o Serviço de Assistência Religiosa nas Forças Armadas (Sarfa), entidade responsável pela seleção e formação de capelães.
Os capelães das Forças Armadas são oficiais não-combatentes, remunerados, que prestam serviço pastoral dentro da corporação militar. Isso inclui atendimento à saúde mental das tropas, visita a enfermos e celebração de missas e rituais fúnebres. A lei de 1981, no entanto, diz também que eles devem contribuir para a “educação moral” dos militares – uma expressão vaga, que pode ser interpretada com alguma flexibilidade. Um manual de 2018 do Exército diz que a assistência espiritual dos capelães militares deve “contribuir para a dissipação de dicotomias ou dilemas éticos, diante da difícil e complexa decisão de matar”.
As Forças Armadas contam com 167 capelães, segundo o Ministério da Defesa. Desse total, 111 são padres e 56 pastores. A instituição ainda é dominada pela Igreja Católica, que, em 1989, criou o Ordinariado Militar, entidade subordinada ao Vaticano e que opera dentro do Ministério, em Brasília. Não há um órgão equivalente para os capelães evangélicos. A representação desse grupo é feita de forma extraoficial pela Aliança de Capelania Evangélica Pró-Militar do Brasil (ACMEB), fundada em 2005 para apoiar os capelães evangélicos nas Forças Armadas e nas forças auxiliares (isto é, PM e Corpo de Bombeiros).
Já a capelania das forças policiais fica a cargo dos estados, cada um com legislação própria – em muitos casos, legislação nenhuma. Ao menos 24 das 27 unidades federativas têm capelanias ativas nas polícias militares. Até 2022, segundo dados que coletei do Ministério da Justiça, só sete tinham algum tipo de regulamento sobre o tema – fosse uma lei estadual ou uma resolução do comando da PM. Embora não haja uma regra explícita, em todos os estados apenas católicos e evangélicos têm representação nas capelanias. A exceção é a Bahia, cuja PM conta também com uma capelania espírita e de religiões afro-brasileiras.
Até 2021, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, havia apenas 39 capelães nas PMs. Somando as demais forças (Polícia Civil, Bombeiros e Polícia Penal), chegava-se a um total de 85. O número, no entanto, se refere apenas aos capelães concursados. O trabalho religioso nas forças de segurança é feito majoritariamente por voluntários, cuja quantidade é mais difícil de estimar. Os capelães militares são quase sempre oriundos de igrejas, ONGs ou associações policiais que, com o consentimento informal dos comandantes das polícias, pregam para as tropas.
O trabalho voluntário de capelania militar é um universo quase exclusivamente evangélico. Nenhum outro grupo religioso é tão organizado e ao mesmo tempo descentralizado a ponto de estar presente em todos os estados, como é o caso dos capelães evangélicos. Embora sacerdotes católicos conduzam atividades pastorais em presídios, hospitais, terras indígenas e favelas, sua atuação nas capelanias militares é verticalizada, obedecendo estritamente as doutrinas do Vaticano. A oferta de padres é menor que a de pastores.
Nas capelanias policiais, assim como acontece nas Forças Armadas, o trabalho vai além do mero atendimento pastoral. Os PMs de Cristo – nome abreviado da Associação dos Policiais Militares Evangélicos do Estado de São Paulo – são exemplo disso. Criada em 1992, a entidade opera dentro e fora dos batalhões. Durante anos pleiteou espaço nas fileiras da PM paulista, e conseguiu, finalmente, em 2015, quando selou com o governo uma parceria chamada Programa Polícia e Igreja (coincidentemente, naquele mesmo ano o então governador Geraldo Alckmin extinguiu a capelania da Polícia Militar. A medida, porém, não afetou grupos como os PMs de Cristo, que atuam voluntariamente. Pelo contrário: abriu caminho para que ocupassem esse vácuo).
Em um manual publicado em 2022, o coronel Carlos Lamin, integrante dos PMs de Cristo, explicou que o Programa Polícia e Igreja consiste em “cooperar com os comandantes na gestão de recursos humanos, oferecendo assistência espiritual e emocional” aos policiais. No período de rotação das tropas, os capelães da associação reúnem os agentes para aquilo que chamam de “momentos com Deus” – uma reflexão bíblica de cerca de dez minutos. Também oferecem serviços funerários e aconselhamento a familiares, visando, nas palavras de sua principal liderança, o coronel Alexandre Terra, “reforçar valores, ajudando em crises pessoais, familiares, crises de trabalho e melhorando o clima organizacional”. Na sede dos PMs de Cristo, onde estive, havia uma sala de aula reservada para cursos de empreendedorismo e finanças voltados para os policiais e seus parentes.
Fora dos batalhões, escreveu Lamin, os PMs de Cristo têm a tarefa de lidar com “desafios comunitários”, mediando “conflitos e crises sociais, principalmente aquelas ligadas a famílias vulneráveis, conflitos entre vizinhos e em escolas com problemas de violência e crimes”. Somam-se a isso ações de caridade e campanhas educacionais. Tudo no intuito de “resgatar vidas que não estão de acordo com os valores éticos e morais de Cristo”.
O trabalho dos PMs de Cristo foi retratado no documentário Uma Força Para a Mudança, produzido em 2007 pelo grupo evangélico estadunidense Sentinel Group. A certa altura, durante uma operação policial em uma periferia de São Paulo, o narrador afirma: “Para obter sucesso, a força bruta não é suficiente.” A situação, segundo ele, exigia outro tipo de especialista para lidar com os criminosos. O Coronel Joviano Lima, comandante do Batalhão de Choque da PM na época, explica para a equipe de filmagem que, terminada aquela operação, o normal seria a polícia implementar programas de assistência social no local. Na ocasião, no entanto, “o aspecto social não era suficiente”, ele diz. Lima convidou então os PMs de Cristo a fim de prestar “assistência espiritual e emocional para adultos e crianças” que moravam ali. O comandante defendeu, na mesma entrevista, a “importância de trazer conceitos de ordem pública completamente baseados na ética cristã”.
Nos últimos anos, os PMs de Cristo vêm prestando consultoria a grupos de outros estados que querem criar capelanias militares evangélicas. Quando estive na sede da associação, em 2022, fui informado de que alguns de seus integrantes estavam auxiliando o Corpo de Bombeiros da Paraíba; outros vinham trabalhando junto a forças de segurança de Minas Gerais. Meses antes, o grupo mineiro Sentinelas de Cristo havia assinado um acordo com a PM de seu estado para fornecer assistência religiosa às tropas, nos moldes do acordo assinado em São Paulo em 2015.
Embora não haja estatísticas confiáveis, tudo indica que as capelanias evangélicas cresceram na última década, fato refletido na popularização da literatura especializada. O mercado editorial evangélico têm lançado em grande quantidade títulos como A missão de Deus para o policial, Cristianismo para policiais: cumprir a missão sem errar o alvo, 101 conselhos para militares: devocionais do Livro de Provérbio e Com o sacrifício da própria vida: uma abordagem empolgante e ousada da nobre e divina missão de ser policial.
O fenômeno contou com um empurrão do governo federal. Em abril de 2018, o então ministro da Segurança Pública do governo Temer, Raul Jungmann, anunciou uma reunião com lideranças religiosas em Brasília. O objetivo era pedir que as igrejas se engajassem em suas comunidades para tentar reduzir os índices de criminalidade, que àquela altura assombravam o governo. Meses antes, tentando deixar sua marca em um ano eleitoral, Temer havia decretado uma intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, medida que se revelou um fiasco.
Participaram da reunião com Jungmann católicos, evangélicos, espíritas e umbandistas, assim como membros de capelanias militares, tanto oficiais quanto voluntárias. Estavam lá os PMs de Cristo e a Aliança Evangélica Pró-Capelania Militar e de Segurança Pública do Brasil (ACMEB). O ministro propôs, no encontro, uma parceria de longo prazo em torno de quatro temas: “melhorar a qualidade dos serviços prestados pela polícia”, “apostar na prevenção primária do crime através da reeducação moral e religiosa”, “prestar apoio mental e emocional aos profissionais de segurança pública” e “resgatar os prisioneiros do mundo do crime”. Era como se Jungmann admitisse que o Estado, por conta própria, não tinha capacidade de combater o crime e suas causas. Era preciso, em vez disso, construir sujeitos novos, civilizados, que, dotados de uma moral religiosa, não atentariam contra a lei.
O projeto não foi para a frente. As reuniões em Brasília, no entanto, deixaram dois legados para as capelanias evangélicas. Primeiro, a Universal percebeu ali a oportunidade que tinha de se engajar, com o apoio tácito do governo federal, nas forças de segurança. Uma evidência disso é que o programa Universal nas Forças Policiais (UFP) foi criado dias depois da primeira reunião com Jungmann, em abril de 2018. Em segundo lugar, o projeto malfadado serviu como ensaio para uma política mais ambiciosa que viria pouco depois, chamada Assistência Espiritual para os Profissionais de Segurança Pública. Pouco conhecida, ela foi construída fora dos holofotes e vigorou por dois anos, entre 2021 e 2022.
Ouvi falar da Assistência Espiritual pela primeira vez quando travei contato com um policial militar lotado no Ministério da Justiça e Segurança Pública e que se identificava como evangelista. Na época, ele estava ajudando a implementar o programa Pró-Vida, que tinha como objetivo desenvolver ações de “atenção biopsicossocial” e promover a qualidade de vida dos agentes de segurança. A Assistência Espiritual fazia parte desse pacote e mirava todas as forças de segurança pública, mas com foco especial nas polícias militares.
O que mais me impressionou foi o profissionalismo com que essa política pública estava sendo planejada. Não se tratava de um grupo de lobby tentando canalizar recursos públicos para projetos eleitoreiros. Os envolvidos tinham intimidade com a máquina pública e seguiram fielmente as etapas que um projeto como esse precisa enfrentar – obedecendo, segundo um deles, ao “rigor científico”. Por meio da Lei de Acesso à Informação, obtive centenas de documentos de reuniões preparatórias, notas técnicas, pesquisas, projetos, eventos, câmaras técnicas e análises jurídicas que tratavam da Assistência Espiritual.
O primeiro sinal de que o projeto estava saindo do papel surgiu em 2020. Naquele ano, a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) divulgou um portfólio de programas que estavam em desenvolvimento, entre eles a Assistência Espiritual. Poucos meses depois, André Mendonça, que na época era ministro da Justiça e Segurança Pública, publicou um decreto regulamentando o projeto. A “atenção biopsicolossocial” dos profissionais de segurança, segundo o texto, deveria incluir “temas de substâncias psicoativas, estresse, riscos, incidentes críticos, vitimização, suicídio, nutrição, educação física, bem como assistência espiritual e religiosa”. Pela primeira vez, o termo “assistência religiosa e espiritual” foi incorporado a uma lei federal de segurança pública.
Em janeiro de 2021, uma portaria interna da Senasp instituiu oficialmente o programa, que começou a ser posto em prática. Estipulou-se um orçamento de quase 16 milhões de reais a serem investidos ao longo de quatro anos (2021-2024) na criação de “núcleos de assistência espiritual”, compra de viaturas para capelães e distribuição de “literatura especial” – isto é, cristã – para profissionais de segurança. A equipe responsável pelo projeto incluía seis servidores públicos, quatro capelães militares evangélicos e um católico (este último foi preso em 2022, acusado de importunação sexual contra um adolescente.)
O Ministério da Justiça selou, ainda em 2021, um acordo com a igreja Ministérios Pão Diário (MPD), uma denominação evangélica criada nos Estados Unidos e presente no Brasil há cerca de vinte anos. Cabia à igreja, por contrato, prestar quatro serviços: distribuir livretos devocionais a profissionais de segurança pública; realizar um ciclo de palestras sobre espiritualidade no local de trabalho desses profissionais; desenvolver um aplicativo exclusivo para policiais que incluísse meditações diárias sobre a Bíblia, aulas e podcasts; e preparar um curso online para formar novos capelães.
Em documentos internos, estipulou-se a meta de distribuir 20 mil livretos devocionais em 2021, e depois 10 mil por ano até 2024. Em agosto de 2022, segundo um relatório produzido pelo Ministério, 7.600 cópias já haviam sido distribuídas. O aplicativo, chamado Pão Diário Segurança Pública, havia recebido mais de 10 mil downloads. Ele existe até hoje: contém mensagens bíblicas escritas por agentes de segurança, vídeos gravados por capelães militares evangélicos, planos de leitura de livros religiosos e cursos online como “A Era Primordial”, que ensina sobre o criacionismo. Muito desse conteúdo foi produzido em parceria com os PMs de Cristo, que colaboram com os Ministérios Pão Diário desde 2012.
Um devocional publicado no aplicativo e datado de setembro de 2021 narra um tiroteio entre um policial e “elementos armados” durante uma perseguição de carro. “Naquele momento em que minha vida estava em risco, clamei a Deus e Ele ouviu. Tenho certeza de que nenhum tiro me atingiu porque o Senhor estava me protegendo e guardando. Se você enfrenta perigos diários, confie sua vida e atividades ao Senhor.” Outro diz que, para um policial, “haverá momentos em que você terá que fazer uso da força e, se hesitar, sua vida, a vida de um colega ou de um inocente estará em risco. Em João 2:13-16, Jesus entrou no Templo e se deparou com a desordem […] Jesus derrubou as mesas e estabeleceu a ordem […] Jesus estava mostrando que às vezes, a força deve ser usada para estabelecer a Justiça de Deus”.
As demais metas dessa parceria, no entanto, não foram para frente. O projeto naufragou depois que se tornou de conhecimento público. Em janeiro de 2021, a coluna do jornalista Guilherme Amado no portal Metrópoles noticiou o acordo do governo com os Ministérios Pão Diário, e no mesmo dia o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) entrou com uma representação no Ministério Público Federal contestando o contrato. A seu ver, tratava-se de um “ato ilegal”, que priorizava “uma religião em detrimento das outras”. A ação do deputado não teve maiores desdobramentos, até que, no ano seguinte, o jornal O Globo noticiou que milhares de livretos do Ministérios Pão Diário haviam sido distribuídos à Polícia Rodoviária Federal (PRF), que tinha acabado de criar sua própria capelania.
Com a repercussão da notícia, o Ministério Público Federal decidiu abrir uma investigação sobre “a eventual distribuição de material religioso pelo governo federal nas dependências da Polícia Rodoviária Federal, com orientações e sugestões de ‘assistência espiritual’ e leituras bíblicas”. Em menos de dois meses, a apuração foi concluída, e os promotores publicaram duas decisões: uma recomendando que não fossem enviados mais livretos à PRF e outra recomendando a suspensão do acordo com a igreja Ministérios Pão Diário. As decisões não resultaram em acusações formais, mas apontaram que o acordo selado pelo governo violava o caráter laico do Estado. Recomendavam também que o Ministério da Justiça parasse de enviar Bíblias e outros materiais religiosos às forças de segurança.
Com a mudança de governo logo depois, o projeto Assistência Espiritual foi congelado de vez. Mas não terminou propriamente. “As instituições estaduais podem tranquilamente dar continuidade a essas ações”, me explicou a minha fonte no Ministério da Justiça quando conversamos pela última vez, em novembro de 2022. A seu ver, o projeto, embora não tenha sido completado, serviu de aprendizado às capelanias evangélicas. “Ele nos deu uma visão: a gente precisa ter uma regulamentação, precisa melhorar a capacitação. Creio que tivemos uma vitória nesses pontos.”
A influência das igrejas nas polícias só recentemente entrou no radar da imprensa, em parte devido aos anos Bolsonaro, presidente que flertava com a insubordinação e o caráter conservador das PMs. Alinhados ao zeitgeist, esses dois grupos – evangélicos e policiais – tornaram-se protagonistas da cena política. Talvez por isso, projetos como a Universal nas Forças Policiais (UFP) tendem a ser interpretados como um instrumento que serve a um fim político, seja ele a doutrinação ideológica ou a formação de um “exército privado” de evangélicos. Essa discussão veio à tona quando, em julho do ano passado, o portal Metrópoles noticiou que centenas de policiais militares de São Paulo haviam se encontrado no Templo de Salomão, pertencente à Igreja Universal, para uma reunião interna da corporação, de presença obrigatória. A cena se repetiu em fevereiro deste ano, com um novo encontro. Na pauta, questões como saúde emocional e espiritual, explicadas pelo capelão Roni Negreiros, da UFP.
O atentado à laicidade do Estado é claro e preocupante, mas uma interpretação estritamente política desse fenômeno resulta em conclusões imprecisas. O trabalho de missionários evangélicos nas polícias está em curso há décadas. Embora tenha ganhado força nos últimos anos, começou muito antes da onda conservadora que varreu o Brasil. Em 2017, um ano antes da criação da UFP, por exemplo, os PMs de Cristo já operavam em todas as 22 regiões administrativas do estado de São Paulo, trabalhando com quinhentas igrejas evangélicas de diferentes denominações e cerca de 1.300 capelães certificados. Estruturas semelhantes já existiam em outros estados. Não há, além disso, indícios de que igrejas estejam se organizando militarmente, nem que o trabalho das capelanias seja coordenado a tal ponto.
A atenção que as igrejas dão às polícias deve ser compreendida como parte de uma estratégia missionária mais ampla, que visa conquistar a sociedade e o Estado. Como me disse um capelão associado à UFP: “Nós cristãos entendemos que o tempo é curto, então precisamos levar a palavra de Deus para as pessoas. Precisamos levar a salvação e acima de tudo o conforto espiritual para os homens e mulheres que trabalham para manter a ordem pública.” As polícias são, desse ponto de vista, apenas uma etapa dessa estratégia.
Historicamente, na esquerda, o trabalho de base em sindicatos, escolas e grupos pastorais sempre foi visto como uma condição importante para transformações políticas. O trabalho de base evangélico se orienta no mesmo sentido. É por meio do esforço de valorização profissional e humana do policial que as capelanias evangélicas angariam apoio e conseguem crescer.
É instrutivo, nesse ponto, ler algumas das publicações do mercado editorial evangélico que tratam do assunto. No Manual do Capelão Militar: Teoria e Prática (2017), o pastor Gisleno Alves, capelão da PM do Distrito Federal, diz que a “intensificação de problemas como o suicídio, a violência, a dependência química e o endividamento [dos policiais], para os quais os gestores não estão encontrando solução, bem como as recorrentes crises pessoais coletivas, são oportunidades para o avanço da capelania”. No livro A missão de Deus para o policial (2021), o coronel Custódio Barreto, da PM de São Paulo, defende que só é possível evangelizar uma instituição “se nos fizermos cativos” de seus integrantes, devendo “compartilhar seus interesses, ansiedades, emoções, frustrações, objetivos, etc”. Já o coronel Carlos Lamin, no manual sobre a parceria dos PMs de Cristo com a PM de São Paulo, listou algumas técnicas de “aproximação do coração do policial”, que incluem: aprender o “código Q” (vocabulário militar), utilizar Bíblia personalizada, oferecer cafés da manhã, ficar no quartel após os “momentos com Deus” e tomar café com os policiais.
Esse trabalho de base nas polícias cresce organicamente por um motivo simples: os evangélicos, mais do que qualquer outro grupo social no Brasil hoje, conseguem capitalizar em cima de problemas reais que afetam o trabalho policial e que motivam sua politização. As capelanias funcionam como redes de solidariedade, tecendo laços sociais e afetivos entre os agentes de segurança, criando um ambiente de fraternidade entre os “irmãos em armas” e estabelecendo um sentido de totalidade na vida do policial. Isso ajuda a estabelecer uma unidade moral entre aquilo que ele pratica nos quartéis, em casa, na igreja e na rua. Traz, além disso, conforto aos policiais que cometem atos violentos. O coronel Barreto, da PM paulista, afirma em seu livro que “o policial, ao matar o agressor da sociedade” – nas condições previstas em lei, ele ressalta –, “agirá exercendo o juízo de Deus contra ele”.
Ao mobilizar a ideia de uma guerra contra o mal, baseada na ética e na disciplina cristãs, as igrejas ganham popularidade entre os policiais sem precisar da mediação de partidos ou movimentos políticos. É um fenômeno notável que, diferentemente do que alguns gostariam de acreditar, não se dá por meio de imposição. Os evangélicos tentam realizar um projeto de hegemonia que a esquerda, hoje, parece desinteressada ou incapaz de fazer. O resultado disso é a sedimentação de uma visão conservadora nas forças de segurança, o que pode contribuir ainda mais para a reprodução de modos autoritários de policiamento.
* Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.
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