Ilustração de Carvall
Patuscada que resiste à pandemia
De beber o estoque a vender pela internet, as estratégias de um bar-editora para não quebrar na quarentena
“Tem uma vantagem de ter um bar que vai falir na quarentena: a gente pode beber todo o estoque de cerveja”, desabafou o editor Eduardo Lacerda, da Patuá, aos amigos numa rede social. Publicou a foto dele e da mulher, Pricila Gunutzmann, uma garrafa e uma tulipa da bebida com generoso colarinho de espuma. Lacerda calcula que, desde o começo da quarentena até meados de abril, ambos já beberam cerca de 150 latas estocadas – e um número não contabilizado de garrafas, compradas nas redondezas como alternativa às latinhas que serviria em noites de autógrafo canceladas em tempos de pandemia.
A Covid-19 os obrigou a fechar o bar e livraria Patuscada, palco dos eventos da editora, a poucos metros de casa. Era ali o local de lançamento das obras da Patuá, umas das pequenas e aguerridas editoras nacionais também afetadas pela crise na indústria literária, agravada com o vírus.
Nos últimos anos, a recessão econômica já havia derrubado as vendas das grandes editoras, fechado livrarias tradicionais como a La Selva e levado à recuperação judicial as megalivrarias Cultura e Saraiva. Quando chegou a quarentena, executivos dessas grandes livrarias estavam começando a falar de recuperação em 2020, após medidas de ajuste e negociações com os credores, conta o presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), Marcos Pereira. “O ano de 2019 foi surpreendentemente bom, as vendas das editoras devem ter crescido cerca de 8%”, estima Pereira, ainda à espera do levantamento preciso sobre o mercado, que o SNEL deve divulgar em maio.
Pereira diz que, em 12 de março, saiu otimista de um almoço com o então diretor da Saraiva, Luis Mario Bilenky, com quem falou sobre os possíveis efeitos do coronavírus. “Isso não deve ter muito impacto; talvez em uma loja ou outra”, arriscou o executivo. Vinte dias depois, Bilenky, que havia assumido em janeiro, pedia demissão da Saraiva. Em abril, a livraria anunciou demissões e, assim como a Cultura e outras livrarias, interrompeu pagamentos às editoras.
Lacerda, da Patuá, não foi afetado por essa moratória editorial: desde o começo, decidiu não trabalhar com livrarias, a quem acusa de praticar um modelo de consignação inviável economicamente para pequenas empresas como a sua. A situação do pequeno editor não é tranquila, mas enquanto espera, bebendo, o fim da quarentena, ele pode pelo menos diluir suas preocupações em um estoque de qualidade. “Acontece que o pessoal da Vila Madalena pede só puro malte; claro, às vezes vem público que pede litrão, mas, em geral, quer ou Heineken ou puro malte”, explica o editor-livreiro-barman. “Aí tento ver qual a puro malte mais barata.”
O próprio Lacerda é quem atende o público no caixa do Patuscada, pega a cerveja no freezer e serve as bebidas aos frequentadores, em geral nos eventos de lançamento dos livros da editora ou de editoras amigas. É assim há pouco mais de quatro anos, e deveria continuar neste segundo trimestre. Mas veio a pandemia, num momento em que ele tentava superar outra intempérie: no começo deste ano, as chuvas de São Paulo destruíram parte do Patuscada, cujo teto já dava sinais de cansaço há algum tempo.
Quem pensa que editor independente só se preocupa com as letras – e, vá lá, a contabilidade – não conhece as reviravoltas por que esse tipo de personagem costuma passar. Ex-operador de telemarketing; ex-estudante de letras e editor de revistas e fanzines, em curso que não completou; proprietário, por um tempo, de máquinas de bordados que vendia para confecções; ex-funcionário público – entusiasmado – na área cultural; e, desde 2011, editor da Patuá, Eduardo Lacerda sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés, em março de 2018. Literalmente: o piso de madeira de uma das salas onde ele havia colocado as estantes com centenas de exemplares dos livros da Patuá passou a empenar, no começo do ano, e cedeu “30, 40 cm”, poucas semanas depois do Carnaval, ao romper a viga que o sustentava sobre o solo nu. Lacerda acionou o cunhado, marceneiro, que fez um conserto de emergência, mas o avisou de que teria de fazer uma reforma.
O editor, em 2019, passou a temer também que o teto lhe caísse sobre a cabeça. Em julho, um ladrão forçou passagem pelo telhado. Entrou no Patuscada pelo sótão e roubou 30 reais, um violão velho e um saxofone, que Lacerda havia comprado em 2016 e, após tentar sem sucesso aprender a tocar, incorporou à decoração do boteco. Mas deixou “coisa mais valiosa”: uma mesa de som com amplificador e os troféus da editora com os prêmios Jabuti de Literatura.
“Achei que poderiam ter se interessado, pelo preço do metal”, comenta Lacerda, aliviado, sobre as robustas estatuetas que também ostentava como decoração do Patuscada, hoje guardadas em casa. A Patuá, que escolhe autores segundo os critérios estético-literários do editor, já teve três obras premiadas com o Jabuti e duas com o Prêmio São Paulo de Literatura, além de ter sido finalista em outros prêmios de prestígio.
Houve ainda outra tentativa de furto, em que o ladrão não conseguiu passar pela porta reforçada do sótão. Dessas duas incursões, porém, ficaram sérios estragos no telhado. Lacerda marcou consertos para o fim de janeiro e continuou tocando o bar.
Quando mal se falava em coronavírus, ele foi pioneiro no esforço para evitar aglomerações naquele local, entre Pinheiros e a Vila Madalena: nas noites de autógrafos, como a do livro Sobre a Coragem do Medo e Outras Loucuras Sãs, de Fabiana Vanz Dias, em janeiro, o editor mantinha um olho nos cômodos mais afetados pelas goteiras, de onde já tinha retirado as mesas e cadeiras. E abordava os grupinhos que se formassem ali, para que saíssem de baixo do teto condenado.
“No dia 17, um sábado, o Edu já tinha interditado o alpendre, na entrada; as pessoas entravam pela sala lateral, com as estantes de livros; e, para ir ao bar, faziam uma fila, em grupos”, lembra o escritor Luiz Bras, autor de destaque do catálogo da Patuá, com quem já organizou também duas coletâneas de “poemas futuristas, pós-humanismo”.
Velho amigo de Lacerda, o escritor conversou com ele sobre a reforma. “Dava para ver o gesso estufado, qualquer aglomeração que fizesse trepidar as paredes podia rachar o teto; mas não achei que fosse tão sério”, lembra. Bras e seu alter ego Nelson Oliveira coordenam vários projetos com a Patuá, entre eles, um, programado ainda para este ano, de uma coletânea de ficções LGBTQI+.
O entusiasmo com que Lacerda adere a projetos desdenhados por editoras tradicionais é uma das características que fazem o meio literário se referir ao franzino editor com adjetivos como “guerreiro”. É assim que o descreve Luiz Bras, e também a diretora da Biblioteca Mário de Andrade, a escritora e jornalista Joselia Aguiar, que admira a dedicação quase solitária do editor, cujas funções na Patuá, como no bar, são mais diversas do que se pode imaginar.
“Uma vez, eu estava no júri de um prêmio literário e notei que tinha pelinhos de gato num dos livros embalados pela Patuá”, lembra Joselia. “Perguntei ao Eduardo, pelo Facebook, e ele me explicou que deviam ser dos gatos dele, porque ele embrulha cada livro que despacha, um a um, em casa.”.
Por via das dúvidas, em 24 de janeiro, Lacerda adiou a noite de autógrafos do autor Manoel Herzog, uma das apostas da editora para o ano. Fez bem: naquele fim de semana, a chuva da madrugada fez com que o Patuscada amanhecesse com o teto aos pedaços, no chão do espaço onde seria o evento. O lançamento foi transferido, na semana seguinte, para outro bar da Vila Madalena; e o Patuscada entrou em obras.
Lacerda lançou, ainda em janeiro, uma vaquinha virtual para ajudar a custear a reforma, que reuniu aproximadamente trezentos autores e arrecadou cerca de R$ 14 mil. No dia 15 de março, já sob anúncios de quarentena, foi reinaugurada o Patuscada, com um público reduzido, de não mais de trinta pessoas, na maioria escritores que, com a contribuição para a reforma, ganharam direito a publicar uma página em uma coletânea impressa de poesias e contos, o livro Ruínas.
Mas o vírus derrubou de vez os planos de rápida reativação do boteco literário. Menos de uma semana depois da festa com os colaboradores, o governo de São Paulo anunciava o primeiro decreto de quarentena no estado; o bar fechou novamente.“Desanimei bastante; nas primeiras duas semanas, passei sem energia para trabalhar, sem fazer nada”, lembra Lacerda. “Aí a Pricila disse: ‘tá uma merda; se a gente não tentar uma alternativa, vai ficar pior ainda.’”
Acostumado a começar janeiro já com média de vinte lançamentos, teve que abandonar os planos de reiniciar as atividades em março. Manteve a impressão dos livros que já estavam na gráfica – alguns dos quais tiveram a tiragem renegociada – e de outros já prontos, que não tiveram lançamento cancelado pelos autores; e buscou novos contratos.
“Imprimimos um livro infantil com tiragem de cem exemplares; vendemos vinte pela Internet, e mais alguns diretamente pela autora”, lamenta Lacerda. “Ficamos sem o público que teríamos no lançamento”. A fundação da Patuá, aliás, se deve à descoberta por Lacerda de uma gráfica capaz de pequenas tiragens, adequadas a seu plano de negócios. “Mas teve autor, nesses dias, com quem combinamos de imprimir cinquenta exemplares e não vendemos nem três.”
Para manter algum ritmo de publicação durante a pandemia, o editor teve de apelar, principalmente, à rede de relacionamentos dos escritores. “Pergunto se dá para atingir um número legal de pessoas pelo boca a boca; se dá, a gente mantém a publicação”, conta ele. O best seller neste período foi Laura é um nome falso de alguém que amei de verdade, do estreante Daniel Belmonte, diretor artístico de uma companhia de teatro e roteirista de programas humorísticos da Rede Globo. “Na pré-venda pela Internet já saíram setenta exemplares, mais do que costumamos vender nos lançamentos presenciais”, comemora Lacerda.
O editor guarda para o período pós-quarentena seus maiores trunfos do ano. Um deles é a reedição, em versão de luxo, da peça As Aves da Noite, da pouco conhecida dramaturgia da celebrada escritora Hilda Hilst, e já registrada pelo editor oficialmente como o milésimo livro editado pela Patuá. Deveria sair em abril, mas aguarda os rumos da pandemia.
Outro autor programado pela Patuá que faz brilhar os olhos de Lacerda é Eric Nepomuceno, respeitado tradutor de autores como García Márquez, Eduardo Galeano, Júlio Cortázar e o poeta Juan Gelman. Após desencontros por e-mails, Lacerda e Eric Nepomuceno acertaram a parceria e estavam na fase de concluir a negociação do contrato de reedição de dois livros de contos, quando a quarentena calou as conversas. Lacerda já conta com o autor, porém, em seus possíveis lançamentos, quando o vírus permitir.
A editora Patuá, que tinha seu orçamento reforçado pelo Patuscada, passou a cobrir as despesas fixas do bar, com aluguel e manutenção, que Lacerda calcula em cerca de R$ 5 mil mensais. Ele quer renegociar o contrato de aluguel de maio com o proprietário. “Nesse momento, é a editora que me rende alguma coisa; no bar, só custos.” Ele espera poder recomeçar os lançamentos presenciais a partir de maio, e diz que, se conseguir renegociar o aluguel, tem fôlego para manter o bar/ espaço cultural, mesmo fechado, talvez até julho.
Da editora, ele não fala em desistir. “A gente teria, hoje, opção de comprar uma casa barata na Zona Leste, perto da minha família e da família da Pricila”, especula. “Também pensamos em talvez morar no interior, comprar uma chácara… depende muito de como ficarão os negócios via Internet.”
Executivos do setor acreditam que a pandemia trará uma mudança nos hábitos dos leitores, que aprenderam na quarentena a apelar aos canais de venda eletrônica, mas não têm estimativas confiáveis. Em breve, segundo Marcos Pereira, do SNEL, começa a movimentação de editoras para negociar prazos com livrarias e discutir com o governo saídas para a crise. O setor representa um mercado de R$ 5,5 bilhões de reais, o que é pouco, na concorrência de grandes empresas para atrair o apoio do governo, acredita o executivo.
Pereira concorda, ainda que pouco esperançoso, com outros empresários reunidos no grupo informal “Juntos pelo Livro”, que reivindicam crédito direto do governo, por instrumentos como o BNDES, à margem do setor bancário tradicional.
“Essa linha de 7,5 bilhões anunciada pela Caixa, para empresas que faturam até 4,8 milhões de reais, poderia atender muitas livrarias”, calcula. “Mas com uma taxa de 1,5% ao mês, não é um financiamento para enfrentar a pandemia; é o de sempre: ninguém em dificuldades consegue pegar e sobreviver.”
Lacerda nem cogita tomar empréstimos, e admite que não terá como manter seu espaço cultural caso a crise se prolongue. “Se, até agosto, não normalizar a situação, a gente começa a pensar em fechar de vez (o Patuscada). Tem muita coisa para tirar dali”, dizia, na terceira semana de abril. Na semana seguinte, lançou pelas redes sociais uma campanha e uma nova vaquinha virtual para manter o Patuscada de pé. Enquanto isso, o estoque vai acabando.
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí