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Paulo Guedes contra o liberalismo

A história mostra que uma onda de ódio só chega ao poder quando normalizada

Miguel Lago | 17 set 2018_07h30
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Um espectro ronda o mundo – o espectro do populismo nacionalista. Em vários países, seus expoentes têm conquistado importantes resultados eleitorais e conseguiram eleger, inclusive, os presidentes dos Estados Unidos, das Filipinas e da Turquia, além do primeiro-ministro da Hungria. Todas essas lideranças baseiam-se em princípios ultranacionalistas, em protecionismo econômico, na defesa da militarização da sociedade e no descompromisso completo com a evidência científica e os direitos da liberdade individual.

Representantes do populismo nacionalista costumam despertar o interesse das pessoas ciclicamente e tendem a chegar ao poder pelas vias democráticas. Impulsionados por discursos de ódio e sem propostas concretas, atingem, em momentos de crise aguda, picos de popularidade, que logo arrefecem. A onda de ódio só consegue sobreviver se conquistar o poder. A única maneira de fazê-lo é aproveitando essas pequenas janelas de popularidade momentânea para ganhar eleições.

Ocorre, porém, que apenas o discurso raivoso não é capaz de eleger ninguém e precisa ser complementado por um mínimo de credibilidade, referendada por atores do establishment político e econômico. Esses atores assumem a função de operarem a normalização do ódio, uma autêntica naturalização da barbárie. No caso brasileiro, o expoente do populismo nacionalista no Brasil, Jair Bolsonaro, conseguiu ser aceito pelo establishment econômico e político graças a uma aliança de conveniência com o empresário Paulo Guedes. Este, que sempre se declarou um defensor do liberalismo, emprestou sua credibilidade no mercado para a candidatura do ex-capitão.

 

Da última vez que esteve na moda, no período do entreguerras, o populismo nacionalista fez um estrago tremendo no mundo. Manifestou-se na Itália como fascismo, na Espanha como falangismo, na Alemanha como nazismo, e nos conduziu à maior atrocidade do século XX.

O Adolf Hitler de que falamos mais é aquele de 1944, que entrou para a posteridade como o psicopata responsável pela Segunda Guerra Mundial, pelo Holocausto e pela destruição da Europa. Mas pouco se fala do Hitler de 1932, o líder do Partido Nacional-Socialista, que chegou ao poder pelas vias democráticas. Nas eleições de 1932, o partido foi o mais votado, mas não obteve maioria parlamentar. Foi necessário o apoio de um político membro da aristocracia alemã, Franz von Papen, para que os nazistas obtivessem do presidente Paul von Hindenburg a nomeação de Hitler como chanceler. Até então, o chefe dos nazistas era visto pela elite política e econômica como um celerado, politicamente despreparado. Em troca do apoio, Von Papen ganharia o cargo de vice e teria o direito de nomear a maioria dos ministros. O resultado da aliança foi desastroso para Von Papen: em um ano e meio, seu grupo político foi eliminado e o governo se tornou ditatorial. Foi nula a sua influência no governo de Hitler, mas foi o seu apoio que legitimou e assegurou a instalação do populismo nacionalista no poder, na Alemanha.

O liberalismo professa, acima de tudo, a defesa da liberdade individual. E dessa defesa deriva toda a visão econômica baseada no princípio da propriedade, que desemboca na ideia de mercado. Ou seja, no liberalismo, a defesa do indivíduo, dos direitos humanos e das minorias é a condição mínima para a verdadeira economia de mercado. Sem liberdade política, não pode haver liberdade econômica para valer. O liberalismo professa a racionalidade como base intelectual, e a ciência e o conhecimento como fundamentos das decisões públicas.

Bolsonaro é militantemente contrário à garantia dos direitos do indivíduo, dos direitos humanos, demonstra não ter qualquer compromisso com a verdade científica ou com a verdade histórica. Suas declarações em cadeia nacional demonstram desprezo pelas instituições, e ele já defendeu o fuzilamento de adversários políticos. Não podendo ser explicitamente racista, uma vez que incorreria em crime, prefere comparar quilombolas a animais: “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas […] eu acho que nem pra procriar servem mais.”

O Hitler de 1932 – numa época em que racismo não era punido por lei – considerava os judeus como raça inferior. O Bolsonaro de 2018 debocha das conquistas da população afro-brasileira. O seu discurso de ódio não é contra a esquerda, é contra todos os valores liberais. Talvez o único “valor” liberal que ele não combata ativamente seja o da privatização de estatais, e isso por pura conveniência eleitoral, para conseguir apoio de atores do establishment político e econômico.

 

Em todas as entrevistas de Paulo Guedes, fica claro que ele acredita poder segurar Bolsonaro com rédeas curtas e formar “um programa liberal-democrata”. Garante que no governo populista nacionalista haverá descentralização de recursos para estados e municípios. É preciso ter zero entendimento de política para acreditar que um político que defende a ditadura militar e a violência de Estado, que menospreza a liberdade, terá qualquer condição política para distribuir poder e direitos. O empresário acredita que pode futuramente convencer o presidenciável a fazer isso ou aquilo, mas político só escuta quem tem capital político, e o único capital que Guedes tem a oferecer – a normalização da aberração Bolsonaro para o setor privado – é útil para as eleições, mas irrelevante a partir de 1º de janeiro de 2019.

O historiador inglês Ian Kershaw, um dos maiores especialistas no nazismo, afirma que Von Papen convenceu seus colegas da direita tradicional, e em especial o presidente Hindenburg, dizendo que Hitler estava totalmente sob seu controle. Von Papen não teve controle algum: virou um vice-chanceler decorativo, teve seus principais colaboradores eliminados e, por fim, foi demitido, tendo sido relegado às embaixadas da Áustria e da Turquia.

Kershaw vai além e afirma que é possível que, sem Von Papen, o nazismo não tivesse sido mais que uma moda: “Se as elites não tivessem feito essa aposta insana em janeiro de 1933, Hitler e seu partido provavelmente teriam caído no esquecimento da História.” De fato, nos anos 20, o Partido Nacional-Socialista não fazia nem traço nas eleições gerais. Foi só a partir da crise econômica de 1929 que sua popularidade começou a subir. Seu ápice eleitoral ocorreu em julho de 1932, quando chegou a ter mais de 37% dos votos. Apesar disso, naquele momento a direita tradicional se recusou a nomear Hitler chefe de governo. Quando uma nova eleição ocorreu em novembro de 1932, o nacional-socialismo já demonstrava sinais de declínio, tendo obtido dois milhões de votos a menos que na eleição anterior. Foi então que Von Papen atuou como operador da naturalização da barbárie, tornando o governo Hitler viável. Todo o resto – a guerra, o totalitarismo e o Holocausto – foram desdobramentos de uma tragédia anunciada.

Em seu perfil na piauí, ao falar de sua estadia no Chile de Pinochet, Guedes diz que só percebeu estar vivendo sob uma ditadura quando se deparou com agentes da polícia secreta vasculhando seu apartamento. Esperemos que não seja necessário o Brasil voltar ao Estado autoritário proclamado por seu candidato para que o economista se dê conta de que foi ele que pavimentou o caminho para a maior ameaça aos valores liberais desde a redemocratização do país.

O apoio público de Paulo Guedes a Bolsonaro é muito grave, pois ele naturaliza a barbárie, travestindo-a de civilização e tornando-a uma opção entre outras. Sem Guedes, Bolsonaro representaria apenas aquilo que ele é: o horror, o ódio e a loucura em seu estado mais puro. Seria apenas uma versão menos religiosa do Cabo Daciolo. Sem Guedes, Bolsonaro seria apenas uma onda, que como toda onda de ódio é passageira.

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