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Paulo José – 46 anos de excelência
Como uma providencial hepatite transformou o ator em protagonista de seu primeiro filme
Em 31 de outubro, o dia D, para celebrar a obra de Carlos Drummond de Andrade, o Instituto Moreira Salles exibiu, no Rio, o filme de estreia de Paulo José – O padre e a moça, adaptação livre do poema de Drummond, dirigida, em 1965, por Joaquim Pedro de Andrade.
No fim de semana anterior, havia estreado O Palhaço, dirigido por Selton Mello, filme mais recente da carreira de Paulo José.
Em homenagem aos 46 anos de excelência de Paulo José, reproduzo a seguir texto escrito há alguns anos que teve pouca divulgação, tendo sido publicado apenas no boletim mensal de programação do IMS, em 2005.
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Foi uma providencial hepatite que levou Paulo José ao cinema.
Em janeiro de 1965, às vésperas do início de O padre e a moça, o ator inicialmente escolhido para o papel principal do filme adoeceu.
Meses antes, Joaquim Pedro de Andrade estivera em São Paulo vendo os espetáculos do Teatro de Arena e do Oficina para completar o elenco da sua adaptação do poema de Carlos Drummond de Andrade.
Já isolado com a equipe em Diamantina, a doença do ator que iria fazer o papel do Padre obrigou Joaquim Pedro a escolher um substituto dias antes de começar a filmagem. Não havia tempo a perder. Em um lance de alto risco, lembrou-se de um dos atores do Arena, de quem sequer sabia o nome, mas que conhecera ligeiramente no bar Redondo depois de assistir A mandrágora. A comunicação por telefone, na época, era precária. Mesmo assim, confiando na intuição, Joaquim identificou o ator à distância e o convidou para participar do filme. Dois dias depois, tendo viajado 12 horas de ônibus, Paulo José chegou a Diamantina para estrear no cinema.
Sua primeira tarefa, ao descer na praça central da cidade, foi visitar o alfaiate para que a batina, feita sob medida para o ator adoecido, fosse ajustada ao seu tamanho. Constrangido por se sentir como quem herda a roupa de um defunto, Paulo José submeteu-se à prova e, no dia seguinte, já estava diante da câmera em São Gonçalo do Rio das Pedras.
Durante a longa filmagem, enfrentando com galhardia as duras condições de vida no vilarejo perdido a meio caminho entre Diamantina e Serro, onde não havia água encanada nem luz elétrica, Paulo José moldou um personagem interiorizado, de poucas falas, filmado frequentemente de costas. Viveu como um asceta, tomando banho de rio e dormindo em uma cama de campanha, no quarto que serviu também para a cena em que a Moça se despe antes de fugir da cidade com o Padre. Nos dias em que cedeu seu quarto para a filmagem, dormiu em um cubículo, adjacente à cozinha, em que era preciso afastar a cama para poder abrir a porta.
A sabedoria gaúcha de Paulo José aflorou nas noites em que a equipe acampou em meio às formações rochosas que separam Diamantina de São Gonçalo. Terminado o dia de trabalho, antes de se recolherem para as duas grandes tendas, atores e técnicos foram brindados com um memorável churrasco preparado por ele.
Longo isolamento, desconforto, álcool de má qualidade consumido em excesso, imaturidade etc., elevaram progressivamente a tensão naquela pequena equipe. Eram, ao todo, apenas 8 técnicos, 3 estagiários mineiros, 2 motoristas da Polícia Militar e 5 atores. No grupo, só duas mulheres. A veterana Rosa Sandrini e Helena Inês, a Moça. Namoros, ciumeiras, brigas, tiros, houve de tudo durante aqueles meses. Paulo José atravessou incólume as intempéries, sem se envolver em nenhuma espécie de conflito, concentrado na sua missão. O empenho que demonstrou na perseguição à mula-sem-cabeça custou-lhe um coice e a lição de que, muitas vezes, cenas difíceis de realizar, e que parecem fundamentais no momento da filmagem, acabam eliminadas na montagem.
Na última noite da equipe em São Gonçalo do Rio das Pedras, véspera da viagem para Cordisburgo, onde seria filmada a cena final em que o Padre e a Moça se refugiam no interior da gruta, a festa de despedida se prolongou madrugada a dentro em um crescendo de excitação: todos os homens da cidade queriam dançar com Helena Inês, a Moça de longos cabelos loiros. Coroando a atmosfera buñuelesca, já na hora do lobo, os moradores invadiram e saquearam os cômodos em que a equipe se hospedava, levando tudo que encontraram.
A hepatite providencial salvou O padre e a moça de um belo canastrão. E Paulo José, em seu primeiro papel no cinema, teve uma performance memorável que pôs o filme de Joaquim Pedro de Andrade em um patamar de excelência que, sem ele, dificilmente teria alcançado.
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