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piauí jogos

    Ilustração: Carvall

questões criminais

PCC veste branco

Traficante da facção usou 38 clínicas médicas e odontológicas para lavar dinheiro, comprar insumos para o tráfico e socorrer “irmãos” baleados

Allan de Abreu e Josmar Jozino | 30 jun 2020_12h23
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Passava das 7 horas da noite de sexta-feira, 30 de dezembro de 2016, antevéspera do Réveillon, e o expediente recém terminara na clínica odontológica Odonto Pride em São Mateus, Zona Leste de São Paulo. Com os pés sobre a mesa em sua sala, o protético Emerson Fernando da Silva, então com 31 anos, preparava-se para ir embora quando dois rapazes abriram a porta: “Que bagunça é essa aqui?”, perguntou um deles, Renato da Silva Bustamante Sá Júnior, formalmente o dono da clínica, acompanhado de outro funcionário. Os dois chamaram Silva para uma outra sala nos fundos do imóvel, onde disseram a ele que deveria assinar um pedido de demissão e devolver um automóvel que o protético havia comprado da própria clínica. Quando Silva disse que já tinha revendido o veículo, Sá Júnior e o subordinado amarram as mãos do protético com uma algema de plástico e começaram a agredi-lo com socos e chutes. 

Após uma hora de surra, Silva aproveitou o momento em que seus dois algozes saíram da sala para pegar o celular no bolso e pedir para uma amiga acionar a polícia. Em seguida, conseguiu se desvencilhar das algemas, pulou da janela e caiu sobre o telhado de um prédio vizinho. Só então percebeu que não havia como escapar. Ao retornar à sala e ver seu funcionário no telhado, Sá Júnior ordenou que ele retornasse: “Meu, volta que tá de boa, senão vai ficar pior, não vai acontecer nada com você, sobe.” Mas, quando viram no celular dele o áudio que enviou à amiga pedindo socorro, a sessão de tortura recomeçou com maior intensidade. “Agora que você chamou a polícia, você vai morrer”, disse Sá Júnior.

Somente minutos depois, quando perceberam a chegada de um veículo da Polícia Militar, é que a dupla desamarrou o protético. Os policiais encontraram as algemas no chão e notaram que Silva tinha várias lesões no rosto, na barriga e nas costas. O aparelho que armazena as imagens das câmeras de segurança da clínica havia sumido – foi encontrado minutos depois no carro do funcionário de Sá Júnior. Todos foram levados para o 49º Distrito Policial, em São Mateus. Quando Silva se preparava para assinar o seu depoimento ao delegado, foi chamado pela advogada da dupla de torturadores, Solange Lino Gonçalves, para uma conversa fora do prédio da delegacia. Nesse momento, o protético foi sequestrado e desde então, nunca mais foi visto – o caso é investigado pelo Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). Segundo a polícia, Gonçalves disse à vítima que Sá Júnior queria fazer um acordo sobre as dívidas trabalhistas que a clínica tinha com ele. Sá Júnior e o funcionário foram soltos cinco meses depois graças a um habeas corpus. Procurada pela piauí, a advogada Gonçalves não quis se manifestar.

Sá Júnior, 28 anos, é filho adotivo de Anderson Lacerda Pereira, narcotraficante membro do Primeiro Comando da Capital (PCC), e um dos laranjas do pai em um engenhoso esquema para lavar o dinheiro da cocaína. Pereira, moreno de suíças bem aparadas e corpo avantajado, já havia sido alvo de operação da Polícia Federal, a Alquimia, em 2009, quando comandava um esquema para obter insumos utilizados na produção da cocaína. Cinco anos depois, ele participou das primeiras tentativas do PCC em internacionalizar-se rumo à Europa, ao enviar uma pequena quantidade de cocaína – 32 kg – para a Ndrangheta, máfia italiana, do porto de Santos até Gioia Tauro, na Calábria. A droga acabou apreendida na operação Oversea, da PF, e Pereira foi condenado pela Justiça por tráfico internacional de drogas, mas não chegou a ser detido. Mesmo foragido, comportava-se como gângster em Arujá, cidade de 90 mil habitantes na Grande São Paulo, onde morava em um luxuoso condomínio e era vizinho de vários policiais. Segundo a Polícia Civil, Pereira é dono de quinze casas no residencial. Ele costumava circular pela cidade em carros luxuosos, quase sempre cercado de seguranças, exibindo um charuto entre os dedos e grossas correntes douradas no pescoço. Gabava-se de ser procurado pela Interpol e de ser personagem em um livro sobre o narcotráfico no Centro-Sul do Brasil – fotos da obra foram encontradas nos celulares de acólitos dele.

Pereira e o filho Gabriel Donadon Loureiro Pereira, 24 anos, administravam 38 clínicas médicas e odontológicas na Grande São Paulo, todas em nomes de testas de ferro, que serviam a três finalidades: lavavam o dinheiro do tráfico; justificavam a compra de produtos utilizados no refino da pasta base de cocaína, como a lidocaína, também utilizada por dentistas – a polícia encontrou em uma das clínicas uma fórmula para refinar a droga –; e serviam de hospitais para socorrer membros do PCC baleados em confrontos com a polícia na Grande São Paulo. Como os hospitais precisam informar a polícia sobre qualquer paciente ferido a tiros, Pereira colocou suas clínicas na região metropolitana para atenderem os “irmãos” da facção baleados. Eram os “hospitais do PCC”. 

Numa dessas clínicas foi atendido, na madrugada de 30 de novembro de 2017, Giovanni Barbosa da Silva, o Koringa, traficante do PCC na Zona Norte de São Paulo, ferido na perna pela PM durante um tiroteio na Freguesia do Ó. Koringa foi levado às pressas para uma das clínicas do esquema em Arujá, distante 47 km do local do confronto. Uma dupla de policiais militares que circulava nas imediações estranhou o fato de a clínica estar com as luzes acesas altas horas da madrugada – o local abria ao público apenas em horário comercial. Os PMs decidiram então invadir o imóvel, suspeitando haver um furto no local. Em uma das salas, encontraram Koringa e dois funcionários da clínica, um deles um argentino armado com uma pistola.

A investigação policial mostrou que o chefão do PCC mantinha conversas com vários políticos paulistas, entre prefeitos e deputados. Um deles é o deputado federal Milton Vieira (Republicanos), pastor da Igreja Universal do Reino de Deus e integrante da base do presidente Jair Bolsonaro no Congresso. Em agosto de 2018, Vieira vendeu para a mulher de Pereira, a dentista Silvana Moura Matias, uma casa no condomínio fechado Recanto dos Pássaros, em Jacareí, Vale do Paraíba, por 240 mil reais. Um ano depois, foi preso na casa Edmilson da Silva do Nascimento, o Scoobão, condenado pelo roubo, em 2008, de dois quadros do pintor espanhol Pablo Picasso, um de Di Cavalcanti e um de Lasar Segall, avaliados em 1 milhão de reais, da Pinacoteca de São Paulo. Em relatório, a polícia diz que, ao saber que a delegacia de Arujá intimara um de seus laranjas para depor, Pereira pediu a um deputado federal, não nominado, ajuda para saber detalhes da investigação. O deputado teria se comprometido a acompanhar pessoalmente o depoimento. Em outro trecho, o pastor Vieira diz a Pereira que ele era “mais do que um amigo, um verdadeiro irmão”, na transcrição da polícia. 

Procurado pela piauí, Milton Vieira disse ter vendido o imóvel em Jacareí para outra pessoa em 2016 e negou qualquer ligação com o traficante encontrado no imóvel; disse que não transferiu a propriedade para o comprador devido a débitos do imóvel; a transferência só ocorreu em 2018, quando esse comprador teria vendido a casa para a mulher do traficante Pereira, mas a operação ficou registrada como tendo ocorrido entre o deputado e a dentista. “Passei [a propriedade] para quem o comprador indicou”, disse. Vieira admitiu conhecer o narcotraficante, e afirmou chamá-lo de “irmão” porque “é um hábito de falar, até pela minha religião, porém nada tenho a ver com ele, com o que faz e com os fatos ocorridos”.

 

Investigadores do 4º Distrito Policial de Guarulhos começaram a desenrolar o novelo que os levaria até os esquemas empresariais de Pereira na tarde de 21 de novembro de 2019, ao encontrarem, na parede falsa de uma casa em Itaim Paulista, Zona Leste de São Paulo, um arsenal utilizado pelo PCC em roubo a bancos: oito pistolas, sete fuzis e três metralhadoras antiaéreas calibre 50. Na ocasião, o morador do imóvel conseguiu fugir mesmo estando algemado. A investigação sobre os verdadeiros donos do arsenal, segundo a polícia, levou até o nome de Anderson Lacerda Pereira. Os investigadores descobriram que no dia 9 de fevereiro deste ano Pereira teria um encontro com outro suposto integrante do PCC em Mogi das Cruzes, região metropolitana da capital paulista, e que o traficante estaria em uma Land Rover branca.

Os policiais encontraram o veículo, mas dentro dele estava o filho de Pereira, Gabriel. Aqui, há duas versões conflitantes. A polícia disse ter levado Gabriel para o 4º DP de Guarulhos – ele seria liberado horas depois. Passados alguns dias, o funcionário de um lava-jato para onde o veículo da polícia que transportou Gabriel havia sido levado encontrou, escondido no estofamento do banco traseiro, um pen drive e cartões de memória de celular onde constava, em detalhes, todo o esquema de lavagem de dinheiro de Anderson Pereira.

Gabriel conta uma história diferente. Seis dias após a abordagem em Mogi das Cruzes, ele foi à Corregedoria da Polícia Civil de São Paulo e disse ter sido abordado em sua Land Rover por três policiais civis. Afirmou ter sido levado até o 4º DP em Guarulhos, onde o trio teria exigido 5 milhões de reais para liberá-lo, alegando que o pai dele, Pereira, tinha “pendência de valores” com os policiais. Ainda segundo Gabriel, na delegacia, um dos policiais que o abordaram pegou o telefone celular e ligou para um investigador que trabalhava em outro distrito de Guarulhos. Segundo Gabriel, foi esse investigador quem falou sobre a “pendência de valores” e acrescentou que o policial era vizinho de seu pai no condomínio de Arujá. Após negociar o valor da suposta propina, sempre de acordo com Gabriel, o filho de Pereira entregou ao trio 400 mil reais em espécie e sua Land Rover – o pen drive e os cartões de memória estavam dentro do veículo, segundo ele. A Land Rover seria encontrada dias depois em uma oficina de Itaquera, Zona Leste da capital, para onde havia sido levada por um dos três policiais.  Somente no dia 9 de março é que os investigadores do 4º DP registraram um boletim de ocorrência relatando a apreensão do pen drive e dos cartões de memória – o inquérito foi instaurado dois dias depois. Estranhamente, no boletim de ocorrência não é citado o nome de Gabriel nem é mencionada a detenção dele um mês antes. O caso é investigado pela Corregedoria da Polícia Civil.

Versões conflitantes à parte, as fotos, anotações e planilhas salvas no pen drive e nos cartões encontrados com Gabriel descortinaram um sofisticado esquema de lavagem de dinheiro de Anderson Lacerda Pereira utilizando imóveis, clínicas médicas, uma organização de sociedade civil de interesse público (Oscip) na área da saúde e uma empresa de coleta de lixo, tudo em nome de parentes, principalmente a mulher Silvana, a mãe e o filho Gabriel. Era o início da operação Soldi Sporchi – dinheiro sujo, em italiano.

Em fevereiro de 2018, a Prefeitura de Arujá contratou com dispensa de licitação, por 17 milhões de reais, o Instituto Inovação em Gestão Pública, uma Oscip de Barueri, para gerenciar o Hospital Maternidade Dalila Ferreira Barbosa pelo período de oito meses. Quem assinava como presidente do instituto era um pedreiro. Trata-se de mais um laranja do traficante do PCC, segundo a polícia, uma vez que planilhas com a contabilidade do hospital foram encontradas no pen drive de Gabriel – além disso, no período em que administrou o hospital, Pereira colocou a sobrinha e a tia como diretoras administrativas. O salário de parte dos funcionários era pago por transferências a partir de contas pessoais dos gestores do hospital, o que, para a polícia, possibilita a lavagem de dinheiro – não há dados no inquérito sobre a movimentação financeira das empresas de Pereira. 

A gestão do hospital pelo instituto ficou marcada por uma série de irregularidades, como falta de medicamentos, calote em fornecedores e atraso no pagamento de salários, o que fez com que o repasse de verba pela prefeitura fosse suspenso em julho de 2018. Somente depois de Pereira reunir-se com o secretário de Assuntos Jurídicos da prefeitura, Carlos Roberto Vissechi, esse último recomendou ao prefeito que recomeçasse os repasses para a Oscip. Segundo a polícia, Vissechi recebeu propina do traficante, conforme diálogo no aplicativo WhatsApp entre dois subordinados de Pereira: “O advogado [Vissechi, segundo a polícia] também roubou ele [Anderson Pereira].” Duas semanas após o encontro entre eles, Vissechi sofreu um atentado a tiros – nenhum disparo o atingiu. Naquele mesmo mês, o contrato foi renovado por mais dois meses. 

Vissechi foi exonerado em abril último pelo prefeito José Luiz Monteiro, quando ocupava outro importante cargo na municipalidade: o de secretário da Segurança Pública de Arujá. Em nota, a defesa de Vissechi afirmou que ele, na qualidade de secretário jurídico, analisava cada caso com base nos pareceres da comissão de licitações, do Tribunal de Contas, da Procuradoria e da Secretaria competente do Município de Arujá. A nota diz que a licitação emergencial com o Instituto Inovação foi efetuada em conformidade com as legislações vigentes. A defesa acrescenta que Vissechi não é membro de organização criminosa e fora detido por um crime que não cometeu. Em nota, a Prefeitura de Arujá informou que “aguarda o desfecho das investigações e se coloca à inteira disposição da Justiça para colaborar no que for preciso”. “O Executivo ressalta o comprometimento com a transparência de todos os seus atos e com os princípios fundamentais inerentes à administração pública.”

 

Ao fazer campanas diárias em frente a uma das quinze casas de Pereira no condomínio fechado de Arujá, os investigadores constataram que, em um dos endereços, os funcionários da coleta de lixo entravam no imóvel e pegavam o lixo das mãos de uma mulher – em todas as demais casas do condomínio, o lixo era disposto pelos moradores na calçada. Para os investigadores, aquele detalhe indicava dois aspectos relevantes para a operação: Pereira tinha poder dentro da Center Leste, empresa coletora de lixo de Arujá, e buscava evitar que os resíduos de sua casa fossem vasculhados pela polícia em busca de provas ou indícios de crimes.

No pen drive apreendido com Gabriel, filho do traficante do PCC, os policiais encontraram fotografia do cartão de ponto de um dos funcionários da Center Leste e cópias de processos judiciais envolvendo a empresa. Formalmente, a empresa está em nome do ex-soldado da PM Gléucio William Pires Barbosa. A Center Leste foi criada em 2013 com capital social de apenas 1 mil reais, e na época era uma microempresa voltada ao comércio de hortifrutigranjeiros. Dois anos depois, venceu licitação da Prefeitura de Santa Isabel, cidade vizinha a Arujá, para o fornecimento de instrumentos musicais: atabaques, agogôs e berimbaus. 

Em 2017, a polivalente empresa passou a atuar em obras de urbanização e, em abril do ano seguinte, teve o capital social aumentado para 1,92 milhão de reais. Coincidência ou não, um mês depois desse aumento súbito na capacidade financeira da Center Leste, a Prefeitura de Arujá abriu licitação para a coleta de lixo no município – entre as exigências do edital consta um capital social mínimo de 1,17 milhão de reais. Durante a tramitação do processo licitatório, Pereira, Barbosa (o dono formal da Center Leste), Gabriel, filho do traficante, e Sá Júnior, afilhado, chegaram a ameaçar o representante de uma empresa concorrente na licitação em frente ao prédio da Prefeitura de Arujá. “Espera um pouquinho”, disse Barbosa, ao lado de Pereira, para o funcionário da concorrente. “Vou apresentar meu sócio pra você.” Após os quatro cercarem o homem, Anderson afirmou: “Deixa nós em paz, rapaz!” Barbosa completou: “Tá tudo certo aqui, tá? Pra vocês não atrapalharem.”

A Center Leste venceu o certame e assinou o contrato de 8,77 milhões de reais – posteriormente, o acordo seria renovado por mais seis meses, até janeiro deste ano, o que rendeu à empresa mais 4,38 milhões de reais. A mesma firma seria contratada pela Prefeitura de Arujá para auxiliar no combate à dengue – para isso, recebeu mais 3 milhões de reais. A defesa do ex-PM Barbosa diz que o único vínculo dele com as clínicas investigadas como parte do esquema do traficante era a prestação de serviços de limpeza. Os defensores de Barbosa afirmam que ele não participou de atos ilícitos, perdeu várias licitações e ganhou outras “por competência”. E acrescentam que Barbosa  nunca teve antecedentes criminais e jamais integrou organização criminosa.

A fase ostensiva da operação Soldi Sporchi foi deflagrada na manhã de 3 de junho deste ano. Dos 22 mandados de prisão temporária de trinta dias, onze foram cumpridos, entre eles o da mãe e da atual mulher do traficante do PCC. Entre os foragidos estão Pereira, o filho dele Gabriel e o afilhado Sá Júnior. A defesa de Pereira e da família dele não quis se manifestar. Barbosa, da empresa de lixo, e Vissechi, ex-secretário da prefeitura de Arujá, também foram presos. Como advogado, Vissechi teria direito a uma sala de estado maior, conforme prevê a Constituição. Mas, como esse ambiente não existe no estado de São Paulo, ele está em uma cela na carceragem do 1º DP de Guarulhos, dormindo em um colchão no chão e tomando banho com água fria. Sua defesa pediu liminar ao Tribunal de Justiça para que Vissechi cumprisse prisão domiciliar, o que foi negado. As 38 clínicas continuam funcionando – os proprietários e os profissionais (médicos e dentistas) alegam não saber que as empresas serviam para a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas.

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