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    Ilustração: Carvall

anais do futebol

Pelé, o muro e o mar

Lembranças de um menino das vizinhanças da casa do Rei em Santos

João Paulo Charleaux | 29 dez 2022_16h23
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Pelé ficava atrás de um muro. Tinha lá um muro coberto de hera ou de unha-de-gato onde a cidade acaba. Ele ficava atrás desse muro.

Santos tem uma geografia estranha – a maior parte da região urbana da cidade é insular, é uma ilha, mas ninguém percebe. O muro atrás do qual Pelé morava ficava na Ponta da Praia, um bairro em que você olha para a direita e vê o mar; olha para a esquerda e vê o mar também, ou pelo menos os guindastes do porto, que indicam que ali, no horizonte, está o mar de novo. A coisa causa uma desorientação. A maior parte das pessoas acha graça quando percebe, mas muito morador passa a vida toda sem se dar conta de que o mar circunda o bairro. A Ponta da Praia é mesmo como um fim de caminho, onde só se vai – ou onde só se ia, porque hoje inventaram muita coisa para fazer lá – se você morasse na região ou fosse pegar a balsa para atravessar o Estuário na direção do Guarujá.

Existe um ambiente de desorientação geral no bairro em que Pelé morava porque, além de o mar estar por todo lado – como num planeta que tenha mais de um sol ou um par de luas a girar em torno de si –, há ainda a predominância de uma iluminação difusa que nunca deixa a zona anoitecer direito. O fenômeno é causado pelo efeito dos potentes holofotes do porto. As torres imensas projetavam uma luz amarelada que, refletida nas nuvens baixas e na umidade espessa que marca o clima da Baixada, sobretudo no verão, terminava por empastelar o ar com uma sensação de que não havia transição precisa entre o dia e a noite. Era como se o sol inclemente que brilhava de dia se recolhesse para dentro das ampulhetas de tungstênio que mantinham vigília atenta sobre todos os recônditos do bairro na hora de dormir, dando uma impressão de que a cidade tinha um verão de Oslo, onde nunca anoitece de verdade.

Antes de o dia acabar, ele já parece recomeçar. Antes de as ruas terminarem, elas dão a volta na esquina e recomeçam, abalroadas pelo mar que cerca o bairro. A desorientação que o lugar provoca não está completa sem o cheiro. Dezenas de silos fazem subir na atmosfera nuvens invisíveis de um fedor característico. Os moradores dizem que o cheiro é causado pelas montanhas de açúcar e grãos que fermentam nos armazéns. Se você cheira o açúcar do açucareiro ou um punhado de grão-de-bico, não sente nada. Mas espere até metê-los em carretas de caminhões que atravessam o país antes de serem amontoados por escavadeiras dentro de galpões do tamanho de prédios, onde esperam por dias até serem dragados para os porões de navios que atravessam o Atlântico. Parece que a operação toda é que faz a alquimia de deixar o açúcar fedendo. É o que a gente ouve dos adultos em Santos quando é criança. Piscou, passam-se quarenta anos em que você repete isso sem nunca googlear para saber se é verdade. Mas o cheiro está lá, onde morava o Pelé.

 

A escola pública onde primeiro estudei ficava no fim do fim desse bairro. Era o último imóvel antes da delegacia, do mercado de peixe e da balsa, nessa ordem. Um pouco antes, um pouco para dentro, ficava o muro atrás do qual Pelé morava. “O Pelé mora aí”, meu pai dizia quando a gente passava de mão dada na frente do muro do Pelé. Não era caminho para lugar nenhum. Caminho é pela Avenida dos Bancários ou pela Avenida da Praia, apelido da Avenida Almirante Saldanha da Gama. A casa do Pelé, na Praça Nossa Senhora do Carmo, não é caminho para nada. A praça mesmo não tem nada. Dá a impressão de que o pessoal foi fazendo rua e no fim precisou criar uma pracinha de arremate, só para amarrar o enredo viário do bairro.

Nunca vi Pelé lá. Nunca ouvi nem voz atrás do muro. Os adultos sabiam que aquela era uma das muitas casas que ele devia ter no mundo, mas, para a criança que eu era em 1984, vai, por aí, – com o quê, com 5, 6 anos? –, Pelé vivia chutando uma bola no gramado imenso que existia atrás do muro coberto de hera ou unha-de-gato na Ponta da Praia. Ele não fazia outra coisa que chutar bolas. Tinha duas traves brancas no gramado. Eu nunca as vi, mas apareciam nítidas na minha cabeça, adornadas por redes que os campos da minha infância nunca tiveram. Traves com redes é o tipo de luxo que se pode almejar até os 10 anos de idade. Você não quer marcar mil gols no Maracanã, você sonha com uma rede enfeitando a trave de pau erguida no campo riscado na areia.

“Essa é a casa do Pelé?”, eu perguntava a cada vez que passava lá, como que para confirmar ou realçar a excitação que aquilo causava em mim. Pensava que ele estava tocando bola para algum filho. Eu não sabia se ele tinha filho, mas devia ter alguém com quem ele jogava no gramado de casa. Um gramado tão grande, afinal, com essas redes brancas, perfeitas. Devia ter.

 

Um dia ele passou de carro, na rua. Na Avenida dos Bancários. “Olha o Pelé. É ele”, alguém me disse. Meu pai, talvez. Eu não vi. Outra vez ele estava num dos camarotes da Vila Belmiro num dia de jogo. A gente estava derretendo na arquibancada de concreto, apertando os olhinhos para separar o que é sol do que é jogo, tentando enxergar o gramado, com aquela luz imensa de verão refletida nos onze uniformes brancos dos jogadores do Santos, quando correu um burburinho na massa. O pessoal olhava para cima. Via o Pelé no camarote. Eu olhava lá, mas as crianças têm esse poder de dispersão. Não veem o que todo mundo vê. E, de novo, eu não sei se vi o Pelé.

Sou de uma geração que por pouco não viu Pelé. Ele se aposentou do futebol profissional em 1977, numa partida entre o Santos e o Cosmos de Nova York, para onde foi depois de pendurar as chuteiras, numa transferência menos esportiva e mais publicitária, que talvez tenha inaugurado a era do futebol-negócio, pois, até então, nem patrocínio os uniformes tinham. Nasci dois anos depois e peguei o rastro que Pelé deixou no ar. Então, ele vagava na cidade ainda de forma muito presente, mas pouco palpável. O Santos com o qual cresci foi um time difícil, de poucas conquistas. Em 1978, teve a primeira geração dos chamados “meninos da Vila” – Juary, Pita, João Paulo, Ailton Lira. Mais tarde, Chulapa. Mas isso tudo eu não peguei de memória, peguei de ouvir contar.

As torcidas adversárias se referem aos torcedores do Santos como “viúvas do Pelé”. Não há melhor definição, sobretudo para meninos da minha geração. A gente cresceu de luto por um negócio que não conheceu, mas cujo rastro era sentido em toda esquina, num carro que passava, num muro de bairro, num vulto no camarote.

Um dia, quando eu era pequeno, o Pelé participou de algum jogo com a Seleção. Algum amistoso, evento, partida arranjada, alguma coisa. Eu vi na tevê. Chorei. Eu achava que as pessoas não passavam a bola para ele. Minha mãe veio me consolar e eu me lembro de perguntar a ela por que ninguém passava a bola para o Pelé. Isso deve ter acontecido. Eu devia estar grudado em alguma tevê de tubo de algum daqueles apartamentos da parte surreal da cidade, que existe do canal 5 para lá.

Hoje, adulto, vejo as pessoas discutindo sobre um Pelé que eu desconheço. Tentam determinar o tamanho do legado deixado por ele, situá-lo em relação aos craques atuais, compará-lo com Maradona, escrutinar suas posições políticas, seus aspectos raciais. As pessoas de Santos ficam vendo esse debate passar, ficam sacando a confusão em que todo mundo cai ao tentar capturar a essência de um vulto negro que no curto tempo que dura uma vida conseguiu impregnar a existência de tantos, como um fenômeno estranho, como uma luz difusa, como um fenômeno onírico que marcou uma infância nacional na qual projeções e verdades, mitos e lendas se fundem na cabeça dos que tentam materializar Pelé apenas por meio de vídeos borrados, imagens granuladas, realidades contadas, sempre tapadas por um muro alto num fim de caminho que nunca termina.

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